sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 


A MARCELINA I

Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época) era o doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigatórias da rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, - mas como janota - força é confessá-lo - não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro. 
Rapaz? Rapaz, sim: o doutor Pires de Aguiar pertencia a essa privilegiada classe de solteirões que se conservam rapazes durante trinta anos. 
Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente: — Orço pelos quarenta, - e durante muito tempo não deu outra resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinqüenta, bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco. 
Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem de beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público. Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Cythera dos bastidores. 
Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar-se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso - muito mais generoso que inteligente, - nunca ficava mal com o astro caído. 
Algumas vezes o rompimento era provocado por elas - pelas de mais espírito, - que facilmente se enfaravam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidosa e suas roupas.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 



A ÁGUA DE JANOS IV 

Os leitores - e principalmente as leitoras - me desculparão de não por no final deste conto um grão de poesia: tenho de conclui-lo um pouco à Armand Silvestre. Em todo caso, verão que a moral não é sacrificada. 
O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero. 
Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama. 
— Que tens tu? 
— Ainda mo perguntas... 
— Tem paciência: Jacob esperou quatorze anos. 
— Esta coisa tem-me posto doente. Bem sabes que eu gozava de uma saúde de ferro... Pois bem, neste momento a cabeça pesa-me uma arroba... tenho tonteiras!... 
— Isso é calor: a tua Andréa não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos patológicos. Queres um conselho? Mandas buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para aliviar a cabeça. 
O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo da benemérita água. 
Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto airoso de dona Andréa, anunciando-lhe uma carta. 
Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas. 
“A velha amanheceu hoje com febre e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico de confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.” 
O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de dona Andréa! 
Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento: nenhum namorado faria confissões dessa ordem... 
O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa: 
“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir... Quando algum dia haja certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza que me perdoarás.” 
Dona Adélia não perdoou. O tenente Remígio Soares nunca mais a viu.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 




A ÁGUA DE JANOS I 

O tenente de cavalaria Remígio Soares teve a infelicidade de ver uma noite dona Andréa num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus. 
A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes e por aqueles belos olhos negros e rasgados. 
Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão que se representava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a platéia. 
Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o tenente Soares acompanhou a certa distância o casal até o largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele - um bonde do Bispo, - sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andréa. 
Dizer que no bonde o pé do tenente e o pézinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda - seria faltar à verdade que devo aos meus leitores. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca rua Malvino Reis, dona Andréa, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao seu namorado as mais concludentes e escandalosas promessas. 
Ele ficou sabendo onde ela morava...

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo;

 




A ÁGUA DE JANOS III 

Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela. 
Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela! 
Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 



A ÁGUA DE JANOS II 

O tenente Remígio Soares foi para casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, - pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo! 
Mas - que contrariedade! - as janelas de Dona Andréa estavam fechadas... 
O cavaleiro foi até a rua de santa Alexandrina e voltou - patati, patatá, patati, patatá! - e as janelas não se tinham aberto... 
O passeio foi renovado à tarde, - o tenente passou, tornou a passar, - continuavam fechadas as janelas... Malditas janelas! 
Durante quatro dias o namorado foi e veio a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento! 
Mas ao quinto dia - oh, ventura! - ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o. 
Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréa. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento! proibia expressamente a senhora de sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois Cérberos: uma tia do marido e um jardineiro muito dedicado ao patrão. 
Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar a dona Andréa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta - digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada - a resposta não se fez esperar por muito tempo. 
“Pede-me uma entrevista, e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?... onde?... quando?... Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós... Como há um Deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.” 
Na esperança que o grande dia chegasse, o tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de dona Andréa: procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta dona Andréa fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar uma cartinha.

Sexta na Usina: Poetas da Rede: José Vasquez Peña:


 

Em sonhos eu persigo sua voz

Traslúcida a palavra

Eco distante? da sua voz

lançando flores

Tecendo meu nome com suas asas sua voz

de dia / no crepúsculo / eu ouço

acariciando meu ser

O martírio me assalta à noite.

quando eu paro de ouvi-la

Ontem à noite!

Só a ouvi antes da noite.

Parecia um século sua ausência agora.

Fazendo corpo com o silêncio

Partiu cimbreante apaixonando o onírico

Ventoso

Por instantes de sombras se foi

Altas horas / deshoras / madrugada

Por suspiros (breves) de estrelas.

que titilam desejos se afastou

Se afastou (sua voz) vestida de sono

coroada com louros da noite

Sabendo que ela volta, espero por ela.

sob o orvalho dos dias

com a alma geada de silêncios

Do braço com a aurora

entre pumpanos verde luz retorna

Volte para trás! como fibras de doçura

como fio condutor de amor e delírios

Volte para trás! pintar minhas paisagens com arco-íris depois da chuva de fantasias noturnas.

Apesar de que ao meu lado você dorme

Adorável Encantada!

Eu não suporto! sua ausência o sonho

Em sonhos eu persigo sua voz

fantasiado de mágico.

José Vasquez Peña

Direitos reservados

Ica - Peru

8 dez2021.

Sexta na Usina: Poetas da Rede: Miguel Angelo Teixeira:


 

POR MOMENTOS

Tenho dias, em que me apago por entre as sombras da mediocridade e outros, poucos, em que venho à tona e por momentos sou alguém que gostaria de ser. Tenho dias de galo e outros de cordeiro, seguindo filas, bebendo mesmo sem ter sede, o olhar preso no dedo no gatilho, no tiro sem bala, na ferida aberta que não sangra e todavia mata sem matar, a linha ténue entre os que fazem a música e aqueles que apenas dançam. Logo eu que nunca fui bom dançarino, no meio do fogo cruzado sem cão nem gato embalado pela maré, suspenso por um golpe de sorte ou de azar num jogo previamente viciado. Tenho dias, momentos em que armo uma espécie de sorriso... breve e tímido. Fora isso, fora do campo onde tudo se decide, sou o riso escondido, o grito mudo numa cara lavada em lágrimas, silenciadas pelo medo dos outros.

autor: Miguel Angelo Teixeira

Sexta na Usina: poetas da Rede: Angel-gustavo Benavides:


 

MEU LIVRO

Luz nas trevas

lampião da sua praia perdida

que ilumina seu pensamento

é o candil da sua vida.

Lucero de sabedoria,

que a crianças dá alegria

e adultos, pleitesia.

Suas folhas são pétalas

de histórias perfumadas

escritas com tinta sábia

que abre sua fantasia

vivendo épocas não vividas.

O livro é seu amigo

que eu nunca te mentiria,

Trate-o com doce

Ele fala com você com ternura.

e eu nunca te trairia.

Te nutre de sapiência

mata sua ignorância,

Com amor e elegância.

Suas letras fazem você rir.

e outras vezes eles te arrancam lágrimas.

Suas histórias são diversas;

Jocinhas, nostálgicas e maldosas.

Cuida dele como um tesouro.

se você chegar a perder

Garanto-te que você se arrependeria.

e um pouco de você morreria.

Anjo Gustavo Benavides

Autor(direitos reservados)

Equador

Dezembro 29/2021

Sexta na Usina: Poetas da Rede: Hector Vargas Montanha:


 

TÍTULO.

INSPIRAÇÃO.

Hector Vargas Montanha.

Chile.

DD. RR.

29/12 /2021

Tem gente, cortando a grama,

e eu ouço os motores,

mas nada me interrompe,

em minhas evocações.

Eles chegam forte no meu nariz,

dos pastos, seus cheiros,

a máquina que aí ecoa,

não diminui minhas emoções.

Será só grama,

o que sobrou no chão? ,

há homens na sua tarefa,

e eu continuo escrevendo. - Sim.

Sexta na Usina: poetas da Rede: Paulo Afonso:


 

O Completo Esquecimento

Em algum lugar

alguém me

roga uma prece

pois sinto o amor

no vento fresco

batendo no rosto.

Em algum lugar alguém

Me recorda numa canção

e se enche de saudades

no coração.

Em um instante

alguém me eterniza

em seus versos

E me transporta ao

patamar dos imortais

mais queridos.

No momento único

do tempo

eu sou alguém

que sorri e emociona,

E na hora mais

Nostálgica

eu serei o deus

da eternidade

E antes que a madrugada

me perpetue

eu serei sonho.

E depois ...

O completo esquecimento.

P.A.S

Sexta na Usina: Poetas da Rede: Dr. Zainul Hussain:


 

DUAS GOTAS DE AMOR.

***********************

Duas gotas

do orvalho do meu amor

caí sobre

Seu coração terno

A sujeira, a poeira

De tempestades dolorosas

Lavado

Com um começo.

Sua alma sorriu.

Seu corpo floresceu.

Olha o efeito

Do meu toque gentil

Isso desapareceu.

Suas lágrimas

Agradar você

muito.

© Dr. Zainul Hussain

Índia

   29/12/2021

Sexta na Usina: póetas da Rede: Salomon Constantin:


 

Epicum

Passeio entre árvores de concreto

espezinho os ossos putrefactos dos mortos que me adoram

ouço o ritmo rápido dos corpos a fornicar

agradeço os aplausos dos mortos que vivem na selva urbana

sou o deus que os esqueceu

um homem que ainda não morreu

o poeta que se injeta e se empala com o sofrimento alheio

...para esquecer o próprio.

saboreio o sangue

dos inocentes nojentos...

que me fazem sentir culpado

molha-me uma chuva imunda,

proveniente de nuvens podres nascidas do génio humano

a merda que se acumula no espírito do escritor

fede mais que o miasma que se liberta dos olhos mortos que o não leem

quero fugir da vida

quero encontrar luaname

uma paixão que por muito que me torture seda-me no vácuo da ilusão

sinto a loucura abraçar-me

o avatar evolui

procuro a solidão... e odeio estar só

procuro a sabedoria... alucina e aleatória do eterno deus mamm

procuro-me, e encontro-me a mim próprio

...no outro lado da rua

cruzo-me afastado e sigo o meu caminho

segue-me o barulho escuro dos pés descalços de luaname

o ser bestial que quero que me ame

espero por ela... que se aproxima felina

o cimento dissolve-se

que me importa os corpos que se afundam

afinal sou o seu deus

agora aproximo-me de luaname

uma anciã desesperada

e gasta

e curvada...

pede-me ajuda...

vejo luaname rasgar as carnes velhas

e lamento-o levemente enquanto abraço luaname

que me envolve e afunda em nuvens de sangue e dor

nuvens de sangue e dor que surgem do nada

geladas

aconchego-me no calor do corpo frio

do monstro que me olha e chora

que me beija e se transforma... e chora

até que ri

o riso insano da histeria

transporta-me para tempos de templos de colunas antigas

passeia-me sobre quadrados pretos e brancos

o pérfido tabuleiro do xadrez que joga.

vejo um gato com fome a alimentar um cão vadio.

penso num planeta sem medos, e sem gordura.

penso no inferno... sinto-o

uma coluna agarra-me

o toque da pedra é frio

luaname ignora o ato...

estende-me a mão... e segura-me o sexo, puxa-o e eu sigo-a

tenho de seguir o meu destino

apesar... de não sentir forças para o fazer

luaname abraça-me

sinto-lhe o sexo nas palmas das mãos

fazemos amor como nunca fizemos

não fizemos

ainda assim admiro...

um escritor falhado,

um poeta desprezado.

a carta que não foi escrita

o poema que não foi dito.

o niilismo absoluto que me atrai... e eu deixo

que me segura... e não me revolto

o mundo fervilha imperfeito... e eu noto-o... mas não ajo.

os inocentes pagam os crimes

as crianças passam fome

as balas voam sem consciência

as bombas gritam quando morrem

... troco tudo por pormenores,

e violo luaname.... que não sabe o que me excita...

e adormeço, na paz falsa de deuses mesquinhos e mentirosos

sonho

sonho que me encontro só

mas agora perto do fim do caminho.

a humanidade morrerá comigo... ainda a dormir

mordo o peito morno de luaname

que sorri, a brincar com o meu cabelo

acordo ainda a dormir

levanto-me ainda a sonhar

passeio entre a floresta da solidão

descanso os olhos nos quadros de pessoas mortas.

ela saltita à minha frente

abranda e sorri

não posso ignorar

os olhos continuam verde-azul

o cabelo um falso louro

não pintado... nem platinado

o corpo atlético

o palpitar duma mulher nova

o seu nome...

vasculhado nas entranhas da mente surge

como surgem flores belas

de um pântano escuro de esterco

o meu inconsciente, desejoso de ser consciente, sussurra-me:

amifat

um velho sonho desenterrado

a vontade de voltar a ser jovem e poder escolher.

amifat

um velho sonho, de uma noite de festa

amifat

uma porta encontrada

ainda que ainda e sempre fechada.

pelo canto do olho vejo o mundo real

estou sentado a chorar

sozinho num areal

desejo voltar a encontrar a perdida felicidade possível

um prazer curto no tempo

amifat de seu nome

o outro lado do mesmo sonho

sinto a subtil e brutal presença de luaname

e, por agora, ignoro-a

continuo a procurar amifat,

a luz no fundo do túnel

o desejo, súbito e avassalador da vontade de sentir desejo.

a areia negra suja-me o corpo

quero reagir

não me importa que me rodeiem vidros opacos

não me importa que a água seja amarga

quero pensar em amifat

não quero recordar luaname.

um ser híbrido, cor de merda, toca-me

sorri e mostra a ausência de dentes

pergunta-me o que quero

é deus

encontro afinal a solução/salvação eterna

sinto o frio

desdenho o que sinto

tudo se transforma

estou num café, num bar, num bordel

estou só... e acompanhado

sinto luaname

quero sonhar com amifat

que me tortura na sua inocência

amifat, a luz que se espalha... na borda do caminho...

de que quero regressar

quero gritar

e grito

como grita um pequeno ser sem voz

grito por amifat

mas penso em luaname

cheiro a solidão preta que me abraça

temo-a mas não lhe fujo

entro na noite escura

faço muita pouca força para me libertar

acabo a procurar o que me assusta

desejo a morte

sei que é doentio

apercebo-me da minha doença...

a que me faz almejar morrer.

sou observado pela criança que me lê a mente

pelos dois lados

como somente a leu

o morto e eterno deus mamm.

já raramente me lembro de amifat

talvez a volte a encontrar

as fechaduras oferecem pouca segurança

vejo o sorriso bondoso do diabo

não percebo a imobilidade do meu corpo

ouço um barulho constante

são larvas abençoadas

que se alimentam do meu sangue

presencio a agonia de todos os que morreram sem merecerem sofrer.

vejo crianças pequenas, já mortas...

que choram por comer.

vejo a tristeza absoluta na face da virgem-mãe

a olhar o seu bebé gemer.

vejo o espanto do soldado

ao fazer o seu irmão morrer.

as imagens saboreiam o sangue que possuem

quando retiram penas de pequenos pássaros coloridos

com que se enfeitam

enquanto saboreiam as caricias dos que os alimentam:

o desespero dum miúdo quando perde a mãe

a angustia dum pai a ver morrer um filho.

as máquinas do terror, que são ensaiadas, nas filhas dos vizinhos.

a musica alta que não deixa ouvir

os gritos surdos e uniformes de todos os sem lar

de todos que para além de fronteiras desejam voltar.

penso em inquirir a morte mas como não posso nem quero

continuo a observar sem nada fazer.

agora percebo a imobilidade...

o sorriso bondoso do diabo desaparece

torna-se intenso e amargo

acaricia as larvas que se alimentam

... dos meus pensamentos.

come o olho dum bebé... que já era cego do outro.

retalho um seio farto de leite duma mulher sem filhos

castra todos os homens que ainda não tiveram filhos.

um cachorro faminto afasta-se... para ser atropelado

o cheiro fétido enche-me as narinas... e a humanidade também.

estou sozinho na praia

e corroí-me o suco gástrico do mundo

que se alimenta dos rebentos que não sabe cultivar.

a carne dos filhos... dos outros.

a carne adocicada pela tuberculose.

o olhar triste dum velho com fome

sem ter onde se recolher.

durmo na areia preta

não me mexo

não sinto o desespero que me avassala

desisto

pelo sorriso

duma mulher sem leite

pelo bebé que morre.

bebo absinto quase puro.

vejo aproximar-se a marcha dos velhos

todos me cumprimentam na ânsia mórbida do fim

que julgam, talvez, se encontre em mim

uma idosa chama-me

oferece-me um gato pequeno

aceito-o e aqueço-o

e ele morre porque foi retirado da mãe

rio-me a perceber a ironia.

e agora percebo que nada pode depender de mim.

sinto a criança ler-me a mente

como só lia o eterno e desaparecido deus mamm.

agora bebo o absinto puro

ouço o império cair, e rio

vejo o que acredito fugir, e lamento-o

cheiro o hálito do terror que se aproxima

e queimo-me no corpo de carne de luaname

que brinca com o meu cabelo

peço-lhe que retire as larvas da minha mente

e, por breves momentos, isso acontece

mas por momentos demasiados breves.

o tempo só para quando não quero

mais uns curtos instantes e tenho que me levantar

ainda observo a marcha dos velhos a afastar-se

agora aproxima-se a marcha dos seres imundos que se dizem humanos

mas afasto-me antes que me alcancem.. .

.

M.PIPER