sexta-feira, 5 de março de 2021

Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 



CONCLUSÃO

Marta regressou com D. Teresa, alguns dias depois. O brasileiro conveio no tratamento hidropático da esposa; e a compadecida irmã do vigário ofereceu-se como enfermeira da pobre senhora que se abraçava nela com medo imbecil, a pedir-lhe que a não deixasse, que a defendesse do missionário.
D. Teresa assistiu ao nascimento da primeira filha de Marta. Imaginava a irmã do vigário que no espírito da mãe se havia de operar uma benigna mudança; que o amor à filha seria diversão à saudade de José Alves; mas a medicina não esperava alteração sensível, porque era matéria corrente nos tratados alienistas que um cérebro lesado não se restaura sob a impressão do amor maternal, que só actua nas organizações normais. Porém, D. Teresa não podia crer que Marta estivesse confirmadamente louca, posto que nas suas conversações em que, raras vezes, se interessava, disparatasse, afirmando que via a alma de José Alves, como quem conta um caso trivial.
Quando lhe mostraram a filha recém-nascida, contemplou-a alguns segundos; mas nem balbuciou uma palavra carinhosa, nem fez gesto algum de contentamento. A amiga dizia-lhe coisas muito meigas da filhinha, a ver se lhe espertava o coração. Punha-lha nos braços, dava-lha a beijar. Marta cedia com tristeza e constrangimento. beijando a filha como se fora uma criança alheia. A ama ia dizer às criadas que a brasileira era uma cafra, que não podia ver o anjinho do Céu.
Os paroxismos eram menos frequentes; mas, três dias antes do ataque, a torvação de Marta manifestava-se com extravagâncias, delírios. Fechava-se no quarto com muitos vasos de flores, que enfileirava no sobrado, como se ajardinasse um passeio. Uma vez disse a D. Teresa, à madrinha de sua filha, que arranjara aquele caminho de rosas, porque o seu José Alves lhe dissera em Prazins que havia de fazer-lhe um jardim em Vilalva quando casassem, e ela fizera aquele jardim para passearem juntos quando ele viesse à noite. D. Teresa encarou-a com uma grande piedade, porque se convenceu então que estava perdida.
O Feliciano, quando ela se fechava no quarto, já sabia que estava a preparar-se o ataque; ia dormir noutra cama; necessitava do seu repouso, dizia ele; tinha de erguer-se cedo para ver o que faziam os jornaleiros, e não podia perder as noites. Como o arrependimento de se casar já o mortificava, evadia-se às irremediáveis apoquentações, olhando egoistamente para o seu bem-estar, e lembrando-se às vezes que, tendo uma mulher assim doente, não lhe seria muito desagradável ficar viúvo. Não obstante, como, passado o ataque epiléptico, a esposa recaia numa serena indolência, numa impassibilidade mansa e tranquila, o tio ia dormir com ela, tendo sempre em vista as condições do seu bem-estar, as necessidades imperiosas da sua fisiologia. Assim se explica a fecundidade de Marta, que deu em sete anos cinco filhos a seu marido. O médico já tinha explicado satisfatoriamente ao padre Osório que a demência de Marta era funcional, e as qualidades reprodutoras não tinham que ver com as anormalidades cerebrais. A Providência não teve a bondade de fazer estéreis as dementes.
Entretanto, aos três dias precedentes às crises epilépticas, parece que o marido lhe era repulsivo. Dava-se então a revivência de José Alves, o seu amado saia do sepulcro, e transportava-a nas suas asas de anjo ao paraíso de Prazins. D. Teresa, colando o ouvido à fechadura da porta, ouvia-a conversar como em diálogo, ficar silenciosa, depois de uma interrogação, por largo espaço de tempo; vinha de mansinho à porta espreitar que a não escutassem. Dizia palavras confusas, abafadas, cariciosamente proferidas, como se tivesse os lábios postos em contacto de um rosto amado. O nome de José realçava com uma nitidez jubilosa, com uni timbre de meiguice infantil; e às vezes, um grito em esforçado desespero como se ele se lhe desatasse dos braços para lhe fugir. Um espiritista da escola de Kardec tiraria desta loucura um argumento a favor das Manifestações visíveis, em que o fluido, o perispírito se apresenta semimaterial, com as formas vagas do corpo, quase tangível ao medium.
O Feliciano ignorava estas cenas extra-naturais. Ele; ao sexto ano de casado, encouraçara-se num impenetrável egoísmo de avarento, cortando fundamente por todas as despesas que em vista da sua grande fortuna se reputavam sovinarias. A medicina já o considerava lunático, mais ou menos infeccionado da alienação da mulher: E a loucura que é se não a exageração do carácter? Porque o viam às vezes atravessar os seus pinhais, com o monóculo, gesticulando, e falando sozinho, chamavam-lhe doido. Errada hipótese do vulgo ignorante. Ele fazia operações aritméticas em voz alta como os velhos poetas inspirados faziam madrigais numa declamação rítmica ao ar livre e ao luar. O certo é que ninguém o apanhava em intervalo escuro para o defraudar num vintém. Comprou, umas após outras, todas as quintas que foram do Vasco Cerveira Lobo, de Quadros; umas à viúva, e outras aos filhos. A D. Honorata Guião, casada em segundas núpcias com o desembargador do Ultramar Adolfo da. Silveira, veio à Metrópole assim que viuvou para se habilitar herdeira de metade do casal não vinculado do tenente-coronel. Os filhos Egas e Heitor, sabendo que sua mãe estava nos Pombais, com o marido e filhos, tentaram escorraçá-la com ameaças e insultos, atirando-lhe tiros à janela. O magistrado fugiu com a sua família e acompanhou com força armada os actos judiciais. Afinal, Honorata, vendeu a sua parte, ao desbarato, ao brasileiro Prazins; e o morgado, vendido o seu património desvinculado, e mais o irmão, vergonhosamente casados, esfarrapam hoje o resto da torpe existência na tavolagem das tavernas. As filhas salvaram-se do naufrágio agarradas às pranchas dos seus dotes. Arranjaram facilmente maridos que desempenharam os seus casais e as sovavam de pontapés injustos e extemporâneos, quando se lembravam dos engenheiros do conde de Clarange Lucote.
A brasileira de Prazins tem hoje cinquenta e três anos. Os seus vizinhos que contam trinta anos, nunca a viram, porque ela, desde que, em 1848, morreu D. Teresa, nunca mais saiu do seu quarto. Já ninguém a vai escutar; mas repete as mesmas palavras do seu amor de há quarenta anos, pede que lhe levem flores, tem as mesmas alucinações, e – o que mais é – ainda tem lágrimas, quando, nos intervalos dos delírios, entra na angustiosa convicção de que José Dias é morto. O padre Osório ainda a procura nesses períodos de razão bruxuleante e fala-lhe da irmã por sentir a inefável amargura doce de se ver acompanhado nas lágrimas. Mas o padre diz que nunca pudera ver nitidamente a linha divisória entre a razão e a insânia de Marta. Depois do delírio, sobrevém a monomania hipocondríaca. A alma continua a dormir sem sonhar, sem as alucinações. Nessa segunda crise de torpor, ele e só ele é admitido ao seu quarto, depois de esperar que desça da cama ou se embrulhe num xaile para encobrir a sordidez do corpete dos vestidos. Este xaile é uma cintila resistente de instinto feminil que raras vezes se apaga no comum das dementes, excepto no maior número das histéricas com erotismo.
Marta tem duas filhas casadas e já mães. Às temporadas, vestem serenamente os seus trajes domingueiros e vão para casa dos pais, onde continuam na sáfara dos campos a sua lida de solteiras. O pai educara-as na lavoura de pé descalço, e sachola nas unhas. Trabalham nas lavras com uma grande alegria e garganteiam cantigas muito frescas. E os maridos, cheios de bom senso, já as não procuram. Quando regressam, recebem-nas sem as
interrogarem; porque, se as afligem, dão-lhes vágados e choram. Nos outros filhos intanguidos, escrofulosos, tristes e sem infância, predomina a diátese da imbecilidade e a falta de senso moral, que é uma espécie patológica menos estudada dos alienistas. Entre estes filhos há um que estudou para clérigo. Passava por ser o mais escorreito. O pai achava-lhe talento. Estudou seis anos latim, em Braga, debaixo das mais rigorosas violências à sua incapacidade; e quando Feliciano, pródigo de dinheiro para este filho, e desenganado pelo professor, o mandou buscar com três reprovações, ele trazia numa caixa de lata cinco mil e tantas hóstias com que se prevenira para as suas consagrações de sacerdote. E o pai foi tão feliz que pôde vender as hóstias com o pequeno prejuízo de dez por cento.
– Aí tem o brasileiro de Prazins, se nunca o viu – dizia-me há três meses o padre Osório. mostrando-me no mercado de Famalicão um velho escanifrado, muito escanhoado, direito, com o monóculo fixo, vestido de cotim, com um guarda-pó sujo, esfarpelado na abotoadura, e uma chibata de marmeleiro com que sacudia a poeira das calças arregaçadas. – Tem 84 anos – continuou o vigário de Caldelas – veio a pé de sua casa, que dista daqui légua e meia, janta um vintém de arroz, bebe outro vintém de vinho, tem quinhentos contos, e volta para sua casa a pé, através ou pouco menos das suas catorze quintas. Com a frugalidade, com o exercício e com o seu egoísmo sórdido viverá ainda muito tempo, porque o velho Alexandre Dumas disse que os egoístas e os papagaios viviam cento e cinquenta anos.

 

Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 




XX

Marta estava no quarto, onde tinha o seu oratório de pau-preto com frisos dourados, e dentro uma antiga escultura em marfim de um Cristo dignamente representado na sua agonia humana. De cada lado da cruz ardia uma vela de cera benzida. Frei João entrara de sobrepeliz e estola: seguiam-no o Feliciano com uma vela de arrátel acesa, e o Simeão com a caldeirinha da água benta. Marta, com um pavor na vista, tremia, de pé, encostada à cómoda. O exorcista sentou-se, e chamou a energúmena com um gesto imperativo de cabeça. Ela aproximou-se hesitante e ajoelhou. Frei João compôs o semblante e deu à voz uma toada lúgubre em conformidade com a rubrica de Brognolo
– com grave aspecto e voz horrível, diz o demonómano. Começou por exercitar o Preceito provativo, a ver se havia efectivamente demónio. E então bradou, fazendo estremecer Marta: In nomine Jesu Christi. Ego Joannes est minister Christi... Vinha a dizer, em vulgar, ao Demónio ou aos espíritos imundos, vel vobis spiritis inmundis, que, se estavam no corpo daquela criatura, dessem logo um sinal evidente, ou vexando-a, ou movendo-lhe os humores, segundo o seu costume, pelo modo que por Deus lhe fosse permitido: eo modo quod a Deo juerit permissum. Marta estava retransida de um sagrado horror, posto que não percebesse do latim do padre senão demónio e espíritos imundos. Nunca lhe tinham dito que ela estava endemoninhada, e à sua mentalidade faltava-lhe neste lance a força convincente e a energia da palavra para combater o engano do seu confessor. Não tinha vigor de carácter nem rudimentos de inteligência para reagir. Educada em melhores condições, sucumbiria com a mesma vontade inerte sob a violência do confessor. Há condescendentes humildades mais vergonhosas sem o diagnóstico da demência que as desculpe. Ela estava de joelhos; mas, não podendo suster-se, sentou-se num arfar de suspiros, ansiada, até que as lágrimas lhe explodiram numa torrente.
Frei João fez um trejeito de satisfação, um agouro de vitória, e pôs-lhe o Preceito lenitivo: et omnia afflictio a vobis causata. E atacou logo os demónios com o Preceito instrutivo: : et statim coram me illam prosternatis. Marta, com efeito, estava prostrada, com a face no pavimento, estirando os braços no paroxismo epiléptico, e o colo e o tronco hirtos numa inflexibilidade tetânica.
– Não há que duvidar – disse o exorcista ao marido e ao pai da obsessa. – Levemna daqui e depois continuaremos.
Marta, passado o letargo, disse ao tio que mal se lembrava do que passara no oratório com o Sr. Frei João; mas que lhe tinha medo, que não queria mais confessar-se com ele.
– Cada vez mais provado que está obsessa. Já não é ela quem fala; é o Demónio que me teme! – exclamou o exorcista com uma santa bazófia, refutando as vacilações um pouco cépticas do brasileiro; ao passo que o Simeão asseverava que a filha tinha o Demónio; porque a sua defunta mulher também o tinha, e se deitara ao rio porque nunca quisera que lhe fizessem as rezas.
Ao outro dia, vencidas as repugnâncias de Marta, continuou o exorcista, carranqueando cada vez mais e pondo vibrações horrorosas na laringe. Deu-lhe a ela o seu Brognolo para que lesse em voz alta os Preceitos que a criatura vexada pode pôr ao Demónio. Marta, de joelhos, diante do oratório, leu: Demónio maldito, eu corno racional criatura de Deus, redimida com o seu precioso sangue, depois que para me salvar se humanou, cheia de fé, te mando em virtude do santíssimo nome de Jesus, que logo me obedeças e me atormentes levemente, ou fazendo tremer o meu corpo ou lançando-o em terra, deixando-me em meu juízo.
O corpo de Marta visivelmente tremia; ela deu o livro ao exorcista com um arremesso impaciente, e murmurou soluçante:
– Deixem-me, deixem-me pelas chagas de Cristo!
Frei João sorriu-se, e resmoneou à orelha do Feliciano:
– O maldito serve-se do nome de Cristo para me afastar! Eu vou escangalhar-te, Satanás!
E lançou mão do gládio das Objurgações. As objurgações são perguntas feitas ao Diabo, à má cara, e latinamente. Diz, maldito Demónio, serpente insidiosa, conheces que existe Deus? Conheces que foste criado anjo alumiado de muitas prendas, e que pela tua soberba te perdeste? Sabes que, repulsa do Paraíso, perdeste para sempre a graça de Deus? Pergunta-lhe afinal, depois de muitas injúrias, se reconhece nele um ministro de Deus, e como ousará a não manifestar-se? Quomodo igitur poteris contra estimulum calcitrare?
O Demónio não respondeu ainda; mas o frade ia apertá-lo, mandando que se ajoelhassem todos. Ele então, numa postura seráfica, braços cruzados no peito e olhos no Cristo, declamou:
– Veni, sancte spiritus: reple tuorum corda fidelium, et tui amores in eis ignem accende. – Pedia ao Espírito Santo que descesse a encher os corações dos seus fiéis, e abrasá-los no fogo do seu amor. Depois: – Dominus vobiscum.
– É de co espirituo – respondeu o Simeão, que sabia ajudar à missa.
Seguiram-se vários Oremus e deprecações, e a Ladainha de Nossa Senhora; mais outros Oremus, e a detestação da energúmena, uma estirada que principiava: E tu, Demónio maldito, com que autoridade intentas possuir jamais meu corpo ou molestarme por modo algum? Marta rejeitou o livro, e disse que não podia ler nem estar de joelhos; que tinha vágados e que se queria ir deitar. Mas o exorcista, severo e formidável no seu ministério – que não, que não se ia deitar, que não lhe fugia, que se pusesse de joelhos a seus pés! Ele então, segundo a rubrica do livro director, sentou-se, cobriu-se, voz grave e horrível, virado contra o Demónio, como juiz para tal réu já convencido, aspergiu a possessa de água benta, ululando: Asperge me, Domine... e recomendou aos circunstantes que apagassem duas velas, e não dessem palavra. Profundo silêncio. Ouvia-se apenas o zumbido das moscas que se esvoaçavam do tecto atraídas pelo calor da luz única, e pousavam na fronte chagada do Cristo. O recinto era espaçoso e quase em trevas. A vela, encoberta pelas curvas laterais do oratório, não alumiava senão o curto espaço da projecção em que Marta, retraída num terror, tinha os dedos das mãos postas, chegadas aos lábios, como se quisesse abafar os suspiros.
Passados minutos, o exorcista começou a conjurar e ligar o Demónio em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, tratando-o de imundo, afrontando-o bravamente com epítetos que deviam ofender o mais desbragado patife. Marta fez um movimento de aflitivo desabrimento; parecia querer fugir; mas o padre prendeu-a com a estola, em harmonia com o Brognolo: Se não estiver quieta, pode-a prender com uma estola. Feitas novas e mais terríveis conjurações, o exorcista levantou-se com pavorosa solenidade, e exclamou: Exurge, Christe! adjuva nos! Levanta- te, Cristo, e auxilia-nos!
O egresso continuava as evocações ao Cristo, quando Marta caiu sem acordo.
– Vitória! – exclamou o exorcista – vitória!
E, mostrando ao brasileiro una página do livro: ouça lá, Sr. Feliciano: O sinal mais certo de que o Demónio obedeceu e se retirou de todo é o que a sagrada Escritura nos expõe no capitulo IX de S. Marcos: – Deixar a criatura por terra algum tempo como morta. Isto se viu no endemoninhado surdo e mudo que Cristo nosso bem curou, e do qual diz o texto: Et jactus est sicut mortuus. Depois, com júbilo, limpando o suor:
– Podem levá-la, deitem-na, ponham-lhe as relíquias todas debaixo do travesseiro.
Os dois não podiam facilmente levantá-la; na rigidez, como empedernida do corno, parecia colada ao pavimento. O brasileiro pedia ao exorcista que a amparasse por um dos braços; mas o frade, artista austero, respondeu que lhe era defeso pôr as mãos nas possessas. E, de feito, Carlos Baucio, na Arte do Exorcista, legisla: que os exorcistas não ponham as mãos fisicamente sobre a criatura principalmente sendo mulher (propter periculum), pois que as mulheres nem com o sinal-da-cruz se devem tocar – Mulieres nec signo crucis sunt tangendae.
Marta passara a noite muito agitada, febril, com delírio; dava risadinhas muito argentinas, falava no José Alves; sacudia a roupa com frenesi, e, quando emergia do torpor, sentava-se no leito a olhar para o tio, com uma fixidez repelente. Feliciano não se deitara, e de madrugada disse ao irmão que fosse chamar o médico, que a Marta estava com um febrão; e que levasse o Diabo o frade para as profundezas do Inferno e mais os exorcismos.
Já quando era dia, o brasileiro foi descansar um pouco na cama de D. Teresa, porque receava que se lhe pegasse a febre da mulher. Às nove horas, a governanta foi acordá-lo, muito alvoraçada, para lhe dizer que a Srª D. Marta tinha saído sozinha ao nascer do Sol e que uma mulher a encontrara já perto da casa do vigário de Caldelas, a correr, que parecia uma doidinha. Frei João recebeu também a nova da fuga, quando acabava de dizer missa em acção de graças pelo triunfo obtido sobre o Demónio. O médico chegava ao mesmo tempo, e informado das cenas dos exorcismos, disse ao varatojano injúrias que o frade não tinha dito ao Diabo; chamou ao brasileiro e ao irmão corja de estúpidos, e partiu para Caldelas com o Feliciano. O frade, insultado pelo médico, e pelos modos bruscos e desabridos do brasileiro, citou urnas palavras de Jesus que manda sacudir o pó das sandálias no limiar da casa dos ímpios, e foi-se embora. Seguiram-no algumas beatas num alto choro por longo espaço; e, quando ele desapareceu no cotovelo da estrada, houve delas que arrancavam cabelos, cheios de lêndeas; outras davam-se bofetadas, e as mais histéricas guinchavam uivos estridentes.
O Melro, o taverneiro, o compadre do Feliciano, quando elas lhe passaram à porta a chorar, atrás do missionário, saiu fora, e disse-lhes com um racionalismo brutal:
– Ah grandes coiras!

Contos do Sábado na usina: Camilo Castelo Branco:

 



XIX

Frei João não se entendia já com a sua confessada. Deviam ser grandemente disparatadas as revelações de Marta para que o varatojano desconfiasse que ela estava obsessa e que as suas visões deviam ser malfeitorias de demónio íncubo. Feliciano discordava da opinião do inexorável exorcista, quando ele o interrogava sobre miudezas de alcova. O marido contava singelamente que sua mulher passava a maior parte do dia a rezar pelo livro no oratório; que tinha dias de comer bem e outros dias de não comer nada; que não dava palavra às criadas, nem se metia no governo da casa; que com ele também falava pouco, e não desatremava. Que dormia bem e sempre na mesma cama com ele. Verdade era que às vezes ele acordava e a via sentada com os olhos postos no tecto.
– Pois é isso... – atalhava o varatojano.
– É isso quê, Sr. Frei João? – perguntava o marido.
O confessor não podia explicar-se. O seu praxista Brognolo, ampliado pelo padremestre arrábido Frei José de Jesus Maria, admoestava-o a ocultar de terceiras pessoas os sinais evidentes da obsessão de uma alma, sem estar devidamente aparelhado para o combate e na presença do inimigo. O aparelho, neste caso, era a estola, a agua benta, o latim – uma língua familiar ao Diabo. Além dos preceitos da arte, havia a inviolabilidade do segredo da confissão; e uma caridade decente aconselhava que Feliciano ignorasse as tentativas adúlteras do demónio incito, figurado na pessoa espectral do José Dias. Com o vigário de Caldelas foi menos reservado o exorcista. Asseverou-lhe que a brasileira de Prazins estava possessa, muito gravemente energúmena. O padre Osório abriu um sorriso importuno, destes que vêm de dentro em golfos involuntários como a náusea de um embarcadiço enjoado. O egresso reparou no trejeito herético da boca do padre, e perguntou-lhe se tinha alguma dúvida a pôr.
– Uma pequena dúvida, Sr. Frei João – respondeu intemeratamente o vigário. – Não posso aceitar que o Diabo, sendo filho de Deus, seja o ente perverso que faz sofrer a pobre Marta...
– O Diabo, filho de Deus! – interrompeu o varatojano, levando as mãos enclavinhadas à testa. – Padre Osório, o senhor disse uma blasfémia enorme... Santo nome de Jesus! O Diabo filho de Deus! Anátema!
–Anátema à lógica, ao raciocínio, portanto! – contraveio sereno e risonho o outro.
– A lógica? a lógica de Calvino, de Voltaire.
– Não, senhor, a lógica do professor que ma ensinou no seminário bracarense. Criador não é pai?
– É sim, e dai?
– Deus é pai de todas as suas criaturas; ora o Diabo é criatura de Deus; logo: Deus é pai do Diabo.
– Distinguo! – contrariou o varatojano.
E o vigário, sem atender à interrupção escolástica:
– Se Deus é bom, as suas criaturas não podem ser más; ora, o Demónio é mau: logo, o Demónio não pode ser criatura de Deus; mas, se o Diabo não é criatura de Deus, pergunto eu o mesmo que um negro da África perguntava ao missionário: Quem é o pai do Diabo?
– Distinguo! – insistiu o varatojano apoiado nas velhas fórmulas da dialéctica esmagadora. – Deus criou os anjos; destes houve alguns que se rebelaram contra o seu criador, e foram precipitados do Céu: são os espíritos infernais. Alguns desses anjos não desceram às trevas inferiores, e permanecem para flagelo do género humano no ar caliginoso. Aer caliginosus est quasi carcer doemonibus usque in diem judicii, diz S. Agostinho. Deus permite que os demónios vexem as criaturas, pelo bem que pode resultar às criaturas desse vexame. É o que se colhe do Evangelho de S. João: Omnia per ipsum facta sunt. Portanto, Deus permite o mal? logo: este mal é bom, porque Deus é o Sumo Bem. Verdade é que os males não são bens...
– Ia eu dizer... – atalhou o padre Osório; ao que o missionário acudiu prestes e vitoriosamente:
– Mas Deus tira os bens desses mesmos males, como diz S. Tomás: Bonum invenire potest sitie maio, sed malum non potest invenire sine bono Logo: Deus permite o mal como causa do bem; id est, permite o Demónio como exercitação saudável do género humano. Melius judicavit Deus de malis bona facere, quam mala nulla esse permittere, diz S. Agostinho; e S. Tomás ainda é mais claro e persuasivo: Divina sapientia permittit aliqua mala tieri per moios Angelos propter bona quite ex eis elicit. São doze as causas por que Deus permite que os demónios atormentem as criaturas humanas. Primeira: para que o homem obstinado na culpa seja neste mundo e no outro atormentado; segunda...
– Estou convencido, Sr. Frei João – atalhou o vigário – Vossa Reverência já esclareceu a minha dúvida. É o caso que Deus permite demónios flagelantes para depurar com eles os pecadores – uns e outros criaturas da sua divina justiça.
– É isso mesmo.
– O espírito do mau homem – do pecador que é em si um demónio interno, depura-se pela acção de outro demónio externo, ambos criaturas do seu divino amor... Percebi. Estou convencido... Deus é como um pai que azorraga o seu filho querido a ver se ele recebe as mortificações como carícias. Rico pai! – E acrescentou com amargura: – Ah! meu Frei João, receio muito que as superstições venham a desabar o catolicismo que deve a sua existência à vitória que alcançou sobre as mentiras da idolatria com as armas da verdade. Ego sum veritas.
Frei João ia fulminar segunda vez a argumentação do padre Osório, quando os outros missionários chegavam, para assistirem ao jantar de despedida em casa da brasileira.
Fechara-se a missão; os padres iam dali para Barcelos; mas Frei João, empenhado em desendemoninhar a pobre Marta, hospedou-se na quinta da Revolta, em cuja capela celebrava missa e confessava as suas filhas espirituais insaciáveis do pão dos anjos, que digeriam numa vadiagem dorminhoca, amesendadas nos adros das igrejas e nos soalheiros, catando as próprias pulgas e as vidas alheias.
Frei João andava apercebido com todos os utensílios infestos ao Diabo. Resolvido a dar-lhe batalha, armou a energúmena das mais provadas armas nos seus triunfos sobre o Inferno. Lançou-lhe ao pescoço um santo lenho, um breve da Marca, a verónica de S.. Bento, o Símbolo de Santo Atanásio, cruzinhas de Jerusalém, verónica com a cabeça de Santo Anastácio, relíquias de vários santos, umas esquírolas de ossos grudadas em farrapinhos, orações manuscritas da lavra do varatojano, metidas em saquinhos surrados da transpiração de outras obsessas.
Marta devia jejuar, como preparatório. Parece que o Demónio se compraz de habitar estômagos confortados na quentura do bolo alimentício. O exorcista jejuava também conforme o preceito dos praxistas, e aconselhava ao Feliciano que jejuasse, em harmonia com o texto de Jesus que dissera pela boca de S. Mateus que : Hoc genus demioniorum in nullo potest exire nisi oratione a jejuino. O Feliciano dizia que sim, que jejuava; mas, às escondidas do frade, comia bifes de presunto com ovos; começava a revelar ideias egoístas, um cuidado da sua alimentação e do seu repouso, certo desprezo cínico pela parte que o Diabo tomara na sua família.
Frei João de Borba da Montanha expendeu ao vigário de Caldelas os fortes sintomas que Marta apresentava de estar possessa. Eram muitos, e bastava-lhe citar os seguintes:
Ouvir a voz de José Dias que a chamava, no sonho e na vigília. E mostrava o texto: quando patiens audit quasdam voces se vocantes. Porque aborrecia a carne e o pão, e tinha grande fastio. O Osório lembrava-lhe que seriam enojos peculiares da gravidez; mas o varatojano confundia-o com o latim. Quando quis non potuit gustare panem aut cantem. Ela digeria com muita dificuldade os alimentos. Era obra do Diabo, porque o livro dizia – bem vê – mostrava Frei João ao padre Osório: Quando quis sanus cibum digerere non potest in stomacho. Chorava e não
dizia por que chorava. Diabrura com toda a certeza: – Quando lacrymas plorat et nescit quid ploret. Havia um artigo que acentuava as mais fortes presunções da obsessão íncuba de Marta. Parece que ela no confessionário se acusava de repugnâncias, de concessões violentadas, de resistências às carícias do esposo: e talvez revelasse que a imagem de José Dias intervinha nessas lutas da alcova. É o que se depreende do Sinal décimo terceiro que Frei João mostrava com o dedo no seu Brognolo, e vai em latim, como lá está, para que poucas pessoas possam alegar inteligência: – Quando vir uxori et uxor viro apropinquare non potest, quia videt aliud corpus intermedium, aut sibi videtur esse.
– Aqui é onde bate o ponto! – dizia Frei João martelando com o dedo indicador na página indecente.
– Mas não será essa visão o intróito de uma alienação mental? – perguntava o de Caldelas. – Não vê, padre João, que esta rapariga está abatida por uma grande amargura que prende com actos da sua vida passada? Não a vê tão caída, tão melancólica...
– Os melancólicos são os mais vexados pelo Demónio – replicou o egresso. – Veja Galeno e Avicena, que aqui vêm citados. – E folheou o Brognolo, até encontrar o texto triunfal.
– Aqui tem; leia, verão que a demência pode ser obra do Demónio.
O padre Osório leu com uma grande ignorância curiosa: Os demónios acometem mais os melancólicos. Primeiro, por que o humor melancólico com dificuldade se tira e é de sua natureza inobediente e rebelde. Segundo, porque o humor melancólico é mais apto para gerar diversas enfermidades incuráveis, porque, se é muito enxuto, ofende as membranas do cérebro e faz ao homem doido; se ofende os ventrículos causa apoplexia, e gera raivas, frenesis e ódios; e estes efeitos de melancolia muitas vezes os costuma causar o Demónio, etc.
– O padre Osório está-se a rir?! – invectivou Frei João abespinhado – Sabe o senhor que mais? Eu já tinha ouvido dizer ao abade de Santiago de Antas que o Sr. Padre Vigário de Caldelas não era muito seguro em matéria de fé; que tinha um bocado de fedor herético nas suas prédicas, e que dava mais importância à quina do que aos santos milagrosos na cura das maleitas.
– Se isso fede a heresia, então, Sr. Frei João, estou de todo pobre – obtemperou Osório, e continuou deixando impar de espantada indignação o missionário. – A respeito da enfermidade de Marta, sou a dizer-lhe que em vez de exorcismos quereria eu que lhe ministrassem banhos de chuva, calmantes, distracções; e, baldados estes recursos, que a internassem num hospital de alienadas, porque esta mulher é filha de uma doida, é neta de outros doidos, e pouco há-de viver quem a não vir de todo mentecapta. Além de herege sou profeta, meu caro Sr. Frei João. A sua energúmena tem infelizmente o demónio que raras vezes a ciência vence – o demónio da demência hereditária que a não se curar com a agua em chuveiro, também se não cura com a água benta. Seria bom que Vossa Reverência, antes de pôr à prova os exorcismos, ouvisse a opinião dos médicos.
– Eu sei o que dizem os médicos – e sorria com menosprezo da pobre medicina. – Eu, aqui onde me vê, com os exorcismos, com este remédio que não inventei, mas que a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo me deixou, e que ele mesmo, o divino Mestre usou, como o Sr. Padre Osório deve ter lido nos seus Evangelhos... ou nega a autoridade dos Evangelhos? Nega que Jesus Cristo expulsava demónios?
– Não senhor, eu sei a história da legião que se meteu nos porcos...
– E outras; os livros sagrados estão cheios desses factos a que o padre Osório chama histórias; não são histórias, são factos.
– Ah! Sr. Frei João! Jesus Cristo, a sua vida e os seus milagres não são história? não pertencem à história?
Mau é isso então!
A polémica prolongou-se um tanto azeda; Osório escandalizava os pios ouvidos do egresso que, pondo as mãos no peito e os olhos no Céu, exclamava com S. Paulo que era necessário que houvesse escândalos. Interrompera-os o brasileiro, dizendo que a sua sobrinha estava com um ataque e que lhe dera no jardim. Frei João entrou na alcova para onde a tinham levado em braços, e o padre Osório ficou ouvindo a revelação da governanta, que lhe dizia:
– A desgraçadinha está de todo varrida! Eu estava no tanque a passar uns lenços por água quando ela entrou no pomar sem fazer caso de mim, como se ali não estivesse viva alma. E vai depois, pôs-se a cortar rosas e a dizer que eram para o seu amado José Alves, para o seu esposo José Alves. V. Sª não me dirá quem diacho, Deus me perdoe, é este José Alves?
– E depois?
– Depois, sentou-se debaixo da ramada, esteve a chorar com o ramo das rosas muito chegado à cara e daí a pouco caiu para o lado a dar aos braços e a espernear. Eu então chamei a cozinheira e levamo-la para o quarto com os sentidos perdidos! O José Alves, quanto a mim, acho que foi derriço que ela teve em solteira. Já ouvi dizer que a casaram com o arenque do tio contra vontade... S o que tem estes casamentos...
O padre Osório não elucidou a governanta. Assim que o Feliciano lhe disse que se iam ler os exorcismos, retirou-se, pretextando deveres paroquiais, e observou-lhe:
– Não deixe mortificar muito sua sobrinha com os exorcismos, Sr. Prazins. O demónio que ela tem é a doença. Faça o que lhe disse o padre-mestre Roque, que é um velho ilustrado e virtuoso. Vá dar um giro com ela. Leve-a à capital; demore-se por lá; e, quando a vir distraída, contente e com bom apetite, volte para sua casa.
O brasileiro disse que bem sabia que os exorcismos eram chérinolas; mas que o frade se lhe metera em casa, e dizia que não se ia embora sem curar ela. Acrescentou que não podia agora sair do Minho porque estava à espera que os filhos do Cerveira de Quadros perdessem na batota do Porto a sua parte de alguns contos de réis, que
acharam por morte do pai; – que lhe convinha muito comprar a quinta da Ermida que partia com a dele, e havia outro brasileiro que a trazia de olho. Que a respeito da sobrinha tencionava levá-la a banhos do mar, e havia de comprar o Manual do Raspail, a ver o que ele dizia da moléstia, porque em Pernambuco toda a casta de doença se curava pelo Raspail, e que levasse o Diabo o frade e mais a caiporice dos exorcismos.
Que sim, que comprasse o Manual do Raspail – concordou o padre Osório, e saiu muito cansado – dizia ele à irmã – de lidar com as duas cavalgaduras.