sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Sexta na Usina: póetas da Rede: Salomon Constantin:


 

Epicum

Passeio entre árvores de concreto

espezinho os ossos putrefactos dos mortos que me adoram

ouço o ritmo rápido dos corpos a fornicar

agradeço os aplausos dos mortos que vivem na selva urbana

sou o deus que os esqueceu

um homem que ainda não morreu

o poeta que se injeta e se empala com o sofrimento alheio

...para esquecer o próprio.

saboreio o sangue

dos inocentes nojentos...

que me fazem sentir culpado

molha-me uma chuva imunda,

proveniente de nuvens podres nascidas do génio humano

a merda que se acumula no espírito do escritor

fede mais que o miasma que se liberta dos olhos mortos que o não leem

quero fugir da vida

quero encontrar luaname

uma paixão que por muito que me torture seda-me no vácuo da ilusão

sinto a loucura abraçar-me

o avatar evolui

procuro a solidão... e odeio estar só

procuro a sabedoria... alucina e aleatória do eterno deus mamm

procuro-me, e encontro-me a mim próprio

...no outro lado da rua

cruzo-me afastado e sigo o meu caminho

segue-me o barulho escuro dos pés descalços de luaname

o ser bestial que quero que me ame

espero por ela... que se aproxima felina

o cimento dissolve-se

que me importa os corpos que se afundam

afinal sou o seu deus

agora aproximo-me de luaname

uma anciã desesperada

e gasta

e curvada...

pede-me ajuda...

vejo luaname rasgar as carnes velhas

e lamento-o levemente enquanto abraço luaname

que me envolve e afunda em nuvens de sangue e dor

nuvens de sangue e dor que surgem do nada

geladas

aconchego-me no calor do corpo frio

do monstro que me olha e chora

que me beija e se transforma... e chora

até que ri

o riso insano da histeria

transporta-me para tempos de templos de colunas antigas

passeia-me sobre quadrados pretos e brancos

o pérfido tabuleiro do xadrez que joga.

vejo um gato com fome a alimentar um cão vadio.

penso num planeta sem medos, e sem gordura.

penso no inferno... sinto-o

uma coluna agarra-me

o toque da pedra é frio

luaname ignora o ato...

estende-me a mão... e segura-me o sexo, puxa-o e eu sigo-a

tenho de seguir o meu destino

apesar... de não sentir forças para o fazer

luaname abraça-me

sinto-lhe o sexo nas palmas das mãos

fazemos amor como nunca fizemos

não fizemos

ainda assim admiro...

um escritor falhado,

um poeta desprezado.

a carta que não foi escrita

o poema que não foi dito.

o niilismo absoluto que me atrai... e eu deixo

que me segura... e não me revolto

o mundo fervilha imperfeito... e eu noto-o... mas não ajo.

os inocentes pagam os crimes

as crianças passam fome

as balas voam sem consciência

as bombas gritam quando morrem

... troco tudo por pormenores,

e violo luaname.... que não sabe o que me excita...

e adormeço, na paz falsa de deuses mesquinhos e mentirosos

sonho

sonho que me encontro só

mas agora perto do fim do caminho.

a humanidade morrerá comigo... ainda a dormir

mordo o peito morno de luaname

que sorri, a brincar com o meu cabelo

acordo ainda a dormir

levanto-me ainda a sonhar

passeio entre a floresta da solidão

descanso os olhos nos quadros de pessoas mortas.

ela saltita à minha frente

abranda e sorri

não posso ignorar

os olhos continuam verde-azul

o cabelo um falso louro

não pintado... nem platinado

o corpo atlético

o palpitar duma mulher nova

o seu nome...

vasculhado nas entranhas da mente surge

como surgem flores belas

de um pântano escuro de esterco

o meu inconsciente, desejoso de ser consciente, sussurra-me:

amifat

um velho sonho desenterrado

a vontade de voltar a ser jovem e poder escolher.

amifat

um velho sonho, de uma noite de festa

amifat

uma porta encontrada

ainda que ainda e sempre fechada.

pelo canto do olho vejo o mundo real

estou sentado a chorar

sozinho num areal

desejo voltar a encontrar a perdida felicidade possível

um prazer curto no tempo

amifat de seu nome

o outro lado do mesmo sonho

sinto a subtil e brutal presença de luaname

e, por agora, ignoro-a

continuo a procurar amifat,

a luz no fundo do túnel

o desejo, súbito e avassalador da vontade de sentir desejo.

a areia negra suja-me o corpo

quero reagir

não me importa que me rodeiem vidros opacos

não me importa que a água seja amarga

quero pensar em amifat

não quero recordar luaname.

um ser híbrido, cor de merda, toca-me

sorri e mostra a ausência de dentes

pergunta-me o que quero

é deus

encontro afinal a solução/salvação eterna

sinto o frio

desdenho o que sinto

tudo se transforma

estou num café, num bar, num bordel

estou só... e acompanhado

sinto luaname

quero sonhar com amifat

que me tortura na sua inocência

amifat, a luz que se espalha... na borda do caminho...

de que quero regressar

quero gritar

e grito

como grita um pequeno ser sem voz

grito por amifat

mas penso em luaname

cheiro a solidão preta que me abraça

temo-a mas não lhe fujo

entro na noite escura

faço muita pouca força para me libertar

acabo a procurar o que me assusta

desejo a morte

sei que é doentio

apercebo-me da minha doença...

a que me faz almejar morrer.

sou observado pela criança que me lê a mente

pelos dois lados

como somente a leu

o morto e eterno deus mamm.

já raramente me lembro de amifat

talvez a volte a encontrar

as fechaduras oferecem pouca segurança

vejo o sorriso bondoso do diabo

não percebo a imobilidade do meu corpo

ouço um barulho constante

são larvas abençoadas

que se alimentam do meu sangue

presencio a agonia de todos os que morreram sem merecerem sofrer.

vejo crianças pequenas, já mortas...

que choram por comer.

vejo a tristeza absoluta na face da virgem-mãe

a olhar o seu bebé gemer.

vejo o espanto do soldado

ao fazer o seu irmão morrer.

as imagens saboreiam o sangue que possuem

quando retiram penas de pequenos pássaros coloridos

com que se enfeitam

enquanto saboreiam as caricias dos que os alimentam:

o desespero dum miúdo quando perde a mãe

a angustia dum pai a ver morrer um filho.

as máquinas do terror, que são ensaiadas, nas filhas dos vizinhos.

a musica alta que não deixa ouvir

os gritos surdos e uniformes de todos os sem lar

de todos que para além de fronteiras desejam voltar.

penso em inquirir a morte mas como não posso nem quero

continuo a observar sem nada fazer.

agora percebo a imobilidade...

o sorriso bondoso do diabo desaparece

torna-se intenso e amargo

acaricia as larvas que se alimentam

... dos meus pensamentos.

come o olho dum bebé... que já era cego do outro.

retalho um seio farto de leite duma mulher sem filhos

castra todos os homens que ainda não tiveram filhos.

um cachorro faminto afasta-se... para ser atropelado

o cheiro fétido enche-me as narinas... e a humanidade também.

estou sozinho na praia

e corroí-me o suco gástrico do mundo

que se alimenta dos rebentos que não sabe cultivar.

a carne dos filhos... dos outros.

a carne adocicada pela tuberculose.

o olhar triste dum velho com fome

sem ter onde se recolher.

durmo na areia preta

não me mexo

não sinto o desespero que me avassala

desisto

pelo sorriso

duma mulher sem leite

pelo bebé que morre.

bebo absinto quase puro.

vejo aproximar-se a marcha dos velhos

todos me cumprimentam na ânsia mórbida do fim

que julgam, talvez, se encontre em mim

uma idosa chama-me

oferece-me um gato pequeno

aceito-o e aqueço-o

e ele morre porque foi retirado da mãe

rio-me a perceber a ironia.

e agora percebo que nada pode depender de mim.

sinto a criança ler-me a mente

como só lia o eterno e desaparecido deus mamm.

agora bebo o absinto puro

ouço o império cair, e rio

vejo o que acredito fugir, e lamento-o

cheiro o hálito do terror que se aproxima

e queimo-me no corpo de carne de luaname

que brinca com o meu cabelo

peço-lhe que retire as larvas da minha mente

e, por breves momentos, isso acontece

mas por momentos demasiados breves.

o tempo só para quando não quero

mais uns curtos instantes e tenho que me levantar

ainda observo a marcha dos velhos a afastar-se

agora aproxima-se a marcha dos seres imundos que se dizem humanos

mas afasto-me antes que me alcancem.. .

.

M.PIPER

Nenhum comentário:

Postar um comentário