sexta-feira, 25 de junho de 2021

Crônicas do Sábado na Usina: Lima Barreto: Mais uma vez:



Este recente crime da rua da Lapa traz de novo à tona essa questão do adultério da mulher e seu assassinato pelo marido. 
Na nossa hipócrita sociedade, parece estabelecido como direito, e mesmo dever do marido, o perpetrá-lo. Não se dá isto nesta ou naquela camada, mas de alto a baixo. 
Eu me lembro ainda hoje que, numa tarde de vadiação, há muitos anos, fui parar com o meu amigo, já falecido Ari Toom, no necrotério, no largo do Moura por aquela época. 
Uma rapariga - nós sabíamos isso pelos jornais - creio que espanhola, de nome Combra, havia sido assassinada pelo amante e, suspeitava-se, ao mesmo tempo marquereau dela, numa casa da rua de Sant'Ana. 
O crime teve a repercussão que os jornais lhe deram e os arredores do necrotério estavam povoados da população daquelas paragens e das adjacências do beco da Música e da rua da Misericórdia, que o Rio de Janeiro bem conhece. No interior da morgue 2, era a freqüência algo diferente sem deixar de ser um pouco semelhante à do exterior, e, talvez mesmo, em substância igual, mas muito bem vestida. Isto quanto às mulheres - bem entendido! 
Ari ficou mais tempo a contemplar os cadáveres. Eu saí logo. Lembro-me só do da mulher que estava vestida com um corpete e tinha só a saia de baixo. Não garanto que estivesse calçada com as chinelas, mas me parece hoje que estava. Pouco sangue e um furo bem circular no lado esquerdo, com bordas escuras, na altura do coração. 
Escrevi - cadáveres - pois o amante-cáften se havia suicidado após matar a Combra - o que me havia esquecido de dizer. 
Como ia contando, vim para o lado de fora e pus-me a ouvir os comentários daquelas pobres pierreuses de todas as cores, sobre o fato. 
Não havia uma que tivesse compaixão da sua colega da aristocrática classe. Todas elas tinham objurgatórias terríveis, condenando-a, julgando o seu assassínio coisa bem feita; e, se fossem homens, diziam, fariam o mesmo - tudo isto entremeado de palavras do calão obsceno próprias para injuriar uma mulher. Admirei-me e continuei a ouvir o que diziam com mais atenção. Sabem por que eram assim tão severas com a morta? 
Porque a supunham casada com o matador e ser adúltera. 
Documentos tão fortes como este não tenho sobre as outras camadas da sociedade; mas, quando fui jurado e, tive por colegas os médicos da nossa terra, funcionários e doutos de mais de três contos e seiscentos mil-réis de renda anual como manda a lei sejam os juizes de fato escolhidos, verifiquei que todos pensavam da mesma forma que aquelas maltrapilhas rôdeuses do largo do Moura. 
Mesmo eu - já contei isto alhures - servi num conselho de sentença que tinha de julgar um uxoricida e o absolvi. Fui fraco, pois a minha opinião, se não era falhe comer alguns anos de cadeia, era manifestar que havia, e no meu caso completamente incapaz de qualquer conquista, um homem que lhe desaprovava a barbaridade do ato. Cedi a rogos e, até, alguns partidos dos meus colegas de sala secreta. 
No caso atual, neste caso da rua da Lapa, vê-se bem como os defensores do criminoso querem explorar essa estúpida opinião de nosso povo que desculpa o uxoricídio quando há adultério, e parece até impor ao marido ultrajado dever de matar a sua ex-cara-metade. 
Que um outro qualquer advogado explorasse essa abusão bárbara da nossa gente, vá lá; mas que o Senhor Evaristo de Morais, cuja ilustração, cujo talento e cujo esforço na vida me causam tanta admiração, endosse, mesmo profissionalmente, semelhante doutrina é que me entristece. O liberal, o socialista Evaristo, quase anarquista, está me parecendo uma dessas engraçadas feministas Brasil, gênero professora Daltro, que querem a emancipação da mulher unicamente para exercer sinecuras do governo e rendosos cargos políticos; mas que, quando se trata desse absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos de suas mulheres, por isso ou aquilo, nada dizem e ficam na moita. 
A meu ver, não há degradação maior para a mulher do que semelhante opinião quase geral; nada a degrada mais do que isso, penso eu. Entretanto... 
Às vezes mesmo, o adultério é o que se vê e o que não se vê são outros interesses e despeitos que só uma análise mais sutil podia revelar nesses lagos. 
No crime da rua da Lapa, o criminoso, o marido, o interessado no caso, portanto, não alegou quando depôs sozinho que a sua mulher fosse adúltera; entretanto, a defesa, lemos nos jornais, está procurando "justificar" que ela o era. 
O crime em si não me interessa, senão no que toca à minha piedade por ambos; mas, se houvesse de escrever um romance, e não é o caso, explicaria, ainda me louvando nos jornais, a coisa de modo talvez satisfatório. 
Não quero, porém, escrever romances e estou mesmo disposto a não escrevê-los mais, se algum dia escrevi um, de acordo com os cânones da nossa crítica; por isso guardo as minhas observações e ilusões para o meu gasto e para o julgamento da nossa atroz sociedade burguesa, cujo espírito, cujos imperativos da nossa ação na vida animaram, o que parece absurdo, mas de que estou absolutamente certo - O protagonista do lamentável drama da rua da Lapa. 
Afastei-me do meu objetivo, que era mostrar a grosseria, a barbaridade desse nosso costume de achar justo que o marido mate a mulher adúltera ou que a crê tal. 
Toda a campanha para mostrar a iniqüidade de semelhante julgamento não será perdida; e não deixo passar vaza que não diga algumas toscas palavras, condenando-o. 
Se a coisa continuar assim, em breve, de lei costumeira, passará a lei escrita e retrogradamos às usanças selvagens que queimavam e enterravam vivas as adúlteras. 
Convém entretanto lembrar que, nas velhas legislações, havia casos de adultério legal. Creio que Sólon e Licurgo os admitia; creio mesmo ambos. Não tenho aqui o meu Plutarco. Seja, porém, como for, não digo que todos os adultérios são perdoáveis. Pior do que o adultério é o assassinato; e nós queremos criar uma espécie dele baseado na lei. Bagatelas, s.d.

Contos do Sábado na Usina: Rubem Fonseca : A Confraria dos Espadas:



Fui membro da Confraria dos Espadas. Ainda me lembro de quando nos reunimos para escolher o nome da nossa Irmandade. Argumentei, então, que era importante para nossa sobrevivência que tivéssemos nome e finalidade respeitáveis, dei como exemplo o que ocorrera com a Confraria de São Martinho, uma associação de apreciadores de vinho que, como o personagem do Eça, venderiam a alma ao diabo por uma garrafa de Romanée-Conti 1858, mas que ficou conhecida como uma fraternidade de bêbedos e, desmoralizada, fechou suas portas, enquanto a Confraria do Santíssimo, cujo objetivo declarado é promover o culto de Deus sob a invocação do Santíssimo Sacramento, continuava existindo. Ou seja, precisávamos ter título e objetivo dignos. Meus colegas responderam que a sociedade era secreta, que de certa forma ela já nascia (isso foi dito ironicamente) desmoralizada, e que seu nome não teria a menor importância, pois não seria divulgado. Acrescentaram que a maçonaria e o rosa-cruzismo tinham originalmente títulos bonitos e respeitáveis objetivos filantrópicos e acabaram sofrendo todo tipo de acusação, de manipulação política a seqüestro e assassinato. Eu insisti, pedi que fossem sugeridos nomes para a Confraria, o que acabou sendo feito. E passamos a examinar as várias propostas sobre a mesa. Depois de acaloradas discussões, sobraram quatro nomes. Confraria da Boa Cama foi descartado por parecer uma associação de dorminhocos; Confraria dos Apreciadores da Beleza Feminina, além de muito longo, foi considerado reducionista e esteticista, não nos considerávamos estetas no sentido estrito, Picasso estava certo ao odiar o que denominava jogo estético do olho e da mente manejados pelos connaisseurs que "apreciavam" a beleza e, afinal, o que era "beleza"? Nossa confraria era de Fodedores e, como disse o poeta Whitman num poema corretamente intitulado "A Woman Waits for Me", sexo contém  tudo, corpos, almas, significados, provas, purezas, delicadezas, resultados, promulgações, canções, comandos, saúde, orgulho, mistério maternal, leite seminal, todas as esperanças, benefícios, doações e concessões, todas as paixões, belezas, delícias da terra. Confraria dos Mãos Itinerantes, sugerido por um dos poetas do nosso grupo (tínhamos muitos poetas entre nós, evidentemente), que ilustrou sua proposta com um poema de John Donne - "Seduction. License my roving hands, and let them go before, behind, between, above, below" - ainda que pertinente pela sua singeleza ao privilegiar o conhecimento através do tato, foi descartado por ser um símbolo primário dos nossos objetivos. Enfim, depois de muita discussão, acabou sendo adotado o nome Confraria dos Espadas. Os Irmãos mais ricos foram seus principais defensores: os aristocratas são atraídos pelas coisas do submundo, são fascinados pelos delinquentes, e o termo Espada como sinônimo de Fodedor veio do mundo marginal, espada fura e agride, assim é o pênis tal como o vêem, erroneamente, bandidos e ignorantes em geral. Sugeri que se algum nome simbólico fosse usado por nós deveria ser o de uma árvore ornamental cultivada por causa de suas flores, afinal o pênis é conhecido vulgarmente como pau ou cacete, pau é o nome genérico de qualquer árvore em muitos lugares do Brasil (mas, corretamente, não o é dos arbustos, que têm um tronco frágil) só que meu arrazoado foi por água abaixo quando alguém perguntou que nome a Confraria teria, Confraria dos Paus?, dos Caules?, e eu não soube responder. Espada, conforme meus opositores, tinha força vernácula, e a rafaméia mais uma vez dava sua valiosa contribuição ao enriquecimento da língua portuguesa. 
Como membro da Confraria dos Espadas eu acreditava, e ainda acredito, que a cópula é a única coisa que importa para o ser humano. Foder é viver, não existe mais nada, como os poetas sabem muito bem. Mas era preciso uma Irmandade para defender esse axioma absoluto? Claro que não. Havia preconceitos, mas esses não nos interessavam, as repressões sociais e religiosas não nos afetavam. Então qual foi o objetivo da fundação da Confraria? Muito simples, descobrir como atingir, plenamente, o orgasmo sem ejaculação. A Rainha de Aragão, como conta Montaigne, bem antes desse antigo reino unir-se ao de Castela, no século XV, depois de madura deliberação do seu Conselho privado, estabeleceu como regra, tendo em vista a moderação requerida pela modéstia dentro dos casamentos, que o número de seis cópulas por dia era um limite legal, necessário e competente. Ou seja, naquele tempo um homem e uma mulher copulavam, de maneira competente e modesta, seis vezes por dia. Flaubert, para quem "une once de sperme perdue fatigue plus que trois litres de sang" (já falei disso num dos meus livros), achava as seis cópulas por dia humanamente impossíveis, mas Flaubert não era, sabemos, um Espada. Ainda hoje acredita-se que a única maneira de gozar é através da ejaculação, apesar de os chineses há mais de três mil anos afirmarem que o homem pode ter vários orgasmos seguidos sem ejacular, e assim evitar a perda da onça de esperma que fatiga mais que uma hemorragia de três litros de sangue. (Os franceses chamam de petite mort a exaustão que se segue à ejaculação, por isso um dos seus poetas dizia que a carne era triste, mas os brasileiros dizem que a carne é fraca, em todos os sentidos, o que me parece mais pungente, é pior ser fraco do que triste.) Calcula-se que um homem ejacula em média cinco mil vezes durante sua vida, expelindo um total de un trilhão de espermatozóides. Tudo isso para que e por quê? Porque na verdade somos ainda uma espécie de macaco, e todos funcionamos como um banco genético rudimentar quando bastaria que apenas alguns assim operassem. Nós, da Confraria dos Espadas, sabíamos que o homem, livrando-se de sua atrofia simiesca, apoiado pelas peculiares virtudes de sua mente (nosso cérebro não é, repito, o de um orangotango), poderia ter vários orgasmos consecutivos sem ejacular, orgasmos que lhe dariam ainda mais prazer do que aqueles de ordem seminal, que fazem do homem apenas um instrumento cego do instinto de preservação da espécie. 
E esse resultado nos encheu de alegria e orgulho, havíamos conseguido, através de elaborados e penosos exercícios físicos e espirituais, alcançar o Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, que ficou conhecido entre nós pelo acrônimo MOSE. Não posso revelar que "exercícios" eram esses pois o juramento de manter o segredo mo impede. A rigor eu nem mesmo poderia falar do assunto, ainda que desta maneira restrita. 
A Confraria dos Espadas funcionou muito bem durante os seis meses que se seguiram à nossa extraordinária descoberta. Até que um dia um dos nossos Confrades, poeta como eu, pediu a convocação de uma Assembléia Geral da Confraria para relatar um assunto que considerava de magna importância. 
A mulher dele percebendo a não ocorrência de emissio seminis durante a cópula, concluíra que isso podia ter várias razões, que em síntese seriam: ou ele estava economizando o esperma para outra mulher, ou então fingia sentir prazer quando na verdade agia mecanicamente como um robô sem alma. A mulher chegou mesmo a suspeitar que nosso colega fizera um implante no pênis para mantê-lo sempre rijo, alegação que ele facilmente provou ser infundada. Enfim, a mulher do poeta deixara de sentir prazer na cópula, na verdade ela queria a viscosidade do esperma dentro da sua vagina ou sobre a sua pele, essa secreção pegajosa e branca lhe era um símbolo poderoso de vida. Sexo, como queria Whitman, afinal incluía o leite seminal. A mulher não disse, mas com certeza o exaurimento dele, macho, representava o fortalecimento dela, fêmea. Sem esses ingredientes ela não sentia prazer e, aqui vem o mais grave, se ela não sentia prazer o nosso confrade também não o sentia, pois nós, da Confraria dos Espadas, queremos (necessitamos) que nossas mulheres gozem também. Esse é o nosso moto (não o cito em latim para não parecer pernóstico, já usei latim antes): Gozar Fazendo Gozar. Ao fim da explanação do nosso Confrade a assembléia ficou em silêncio. 
A maioria dos membros da Confraria estava presente. Acabávamos de ouvir palavras inquietantes. Eu, por exemplo, não ejaculava mais. Desde que conseguira dominar o Grande Segredo da Confraria, o MOSE, eu não produzia mais uma gota sequer de sêmen, ainda que todos os meus orgasmos fossem muito mais prazerosos. E se a minha mulher, que eu amava tanto, pedisse, e ela poderia fazer isso a qualquer momento, que eu ejaculasse sobre seus delicados seios alabastrinos? Perguntei a um dos médicos da Confraria - havia vários médicos entre nós - se eu poderia voltar a ejacular. A medicina nada sabe sobre sexo, essa é uma lamentável verdade, e o meu colega respondeu que isso seria muito difícil, tendo em vista que eu, como todos os outros, criara uma forte dependência àquele condicionamento físico e espiritual; que ele já tentara, usando todos os recursos científicos a que tinha acesso, anular essa função sem o conseguir. Todos nós, ao ouvir a terrível resposta, ficamos extremamente consternados. Logo outros Confrades disseram que enfrentavam o mesmo problema, que suas mulheres começavam a achar artificiosa, ou então assustadora, aquela inesgotável ardência. Acho que me tornei um monstro, disse o poeta que trouxera o problema ao nosso exame coletivo. 
E assim terminou a Confraria dos Espadas. Antes da debandada fizemos todos um juramento de sangue de que jamais revelaríamos o segredo do Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, que ele seria levado para o nosso túmulo. Continuamos tendo uma mulher à nossa espera, mas essa mulher tem de ser trocada constantemente, antes de descobrir que somos diferentes, estranhos, capazes de gozar com infinita energia sem derramamento de sêmen. Não podemos nos apaixonar, pois nossas relações são efêmeras. Sim, eu também me tornei um monstro e meu único desejo na vida é voltar a ser um macaco.

Contos do Sábado na Usina: Victor Giudice: O arquivo:






No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. 
joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe. 
No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor. 
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição. 
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa. 
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial. 
Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento. 
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança. 
Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou. 
Prosseguiu a luta. 
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu. joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias. 
Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal. 
Respirou descompassado. 
- Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor. joão baixou a cabeça em sinal de modéstia. 
- Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento. 
O coração parava. 
- Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto. 
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam. 
- De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente? 
Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho. 
Nesta noite, joão não pensou emnada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio. 
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão. 
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios. 
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo. 
O corpo era um monte de rugas sorridentes. 
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia: 
- Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários. 
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir: 
- Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria. 
O chefe não compreendeu: 
- Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha? 
A emoção impediu qualquer resposta. 
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, 
planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento. 
joão transformou-se num arquivo de metal.

Contos do Sábado Na usina: Márcio Barbosa: Viver outra vez:

 


Com o solzinho da tarde, ela entrou no apartamento. Sábado.

-   A entrevista, lembra?

Olhou as roupas espalhadas, móveis empoeirados e ele desculpou-se:

-   Poucos vêm aqui. Achava que minha próxima visita seria a morte. Observou-a. Pequena, inquieta, mãozinhas curiosas nos discos e livros. Depois, pernas cruzadas - gravador ligado - murmurou, voz rouca:

-   O terreiro do bairro quer fazer um trabalho sobre memória. Ele, aborrecido, negou depoimento. Tentava esquecer o passado - fantasma que se escondia sob a cama.

-   O senhor ajudou a fundar associações, a desmascarar a ideologia da falsa democracia racial - ela insistiu. Um dia fora professor. Mas ela não sabia que agora não era mais nada? Que, há algum tempo, o coração vinha ameaçando parar?

-   Minha filha, esqueça-se de mim.

Com o esforço de levantar-se arregalou os olhos. Ela assustou-se:

-   Que foi?

-   Tonturas, já passa. Caiu, sem dizer mais nada.

Apavorada, ela procurou vizinhos. Um taxista veio. Gordo, dirigia com a barriga encostada ao volante. No pronto-socorro lotado, brigaram para serem atendidos. Um jovem médico os recebeu, perguntando:

-   Seu pai? É só pressão um pouco alta. Vocês da raça negra são muito sujeitos a ter hipertensão. Receitou maleato de enalapril e mandou-os embora. Na volta, no táxi, ela ouviu-o, voz trêmula de velho, sussurrar "obrigado".

-   Por fazer o senhor ficar nervoso - sorriu -, ir para o hospital?

-   Por se preocupar comigo. Sabe, já estou no fim... Ele olhou pela janela do carro. Viu crianças sem camisas jogando futebol nas ruas.

-   Só não pensei - continuou - que fosse terminar viúvo, sem filhos, aqui, neste bairro, que é quase outra cidade. Quem povoou Perdizes, Bela Vista? A negrada. Minha família sempre morou lá.

-   Nasci aqui - ela afirmou. - É legal. Um pouco perigoso, ultimamente. Uns amigos morrendo por causa de drogas. Dezesseis, dezessete anos. Não lhe parece que existe um plano para exterminar nosso povo? O que o tocou, quando ela ergueu o rosto e fitou-o? Os olhos úmidos? Quase menina, tão preocupada com sua gente. Queria dizer-lhe para não se iludir, mas a frase ficou presa dentro do peito, mesmo quando ela voltou outras vezes, depois do trabalho, para ver como estava. Um dia chegou, tirou o walk-man, passou os dedos nos móveis e exclamou:

-   Tem tanto pó!

-   Foi acumulando com as decepções - ele brincou.

No dia seguinte, de bermudas, coxas roliças à mostra, ela espanou, varreu. Não podia ver nada envelhecer? Pensava, com a alegria de menina, em remoçá-lo? Num domingo, chegou com discos:

-   Racionais, conhece? Bom pra caramba.

Ouviu e gostou. Parecia escutar a si mesmo nos versos dos raps, rapaz crescendo revoltado nos cortiços do Bixiga. Mas o que a moça queria, enchendo o lugar com música, verificando se comia direito, arrumando as camisas no guarda-roupa?

-   Vê-lo recuperar-se - ela dizia. - Já está mais moço.

Acreditava no poder de cura de mãos movidas por carinho. Deu-lhe as suas e levou-o a bares onde pagodeiros punham a alma para percutir os instrumentos. Dançou com ele, sob olhares curiosos, diferentes daqueles que os vizinhos lhes dirigiam, quando passavam nas ruas, mãos entrelaçadas. Ouvia-os dizer: Podia ser sua filha, que sem-vergonha. Ela nem ligava. O velho mais desiludido tornava-se o mais animado. O homem que ajudara seu povo a se organizar despertava, às vezes, no trovão da gargalhada. Mas, num sábado, tristezas de outrora emergiram no poço dos olhos. Ao vislumbrá-las, fez de tudo para levá-lo à praia. Pularam sete ondas, despachando as coisas ruins que pesavam nos ombros. Gotas de água em seus cabelos eram minúsculos sóis. Deitadinhos na areia, contou a ele sobre o pai, disse que jamais o conhecera. Os olhos marejaram, uma sombra passou por seu rosto. Então, mudou de assunto e puxou-o para brincar na água. Voltaram da viagem à noite. Entraram no pequeno apartamento rindo de tudo, de nada. Dono ainda de olhos tristes, mas animado. Bateu-lhe no peito sem feri-lo. Acariciou sua carapinha. Depois, olhou-o durante um bom tempo e beijou sua boca sorridente. Idade pra ser o pai?

-   Sou virgem - ela murmurou. - Não posso engravidar. As roupas ficaram sobre o tapete, espalhadas. De mãos dadas na padaria, no mercado, ouviam os vizinhos: É a sobrinha?- uns perguntavam. Amante. - outros diziam, baixinho. Ele ia receber a aposentadoria e ficava no ponto de ônibus meia hora. Enquanto outros reclamavam, permanecia impassível, dono de um segredo. É a concubi na. - Parecia escutar alguém sussurrando. Sentia-se leve, até ser acometido por uma dorzinha besta no peito. No centro da sala, o homem sentado no sofá é uma pálida lembrança daquele que, outrora, acreditara na sua gente. Que fantasmas o acompanhariam ao cemitério? Ela assustou-se, ao vê-lo com as mãos sobre o peito.

-   Coração?

-   Um coração enfraquecido pelas desilusões. Por que não falava desses fantasmas?

-   Não confia em mim? Quer dizer que eu não sou nada?

-   O gravador - ele pediu, imediatamente após ouvi-la falar. Esperou-a tirar o sony da bolsa e continuou:

-   No início do século, previa-se o desaparecimento da nossa, não digo raça, que existe a raça humana. E melhor etnia. As elites brasileiras queriam um país sem negros e mulatos. Quando soube dessas idéias, a luz da revolta me iluminou. Uns amigos falaram-me sobre Zumbi, sobre os quilombos, sobre união. Acreditei que a união fosse possível. Mas o sonho se desfez tão rápido! Os amigos se cansaram. O nosso povo? Desinteressado, apático. Não sei - enxugou uma lágrima - como não desapareceu.

-   O que vocês fizeram foi bonito.

-   São coisas que eu preciso esquecer.

-   Hoje os problemas são os mesmos. Mas há pessoas jovens, querendo aprender, como eu. Quero acreditar em algo. Nosso povo sobreviveu porque acreditou na vida.

-   É verdade. Parece que nós temos de adquirir uma força tão grande, parece que um amor pela vida se enraíza tão fundo dentro da gente, que nada nos abala com facilidade. E se a gente cai, é pra levantar mais forte; se apanhamos, voltamos a brigar com mais garra; se choramos, também aprendemos a extrair, lá de dentro, uma gargalhada tão gostosa, que é como se toda a alegria do mundo coubesse em nosso peito. Somos negros e temos essa força. Isso é maravilhoso. Ela abraçou-o, beijou-o. Só então ele se deu conta de que falara com entusiasmo. Uma parte do sonho ainda vivia. Mas as dores no peito persistiram. Ela vinha mais vezes, preparava arroz integral, moderou no sal e tirou o açúcar branco.

-   A pinga com carqueja eu não jogo fora - ele protestou. Era para diabetes, um amigo tinha ensinado. Ficava irritado com os excessos de cuidados. No fundo, sentia falta quando ela não vinha. A menina de uma geração tão diferente, com quem reaprendia a viver. A moça que acreditava nas coisas em que ele acreditara. Num domingo, sentindo o relógio no peito se acelerar, disse-lhe: -   Não vou durar muito. Só lamento não ter tido filhos. Notou que ela ficou calada, pensativa. Escondia algo? Veio na segunda-feira. Preocupada, tensa. Acusou-o de cerceá-la. Tensão pré-menstrual? Que havia?

-   Estou grávida - disse, por fim. - Não posso. Tenho estudos. Também não quero um filho pra crescer como eu, sem pai. Foi até a janela. Suas lágrimas rolavam como a chuva fora.

-   Um filho? - ele perguntou, incrédulo. - A soma do meu e do teu sonho. Olhe - pegou-lhe a mão e pôs sobre seu próprio peito - parou de doer. Podemos criar esse filho, se você quiser. - Então abraçou-a e, com a voz embargada, soluçando, falou: - Te amo. Quando eles passavam, grávidos, ouviam os vizinhos comentarem: É o filho - uns diziam.

O neto - outros apostavam.

-   É o amor nos recriando - diziam um ao outro.


Contos do Sábado na Usina: André Sant'Anna: O importado vermelho de Noé:



Está chovendo dinheiro em Nova York. Deu no rádio. Deu na CBN. E, com o meu carro vermelho, importado da Alemanha, logo estarei no aeroporto e voarei para Nova York pela American Airlines. O meu carro vermelho, importado da Alemanha, é veloz. Eu tenho poder de compra e por isso comprei o meu carro vermelho, importado da Alemanha. Eu tenho empresas e sou digno do visto para ir a Nova York. O dinheiro que chove em Nova York é para pessoas com poder de compra. Pessoas que tenham um visto do consulado americano. O dinheiro que chove em Nova York também é para os novaiorquinos. São milhares de dólares. Ergui empresas, venci obstáculos, ultrapassei limites, atingi todas as metas e agora vou para Nova York, onde está chovendo dinheiro. Possuo as qualificações necessárias, os dotes exigidos, e sou livre para ir a Nova York, onde está chovendo dinheiro. As negociações estão encerradas. Meu cérebro de administrador é perspicaz e tem o veredicto final. Estou indo para Nova York, onde está chovendo dinheiro. Sou um grande administrador. Sim, está chovendo dinheiro em Nova York. Deu no rádio. Vejo que há pedestres invadindo a via onde trafega o meu carro vermelho, importado da Alemanha. Vejo que há carros nacionais trafegando pela via onde trafega o meu carro vermelho, importado da Alemanha. Ao chegar em Nova York, tomarei providências. O meu cérebro de administrador sabe que providências tomar. Procurei o desenvolvimento em cada instante de minha vida. Sei exatamente onde quero chegar. Eu quero ir para Nova York, onde está chovendo dinheiro. Será uma grande aliança. Eu e o dinheiro que está chovendo em Nova York. Uma fusão gloriosa. Agora compreendo os desígnios da natureza, a intenção do destino. Agora posso compreender Deus, que está ao meu lado e faz chover dinheiro em Nova York. Enxergo claramente a diferença entre o meu carro vermelho, importado da Alemanha, e os carros nacionais. A diferença que me separa definitivamente dos pedestres que invadem a via onde trafega o meu carro vermelho, importado da Alemanha. Voarei para Nova York pela American Airlines e Deus estará comigo, indo para Nova York. Deus está em toda Nova York. Deus é também um grande administrador, como eu, Paulo e os novaiorquinos. É grande a empresa de Deus, como são grandes as minhas empresas. Deus toma as providências necessárias e faz chover dinheiro em Nova York. Milagre! Deu no rádio. Está chovendo dinheiro em Nova York e eu vou para Nova York. Está chovendo dinheiro em Nova York! Estou indo velozmente, no meu carro vermelho, importado da Alemanha, para Nova York. Estou indo para Nova York numa velocidade incrível, deixando para trás os pedestres e os carros nacionais. Deixando para trás um passado impecável, rumo a um futuro espetacular. Deus fala diretamente à minha consciência. Deus faz chover dinheiro em Nova York e não aqui, na Marginal Tietê, onde só chove chuva de água normal. A grande recompensa de Deus é exclusiva dos grandes administradores como eu, Paulo e os novaiorquinos. Caso contrário, choveria dinheiro aqui mesmo, na Marginal Tietê, onde só chove chuva de água normal e os carros nacionais impedem a passagem veloz do meu carro vermelho, importado da Alemanha. Aqui, onde o Rio Tietê recebe a chuva de água normal, sem um dólar sequer no meio, que se mistura ao esgoto horroroso constituído pelo excremento dos pretos desta cidade e pelo subproduto indesejável da insignificante indústria nacional. Está decidido: a partir deste momento minhas empresas terão capital internacional e flutuarão no rio global de dinheiro que chove em Nova York. Estou a um passo do futuro magnífico, planejado, pessoalmente, por Deus, para mim, para Paulo e para os novaiorquinos. Basta esperar que os insuportáveis carros nacionais abram passagem para o meu veloz carro vermelho, importado da Alemanha. Dividirei o Rio Tietê em dois e atravessarei sozinho no meu carro vermelho, importado da Alemanha, rumo à terra prometida, que é Nova York, onde está chovendo dinheiro. Vou sozinho para Nova York. Está decidido. É uma decisão acertada como todas as decisões que o meu cérebro de administrador toma. A chuva de água normal que cai sobre o Rio Tietê não impedirá que eu avance cada vez mais. Os carros nacionais que atrapalham a veloz passagem do meu carro vermelho, importado da Alemanha, serão esmagados pelos anjos vingadores de Deus. A chuva cai, mas é só água normal. Não é como em Nova York, onde está chovendo dinheiro. Ao chegar em Nova York, tomarei as providências necessárias. Mandarei um e-mail a Paulo, que é um grande administrador e também vai para Nova York. É preciso substituir o prefeito, que é preto. A culpa é do prefeito. A chuva de água normal, que faz subir o Rio Tietê. O subproduto da medíocre indústria nacional. A péssima qualidade dos carros nacionais. Os buracos que deformam o asfalto das lentas estradas de rodagem nacionais. O prefeito é preto. A culpa é do prefeito e do povo que votou nesse prefeito preto. Eu também votei nesse prefeito preto, mas foi a pedido de Paulo. Nunca vou esquecer o que Paulo fez pelas empresas. Paulo é meu amigo. Paulo é um grande administrador, como eu e os novaiorquinos. Paulo já rompeu com o prefeito preto. Me perdoe, Deus, por ter ajudado a financiar a campanha desse prefeito preto. Me perdoe, Deus. Na época das eleições eu ainda não havia recebido vossas instruções. Mas agora deu no rádio. Está chovendo dinheiro em Nova York e eu preciso ir para Nova York. Em Nova York poderei voar livremente, velozmente, no meu carro vermelho, importado da Alemanha. Em Nova York, meu carro vermelho, importado da Alemanha, jamais será assaltado pelos assaltantes pretos. Em Nova York não chove chuva de água normal. Chove dinheiro em Nova York! Mas é só para mim, Paulo e os novaiorquinos. Meu enorme capital vai se fundir ao enorme capital do dinheiro que chove em Nova York. Basta que pare de chover água normal aqui, na Marginal Tietê. Basta que os carros nacionais sejam eliminados. Basta que o prefeito preto fique branco e deixe de ser preto como água do Rio Tietê ao se misturar com os excrementos dos pretos nacionais. Deus só está testando a minha fé, por isso não pára de chover água normal aqui, na Marginal Tietê. Por isso, os carros nacionais continuam a obstruir a passagem veloz do meu carro vermelho, importado da Alemanha. Eu tenho fé, Deus. Eu acredito, Deus. Deu no rádio: está chovendo dinheiro em Nova York. E logo eu estarei em Nova York, onde está chovendo dinheiro. Oh! Não! O Rio Tietê está subindo, subindo, subindo... Eu sei de quem é a culpa. A culpa é do prefeito. O prefeito tem que tomar uma providência. As bactérias nojentas do Rio Tietê estão invadindo a via onde o meu carro vermelho, importado da Alemanha, tenta trafegar. O meu carro vermelho, importado da Alemanha, tenta trafegar velozmente, mas os carros nacionais impedem seu veloz tráfego. No aeroporto, o vôo da American Airlines está esperando por mim. Eu tenho um visto para entrar nos Estados Unidos. Eu tenho uma passagem na primeira classe do vôo da American Airlines que vai para Nova York. Eu quero ir para Nova York. Está chovendo dinheiro em Nova York. Deus, leve o meu carro vermelho, importado da Alemanha, para o aeroporto, onde o vôo da American Airlines espera por esse seu devoto, grande administrador branco, perspicaz, amigo de Paulo. Deus, eu sou sua imagem e semelhança, Deus. Eu sou belo, Deus. Eu creio, Deus. Deu no rádio. Está chovendo dinheiro em Nova York e o meu carro vermelho, importado da Alemanha, está preso entre os carros nacionais, às margens do Rio Tietê, onde a água normal e o excremento dos pretos, por culpa do prefeito, começam a invadir a via onde o meu carro vermelho, importado da Alemanha, não consegue sair velozmente do lugar. Não perderei a calma. Tempo há. A American Airlines sempre espera por seus passageiros brancos da primeira classe. Sou um administrador objetivo. A água normal que chove no Rio Tietê não pode deter a força de Deus, a velocidade do meu carro vermelho, importado da Alemanha. Tenho direitos garantidos por lei. As empresas são minhas. O carro vermelho, importado da Alemanha, que me levará às asas da American Airlines, é meu. Ainda tenho um almoço de negócios em Nova York para resolver negócios urgentíssimos. São negócios de fusão com o capital internacional. Negócios relacionados ao dinheiro que está chovendo em Nova York. Negócios diretamente relacionados a Deus, que faz chover dinheiro em Nova York. Deus exige a minha presença em Nova York. O prefeito deve priorizar a retirada dos carros nacionais que impedem a passagem velocíssima do meu carro vermelho, importado da Alemanha. Paulo! Onde está Paulo? Onde está o prefeito? Paulo, retire prefeito. Eu quero ir para Nova York. Pretos. vejo pretos, carros nacionais e água normal misturada ao subproduto da fraquíssima indústria nacional juntamente com o excremento dos pretos. É a investida do Demônio preto contra o meu carro vermelho, importado da Alemanha. Não admito. Não posso admitir. Deus está me pondo à prova. Não se preocupe, Deus. Jamais abandonarei minha missão. Deus, me desculpe. Minha fé fraqueja. São as bactérias do Rio Tietê por culpa do prefeito. Sim, Deus. Me reunirei ao meu amigo Paulo e aos novaiorquinos e me fundirei aos milhares de dólares que estão chovendo em Nova York. A liberdade internacional está logo ali, ali... Eu vejo. Eu vejo, meu Deus. Está chovendo dinheiro em Nova York. E eu posso ver o dinheiro que chove em Nova York. Deu no rádio. Está chovendo dinheiro em Nova York. Eu posso ver. Deu no rádio. A água normal que chove no Rio Tietê está atingindo níveis insuportáveis. Uma falta de respeito ao meu poder aquisitivo, ao meu poder de compra. Eu tenho poder de compra e não posso admitir que o afrontoso Rio Tietê com o excremento dos pretos e mais esses abjetos carros nacionais impeçam a trajetória veloz e perfeita do meu carro vermelho, importado da Alemanha, rumo à Nova York, onde está chovendo dinheiro. São milhares de dólares em Nova York e milhares de dejetos humanos pretos aqui, na Marginal Tietê, na via onde meu carro vermelho, importado da Alemanha, já não trafega mais. Deus...Deus, exijo uma providência. O prefeito tem que tomar uma providência. Preciso possuir dinheiro em Nova York. Preciso possuir as mais belas mulheres do planeta em Nova York. Eu tenho direitos. Direitos humanos. Mas, não. Os direitos humanos servem apenas aos interesses dos criminosos pretos, que infestam as cadeias nacionais. Eu tenho direitos humanos internacionais, garantidos pela lei de Deus que me obriga a ir para Nova York. Eu tenho deveres para com Deus. Saiam da frente do meu carro vermelho, importado da Alemanha, seus demoníacos carros nacionais dos pretos. É uma necessidade urgente possuir as mais belas mulheres do planeta em Nova York. Eu sou um belo com poder aquisitivo. Meu poder aquisitivo é imensurável, sim sim. Não... Não... Estou cercado de água normal dos pretos sem dólares como aqueles dólares que chovem em Nova York. Os dólares que serão meus, de Paulo, dos novaiorquinos, de Deus, de Deus, de Deus. Tenho um jantar urgentíssimo em Nova York, onde está chovendo dinheiro. Dólares enviados especialmente por Deus, para mim. Tenho um jantar com as mais belas mulheres do planeta em Nova York: Julia Roberts, Cindy Crawford, Nicole Kidman, Kim Basinger, Catherine Deneuve que sempre vai a Nova York como eu. Naomi Campbell também. Naomi é preta, mas é muito gostosa. Ela não é igual a esse prefeito preto que permite a obstrução do meu carro vermelho, importado da Alemanha, pelos miseráveis carros nacionais, pela catastrófica chuva nacional normal, pelo Rio Tietê, pretíssimo, cada vez mais cheio, invadindo a via onde meu carro vermelho, importado da Alemanha, não consegue mais se mover. Deus! Deus! Estou imóvel enquanto chove dinheiro em Nova York. A água do Rio Tietê e os excrementos pretos dos pretos e o subproduto da pouco competitiva indústria nacional estão se aproximando do meu carro vermelho, importado da Alemanha. Meu carro vermelho, importado da Alemanha, vai ser tocado por excrementos pretos. Não. Isso não vai acontecer. AAmerican Airlines vai me levar a Nova York, onde está chovendo dinheiro. E eu, um belo administrador, amigo de Paulo, escolhido por Deus, aguardado pelos novaiorquinos, me fundirei ao dinheiro que chove em Nova York, ao capital estratosférico, ao corpo nu de Julia Roberts. Me fundirei às mais belas mulheres do planeta que estão em Nova York. Começarei a tomar providências imediatamente, retirando o prefeito preto e os carros nacionais que infestam a via onde meu carro vermelho, importado da Alemanha, deveria estar trafegando. Minhas empresas possuem grande agilidade. Meu cérebro é uma máquina de última geração. Sou uma águia na administração. Você está deposto, terrível prefeito preto. Exijo direitos plenos sobre a alta tecnologia do meu carro vermelho, importado da Alemanha, e sobre os aparelhos computadorizados do vôo da American Airlines que me levará à Nova York, onde chove dinheiro. Os carros nacionais para pretos de baixo poder de compra logo serão levados pela corrente de água normal e excrementos dos pretos. Os inconsistentes carros nacionais não vão resistir a esta enchente preta de água normal. Eu sabia. Deus está mostrando o seu poder fazendo chover água normal aqui, nesta via ao lado do Rio Tietê. Os carros nacionais e os pretos estão sendo destruídos. Quando toda esta via automotiva estiver submersa nos excrementos pretos e no subproduto da fétida indústria nacional, Deus retirará da água normal o meu carro vermelho, importado da Alemanha, fazendo com que a velocidade internacional do meu carro vermelho, importado da Alemanha, me leve ao aeroporto onde o vôo da American Airlines, para Nova York, estará esperando por mim e por Paulo. Me fundirei à ilha de Manhattan e aos dólares que chovem em Nova York. Depois irei a Paris para uma reunião prioritária de negócios e jantares exclusivos com Catherine Deneuve e a cúpula européia do capital internacional feliz independente. Sim. De Nova York a Paris. De Paris a Nova York, através da Air France e também da insuperável American Airlines. Serei cercado pelos paparazzi da imprensa internacional, mas não morrerei em Paris, à meia-noite, às margens do Rio Sena, onde nothing is real. Deus está comigo. Mesmo agora que os ignóbeis carros nacionais começam a ser levados pela enxurrada de água normal, excrementos e subprodutos. Exijo a presença da imprensa e nada tenho a declarar. Só falarei na presença de Deus ou do meu advogado. Aqui só há pretos saindo dos carros nacionais, tentando fugir da chuva de água normal enviada por Deus. Mas eu ficarei aqui no meu carro vermelho, importado da Alemanha. Em poucos instantes, Deus iniciará a retirada do meu carro vermelho, importado da Alemanha. Planarei sobre este rio preto administrado pessimamente pelo prefeito que é o responsável por toda esta chuva normal que chove aqui e não em Nova York, onde também chove, mas chove é dinheiro enviado por Deus. Deu no rádio. Está chovendo dinheiro em Nova York. Milhares de dólares num fluxo de alta rentabilidade. Ainda bem que possuo a calma e a frieza objetiva, exclusividade dos grandes administradores, para enfrentar os poucos minutos que ainda restam antes que os carros nacionais dirigidos por pretos de baixo poder administrativo sejam destruídos e o meu carro vermelho, importado da Alemanha, se eleve aos céus nas asas da American Airlines, rumo a Nova York, onde não pára de chover dinheiro. Está chegando o momento sagrado. Eu posso sentir a presença internacional de Deus que me adora. Foi Deus quem me escolheu para ir a Nova York e participar das reuniões decisivas e dos jantares com o capital que chove em Nova York. A fusão é imprescindível. Agora. Agora. Estou pronto. Ainda não? Sim, Deus. Estou ouvindo com os meus infalíveis ouvidos de grande administrador. Está dando no rádio. Uma mensagem. Cindy Crawford e Michael Douglas estarão à minha espera. A reunião decisiva para eliminar os protozoários maléficos que produzem fichinhas falsas e o prefeito preto do povo preto que produz excrementos aqui, nesta via nacional intransitável que submerge nas águas pretas da insolúvel indústria nacional, nas margens do Rio Tietê. A paciência é uma virtude dos grandes administradores belos que se fundem aos corpos das internacionais mulheres lindas de Nova York, onde chove dinheiro. Oh! Deus. Está tão frio. A água normal e preta está subindo, subindo. A água preta macula meu carro vermelho, importado da Alemanha. Oh! Deus. Por que me fazes passar por esta prova final? O subproduto da indústria preta já atinge meu peito largo de grande administrador. A água normal é fria. O dinheiro que chove em Nova York é quente como o regaço de Julia Roberts. A água está toda preta, toda nacional e pouco desenvolvida. Deus, preciso de uma reunião intransferível com o senhor que ama a mim, a Paulo, aos novaiorquinos, às mais lindas mulheres do planeta, ao meu carro vermelho, importado da Alemanha, ao fluxo intercambiável de capital que chove em Nova York. Preciso apontar falhas no sistema administrativo deste rio de águas pretas e normais, nesta via que sucumbe à ira dos excrementos de baixo poder aquisitivo, me afastando do objetivo final proposto a mim, pelo senhor, Deus. Eu vou ser o prefeito. Eu sou o prefeito. Deu no rádio. Eu vou ser o prefeito em Nova York com os novaiorquinos, o dinheiro que chove e as mais lindas mulheres do planeta nas reuniões de máxima urgência com fluxo global de Paulo. Deu no rádio. Está chovendo dinheiro em Nova York e eu sou o prefeito. É hora de voar pela American Airlines. Meu carro vermelho, importado da Alemanha, deve partir imediatamente para Nova York antes que aquele excremento preto nacional entre em contato com a superfície vermelha e tecnologicamente avançada do meu carro vermelho, importado da Alemanha. Contato. Contato. Há falhas no sistema administrativo nacional. Devo partir imediatamente. Há excrementos pretos flutuando ao redor de meu forte pescoço. Há água fria. Contato. Deus, contato. Falhas existem para serem corrigidas. Contato. Contato. Excremento detectado. Elevarei meu potente maxilar e evitarei que a água nacional preta entre em minha boca. Elevação iniciada. Contato. Excremento detectado. Contato bucal com excrementos de baixa qualificação técnica. Julia Roberts, Deus, contato. A fusão com o capital universal administrativo novaiorquino deve ser efetuada. Evitar o excremento e a água normal sem dólares. Ar. Água preta normal, entrando no nariz de linhas arrojadas. Deus, deu no rádio. Está chovendo dinheiro em Nova York. Está chovendo dinheiro em Nova York. Excremento preto nacional normal à frente. Eu quero ir para Nova York. Excremento preto de baixo poder aquisitivo, na minha boc... Está chovendo dinheiro em Novembro.