sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Contos do Sábado na Usina: João do Rio: O bebê de tarlatana rosa:


Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? O Carnaval só é
interessante porque nos dá essa sensação de angustioso
imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a sua história de Carnaval,deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um Carnaval semaventuras não é Carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura...
E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã, gozando anossa curiosidade.
Havia no gabinete o barão Belfort, Anatólio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante.
Heitor, fumando um gianaclis autêntico, parecia absorto.
- É uma aventura alegre? indagou Maria.
- Conforme os temperamentos.
-Suja?
- Pavorosa ao menos.
- De dia?
- Não. Pela madrugada.
- Mas, homem de Deus, conta! suplicava Anatólio. Olha que está
adoecendo a Maria.
Heitor puxou um largo trago à cigarreta.
- Não há quem não saia no Carnaval disposto no excesso, disposto
aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio
é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem
da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de
guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente
com uma...
- Nem com um, atalhou Anatólio.
- Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam
como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser
indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a pornéia da cidade,
saio como na Fenícia saíam os navegadores para a procissão da Primavera,
ou os alexandrinos para a noite de Afrodita.
- Muito bonito! ciciou Maria de Flor.
- Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco
atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar
só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo
era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andávamos de automóvel
a percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champagne aos clubes de
jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo
e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma
visita ao baile público do Recreio. - "Nossa Senhora! disse a primeira estrela
de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à
paisana, fúfias dos pedaços mais esconsos da rua de S. Jorge, um cheiro atroz,
rolos constantes..." - Que tem isso? Não vamos juntos?
Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que
temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se
bem. Naturalmente fomos e era a desolação com pretas beiçudas e desdentadas
esparrimando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo
o pessoal de azeiteiros das ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas
diabólicas, de íncubos em frascos de álcool, que têm as perdidas de certas
ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas
de pasta de mata-borrão e de papel-arroz. Não havia nada de novo. Apenas,
como o grupo parara diante dos dançarmos, eu senti que se roçava em mim,
gordinho e apetecível, um bebê de tarlatana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia
curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio.
Bem agradável. Quanto ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos
perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz,
um nariz tão bem-feito, tão acertado, que foi preciso observar para verificá-lo
falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu
mais e disse num suspiro: - ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei
imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis
damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos
alheios, e era sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma
freqüentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear
noclube mais chic e mais secante da cidade.
- E o bebê?
- O bebê ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao lado
do chauffeur, no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e uma voz
rouca dizer: "para pagar o de ontem. Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com
o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda tive tempo de indagar: aonde
vais hoje?
- A toda parte! respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.
- Estava perseguindo-te! comentou Maria de Flor.
- Talvez fosse um homem... soprou desconfiado o amável Anatólio.
- Não interrompam o Heitor! fez o barão, estendendo a mão.
Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, continuou:
- Não o vi mais nessa noite e segunda-feira não o vi também. Na terça
desliguei-me do grupo e caí no mar alto da depravação, só, com uma roupa
leve por cima da pele e todos os maus instintos fustigados. De resto a cidade
inteira estava assim. E o momento em que por trás das máscaras as meninas
confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas
transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil, a
honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é
possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso
que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente.
Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida.
Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do
contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar,
acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal
no carnaval.
- A quem o dizes!..., suspirou Maria de Flor.
- Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos
defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois
de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo
S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa,
insisti aqui, ali. Nada!
- É quando se fica mais nervoso!
- Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda gente, e
saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas
abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes
incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos
de bengala, caíam em sombras - sombras cúmplices da madrugada urbana.
E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado
levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas
calçadas fofas de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais
na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um
som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de
enorme, emergindo da treva aos pedaços... E os dominós embuçados, as
dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de último instante
arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo lago do Rocio e ia caminhando
para os lados da secretaria do interior, quando vi, parado, o bebê de
tarlatana rosa.
Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei.
- "Os bons amigos sempre se encontram" disse.
O bebê sorriu sem dizer palavra. Estás esperando alguém? Fez um gesto
com a cabeça que não. Enlacei-o. - Vens comigo? Onde? indagou a sua voz
áspera e rouca. - Onde quiseres! Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas
eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios
tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.
- Por pouco...
- Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com
a sua voz arfante e lúbrica: - "Aqui não!" Passei-lhe o braço pela cintura
e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem
dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo
que os meus diziam. Nessas fases do amor não se conversa. Não trocamos
uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em
desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado ao jardim. Diante
da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois
arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua escura e sem luz. Ao
fundo, o edifício das Belas-Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais.
Ela aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís
de Camões, ficamos bem embaixo das sombras espessas do Conservatório
de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente
ruça com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes.
O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vício naquela
austeridade da noite. - Então, vamos? indaguei. - Para onde? - Para a
tua casa. - Ah! não, em casa não podes... - Então por aí. - Entrar, sair,
despir-me. Não sou disso! - Que queres tu, filha? É impossível ficar aqui
na rua. Daqui a minutos passa a guarda. - Que tem? - Não é possível que
nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro
tens que tirar a máscara. - Que máscara? - O nariz. - Ah! sim! E sem
mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo,
beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós
o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.
Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um nariz com
cheiro a resina, um nariz que fazia mal. - Tira o nariz! - Ela segredou:
Não! não! custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela
carne de chama.
O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia ummal-estar
curioso, um estado de inibição esquisito. - Que diabo! Não vás agora
para casa com isso! Depois não te disfarça nada. - Disfarça sim! - Não!
procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me,
o bebê de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus
lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu, o nariz
que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui
aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre
agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a
cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz,
com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinante
- uma caveira com carne...
Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu
tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com
a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando
singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. - Perdoa! Perdoa!
Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar.
Então, aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste...
Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado.
Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o
imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes,
de matar aquele atroz reverso da Luxúria... Mas um apito trilou. O guarda
estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semitreva. Que
fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo mundo que a beijara?
Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo
inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos
batendo,ardendo em febre.
Quando parei à porta para tirar a chave, é que reparei que a minha mão
direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tarlatana
rosa...
Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria
de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatólio parecia
mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor.
Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a
campainha para que o criado trouxesse refrigerantes e resumiu:
- Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem
do Carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.

E foi sentar-se ao piano.

Projeto Contos Do Sábado Na Usina:Uma senhora:Marques Rebelo:


Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela
era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das
empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia pôr
um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta
duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!... Enquanto a revolução
não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas,
fazia de criada - cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos
sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiénico e muito econômico.
- Econômico? Então se encera mesmo.
O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no
melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama a
gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de ferragens,
pedindo duas latas de cera- da boa, vê lá! - chorando um abatimentozinho
na escova e na palha de aço: está ouvindo, Seu Fernandes?
Estava sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à
mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico,
uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel
reformado, que lhe virou por cima do corpo.
Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras
eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para
ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar;
contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia visitas, nem recebia.
Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados
que andavam na escola pública, Elcio, Ëlcia e Elcina, respectivamente quinze,
quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do marido e dá idéia o que
seria depois de dez anos de casada, se depois da Elcina não tomasse as devidas
precauções.
- Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida - aconselhava na hora
da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com
manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs,
uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela
equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; os filhos da tua amiga
Quinota...
E os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa
Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposicionistas,
elogiados pelos do governo - a Folha dizia que era um gesto de Mecenas
mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da
meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse
três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé.
Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um
desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido com as vizinhas,
principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique,
confessava.
Chegando o carnaval, tirava a forra.
As economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os juros.
Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do
automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam
de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada
ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tinto! gasta
aquele dinheirão em anúncios. Tirava do cabide a casaca do casamento,
dezesseis anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas:
- No automóvel, ninguém repara, meu filho - dizia com um sorriso,
ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te?
Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de
argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de
seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata.
No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três,
perguntava para o marido:
- Quanto temos ainda?
Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encrencada!),
fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:
- Duzentos e oitenta.
- E os oitocentos do automóvel?
- Já estão fora.
- Ah! Bem... - Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode
gastar mais cento e cinqüenta.
O resto ficava para gastar depois do carnaval - mas entrava na verba
dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega (a experiência
de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas, vômitos biliosos,
uma dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja
gelada.
Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias - falava.
Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro.
O "lá dentro" de Dona Quinota era uma coisa complicada, complícadíssima,
que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes.
Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo
com o rancho da filharada.
- Brincaram muito? - fez Seu Adalberto, com um jeito de despeitado.
- Assim, assim...
Dona Quinota dizia aquele "assim-assim" de propósito. Que lhe
importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era
ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos:
assim, assim... Ah! Ah! Ah!
Seu Adalberto exultava:
- E isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e
não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim. Pois
olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi,
apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos
perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi?
As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros:
- Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!
Seu Adalberto corrigiu logo:
- Girassol, não, Artur; crisântemo.
Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisântemo
ou crisantemo - quer ver que eu disse besteira?
Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos de
casaca!...
- O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos
também a pé.
O marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é isto? -
ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou assim...
Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...
Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e
sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num
automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.
A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro.
Torreco, torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro do seu
Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça, veio
até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do
bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro
do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. Dona Quinota
ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que
dava por falta dum brinco: Que cretinos!
Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o
turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto
ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado
na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.
Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na
quarta-feira de cinzas ao meio-dia.
Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava
na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil
que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando todo mundo
viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...
Anos 40 e 50
Modernos, maduros, líricos
Em torno da primeira metade do século, nossos escritores estão mais
maduros. Escrevem numa língua que também amadureceu, está mais
uniforme e representativa daquela usada no cotidiano pelos brasileiros
educados, de qualquer lugar do país. O passado rural começa a
desaparecer efetivamente, tornando-se objeto mais de nostalgia do que
de rejeição. As relações afetivas passam a constituir a verdadeira utopia
do brasileiro, e também exibem seu lado difícil. Descompassos na
família. Saudades. Lirismos. Na época da consagração definitiva do
movimento modernista, predominam na literatura o romance, a crônica e a poesia,
mas a amostra apresentada nesta seção revela que alguns
dos mais belos clássicos do conto brasileiro moderno foram publicados
nesse período.

***

Projeto Contos Do Sábado Na Usina: Machado de Assis: O DICIONÁRIO:


Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em
cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.
 — Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.
O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino,Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; — nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.
 Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi
aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual aAníbal, — comparação que o lisonjeou muito, — o segundo ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos.
Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao
casamento.
Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.
Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.
Concorreram ao certâmen, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.
Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da
moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.
Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:
 — Nós, Alfa e Ômega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.
Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante três meses, findos os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam nas
consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.
 — Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito.
Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada.
A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atônita. 
Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa.
Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. 
O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros e foi a única vingança.
Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu.
Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando.
Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:
 O raro Apeles, Rubens e Rafael, inimitáveis Não se fizeram pela cor das tintas;

A mistura elegante os fez eternos. 

Páginas Recolhidas
Texto-source:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
 Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899. 

Projeto Contos Do Sábado Na Usina: Alcântara Machado: Gaetaninho:

Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o
derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu
o palavrão.
- Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de
sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
- Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o
terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo.
Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia-volta
instantânea e varou pela esquerda porta adentro.
Eta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro
só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento.
Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um
sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro
a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá.
Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados
levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério
noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do
cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO
SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com
a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas
segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos
mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho
Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos
palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o
chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho
só.
Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com a mania de cantar o
"Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de
Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família
alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa
nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor
da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado
de doído.
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de
sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva
por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho
não estava ligando.
- Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
- Meu pai deu uma vez na cara dele.
- Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
- Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto.
Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos
abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
- Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque.
Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
- Vá dar tiro no inferno!
- Cala a boca, palestrino!
- Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou.
Pegou e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
- Sabe o Gaetaninho?
- Que é que tem?
- Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente
e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento.
Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima.
Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno
vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.

***

Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 


 

XII

 

Depois, bem sabem, senhores, como aquele padre Rocha despenhou abruptamente o desfecho da farsa, cuidando que vingava a moral e punia com degredo o celerado que infamava o sacratíssimo nome de el-rei D.
Miguel. No trânsito para a Relação, a meia légua, na estrada do Porto, o Veríssimo, com delicadas maneiras e o seu aspecto venerável, obteve que o sargento da escolta lhe permitisse alugar a mula de um almocreve que seguia a mesma direcção. Cavalgou na albarda da mula arreatada com chocalho, sem estribos; empunhou a corda do cabresto, e ladeado de doze praças do 8, entrou ao cair da tarde em Famalicão.
O Torres de Castelões, o administrador, legitimista no fundo, bom lavrador, mandou-lhe cama para a cadeia e permitiu-lhe que ceasse com uni amigo que o seguira de longe. Era o Nunes, o Pílades das horas certas e incertas. Orestes estava desanimado; queixava-se das fantasias do outro, considerava-se perdido.
– Pobre Libânia! – deplorava – quando ela souber que eu estou na Relação!
Como tinha alguma prática do foro criminal, o Nunes consolava-o: que não havia matéria para pronúncia; e, quando fosse pronunciado, a Relação o despronunciaria.
– Eu é que vou ser o teu procurador, se me não prenderem – acrescentava, muito confiado na lei e na sua actividade. – Quanto à fantasia do conto de réis, já não falta tudo, porque tens as cem peças das Botelhas. Se te deixam ser rei mais um dia ou dois, tinhas nesta santa hora 3750$000 réis.
– Tu gracejas e eu vou esperar na cadeia uma sentença de degredo – atalhou o Veríssimo, naquela estranha situação, nunca experimentada, de ouvir os passes da sentinela rentes com a grade do seu quarto.
Às oito da noite, fechara-se a porta da cadeia, e Nunes saíra triste, com um pungitivo arrependimento de meter o amigo naquela rascada.
Ao escurecer do dia seguinte, o preso foi conduzido do Governo Civil do Porto para a Relação com um mandado do carcereiro na baioneta do sargento. Quando saía do Governo Civil, já Libânia e o Munes, que se antecipara a procurá-la em Ramalde, o esperavam. A Libânia era uma forte mulher para os trabalhos da vida. Fitou- o com um semblante aceso de coragem, um sorriso afoito, e disse-lhe muito animosa:
– Alma até Almeida e de Almeida p'ra diente alma sempre!
Veríssimo ocupou o quarto de malta nº 2, com uma rasgada janela sobre o Douro, um quarto cheio de luz e de sol, de onde tinha saído o Gravito para a forca – elucidou o carcereiro, e mostrou-lhe no grosso alisar da porta as iniciais de alguns padecentes com a data de 1829.
A Libânia e mais o Torcato pernoitaram na Estalagem do Cantinho, na Rua do Loureiro, e passavam o mais do tempo na Relação. Ao fim de seis dias já o Munes requeria a soltura do preso, por falta de nota da culpa; mas a pronúncia chegou ao oitavo dia, da comarca da Póvoa. O preso agravou para a Relação. Era juiz-relator do agravo o conselheiro Fortunato Leite, natural do Douro, que, quinze anos antes, no reinado de D. Miguel, tinha sido amigo de Norberto Borges, e lhe devera a fineza rara de o avisar na véspera do dia em que lhe havia de cercar a casa por ordem do facinoroso corregedor de Vila Real, o Albano, que os liberais mataram, no meio de uma escolta, em 1836. Quando o relator folheava o processo, os apelidos do preso, a naturalidade, os pormenores, sugeriram-lhe memórias da sua perseguição em 1831, e o salvar-se tão extraordinariamente pela amizade do meirinho-geral. Informou-se e evidenciou que o Norberto Horges, de Alvações do Corgo, era pai do preso. Estava pois salvo o filho do seu benfeitor, sem grande violência à justiça, porque a pronúncia fora precipitada, irregular, as testemunhas citadas – os padres suspeitos de frequentarem a residência de Calvos – nada depuseram que provasse projectos revolucionários do agravante.
E lavrou o acórdão muito recheado de grifo: – Que agravado era o agravante pelo juiz da comarca de Lanhoso, porquanto na pronúncia de primeira instância haviam sido desprezadas as formalidades mais curiais, pois que nenhuma testemunha depusera que o agravante se inculcasse D. Miguel para perturbar a ordem constituída, chamando o povo à revolta; e das respostas do agravante no interrogatório a que procedeu a autoridade administrativa, constava que o preso quase que fora obrigado por um clérigo estúpido e esturrado miguelista a deixar-se chamar D. Miguel I; mas não constava nem se provava que o agravante se aproveitasse de tal fraude e impostura para extorquir valores aos seus estúpidos cortesãos; o que decerto praticada um gamenho decidido a fingir-se D. Miguel para os espoliar. Que a pronúncia fora iníqua, atabafada apaixonadamente, e sem base, visto que nada se colhia dos depoimentos das testemunhas, e apenas se fez obra por hipóteses e indícios, fundada num rol de indivíduos alarves, a quem o suposto monarca fazia mercês de comendas, de títulos, de patentes e até de mitras, sem que daí resultasse alvoroto nem leve perturbação na ordem pública, nem mesmamente dano para os mencionados burros que pediam as mercês, e que deviam ser pronunciados em primeira instância, se a corte de São Gens de Calvos não fosse uma farsa de Entrudo.
E, dilatando-se filosoficamente e chistoso, o juiz-relator adicionava, aconselhando, que seda bom e proveitoso que nas tenras selváticas do Minho se espalhassem muitos Miguéis daquela casta e feitio até que os novos Sebastianistas se convencessem de que somente assim poderiam arranjar um Miguel que lhes desse comendas, títulos, postos militares e prelazias.
Os desembargadores, com o seu rapé engatilhado aos narizes, riram muito do final do acórdão, e, sorvidas as pitadas sibilantes, assinaram por unanimidade.
Reformada a sentença e pagas as custas pelo juiz da primeira Instância, Veríssimo foi posto em liberdade; e, quando chegou ao escritório do carcereiro Melo para se despedir, encontrou a Libânia de Covas desmaiada de júbilo, nos braços da mulher do chaveiro. Como era feliz, deixou-se ser mulher – chorou; e quando lhe cumpria dar ânimo ao preso, no pátio do Governo Civil, riu-se com a valentia dos homens extraordinários.
O conselheiro Leite recomendou ao Munes procurador que lhe mandasse a casa o Veríssimo. O filho de Norberto apresentou-se timorato, receoso, com maneiras submissas, mas dignas de um Borges Camelo infeliz.
O desembargador explicou-lhe que o chamara para lhe fazer conhecer a dívida que lhe pagou, posto que as situações fossem muito diversas. Improperou-lhe serenamente o seu delito; estigmatizou a acção de permitir que o julgassem D. Miguel; falou acerbamente contra este tirano parricida, incestuoso, canalha, e terminou por lhe aconselhar o trilho da honra, o trabalho, e a expiação das suas irregularidades, mostrando-se digno da compaixão que lhe inspirara, despronunciando-o. Veríssimo beijou-lhe a mão, e recusou dez pintos que o conselheiro lhe dava – que, se um dia necessitasse, lhos pediria. E o Fortunato Leite, a rir:
– Então as bestas dos abades sempre caíram? Fez você muito bem. Devia esfolar essas cavalgaduras! O Veríssimo recuava muito agradecido.
O conselheiro Fortunato exerceu uma enérgica influência vitalizadora na nova encerebração de Veríssimo Borges e bastante na do Torcato Munes Elias.
Por mediação do bondoso desembargador, obteve o Nunes alvará de solicitador de causas nos auditórios do Porto. Ganhou boas relações. Era esperto, zeloso e pagava-se regularmente. Chamou para a cidade a mulher e os dois filhos Alugaram casa na Rua de Trás as duas famílias. Davam-se muito bem, e gastavam economicamente os 750$000 réis das Botelhas, de meias com os salários de procurador. O Veríssimo frequentava à noite o café das Hortas, jogava o quino e, de vez em quando, ia ao café da Rua de Santo António ouvir os demagogos dos manos Passos, que o festejavam e catequizavam. Dava-se com os Navarros, com o Almeida Penha, com os Peixotos vidraceiros Ele, sobpondo ao reconhecimento os escrúpulos de espião, contava ao conselheiro Leite, cabralista intransigente, os planos dos setembristas, os clubes, as lojas de carbonários, as tramóias arranjadas em Braga pelo barão do Casal, muito setembrista, padre Alves Vicente, de combinação com o Passos José, com o Faria Guimarães, com o médico Resende, com o Damásio, com o Alves Marfins. O governador civil, visconde de Beire, estava em dia com as conspirações da Viela da Neta – aquele baluarte da Liberdade que demorava paredes meias com os escombros do Deboche, não grifado, muito à francesa; –tudo acabado hoje em dia, e soterrado debaixo de uma loja de modas, de um café e de uma taverna – o vitalismo soez e chato da decadência.
Veríssimo arrecadava uma gratificação, umas seis libras mensais, mesquinha paga dos serviços que fazia à ordem, à tranquilidade cívica da Rua das Flores e das Congostas.
Na contra-revolução de 9 de Outubro de 46, quando foi preso o duque, José Passos encontrou o Veríssimo na Praça Nova, chamou-lhe patriota, pôs-lhe a mão no ombro, sacudiu-o pelas lapelas, e disse-lhe que movesse, que agitasse as massas, porque o duque estava a desembarcar. Os sinos tangiam a rebate, a plebe ondeava para Vilar, num restrugir de tempestade, quando o Veríssimo e o Nunes procuraram o conselheiro Fortunato, que tiritava de medo com as suas enxúndias espapadas entre as filhas, numa consternação. Disseram-lhe que se iam armar para se constituírem sentinelas da segurança do seu benfeitor. O conselheiro abraçou-os muito comovido, numa excitação apopléctica.
Depois formaram-se os batalhões nacionais. Veríssimo e Torcato foram promovidos a tenentes do batalhão da Vista Alegre. Quando foi da refrega de Valpaços tinham compreendido inteligentemente que a retirada de Sá da Bandeira, da veiga de Chaves, era a fraqueza precursora de uma derrota. Conheciam o pérfido espírito do 15 e do 3 de infantaria – previram a traição. Tinham pensado maduramente os dois tenentes, sem entusiasmo, com a prudência dos quarenta anos apalpados pelos reveses de vinte batalhas. Resolveram desertar quando os batalhões de linha se passassem para as forças reais. Travou-se o encontro de Valpaços. Com os dois regimentos que mim turbilhão e a gritos de Viva a Rainha se abraçaram às vanguardas do Casal, também eles, por debaixo do fogo do seu batalhão, se passaram, dando vivas à Carta Constitucional. Eram a obra da prudência e do conselheiro Fortunato Leite.
Quando o barão de Casal foi espostejar os miguelistas a Braga, os dois tenentes apresentados pediram vénia ao general para servirem na coluna do visconde de Vinhais; – que tinham repugnância de pelejar cara a cara com os seus parentes bandeados nas guerrilhas do padre Casimiro José Vieira e do padre José da Laje. A vergonha impunhalhes o dever de doirar a mentira. Não lhes pareceu decente irem acutilar nas mas de Braga o Cristóvão Bezerra, de Bouro, e o abade de Calvos e o padre Manuel das Agras. Não poderiam ver sem mágoa a soldadesca a dar saque aos dinheiros das senhoras Botelhas.
Ainda assim não puderam esquivar-se a perseguir os realistas da comitiva de MacDonald, desde Vila Real até Sabroso; mas não desembainharam as espadas, porque o visconde de Vinhais os admitiu ao seu quartel-general, e os cadáveres que encontraram pela serra do Mezio até Sabroso, onde pereceu acutilado o caudilho escocês, eram façanhas das guardas avançadas. Os dois tenentes não deram nem tiraram gota de sangue nesta luta fratricida. Um triunfo a seco.
Concluída a guerra civil pelo convénio de Gramido, depositaram as armas e pediram empregos. O conselheiro Leite, o Casal, o Vinhais, o Alpendurada, o Carneiro Geraldes, o Joaquim Torcato, o centro cabralista recomendou-os à consideração magnânima de Sua Majestade. O Nunes, como sabia do foro, foi despachado escrivão de direito para a Estremadura, Veríssimo Borges obteve uma fiscalização rendosa dos tabacos e sabão em Trás-os-Montes; depois foi transferido, com vantagem, para a alfândega de Viana do Minho; e por último para uma direcção aduaneira do Ultramar. Ainda vivia há poucos anos, porque um jornal da localidade, debaixo de um símbolo fúnebre – um anjo curvado e deplorativo sobre a sua urna, enlutada pelas madeixas de um chorão – publicava:
Veríssimo Borges Camelo da Mesquita dá parte aos seus numerosos e respeitáveis amigos que foi Deus servida chamar à sua divina presença, hoje pelas 5 horas da manhã, sua chorada esposa D. Libânia de Covas
Borges da Mesquita, a cujo cadáver, etc. Pelo seu profundo estado de consternação pede desculpa de cumprimentos.
O jornal, depois de uns adjectivos lúgubres e velhos como a morte, acrescentava:
A Ex.ma Srª D. Libânia, que todos choramos com seu Ex.mo viúvo, era uma senhora de esmeradíssima educação, pertencia à ilustre família dos Covas; – modelo no trato insinuante com que cativava o respeito e a amizade de todas as pessoas desta Ilha, que tiveram a fortuna de a conhecer. Receba S. Ex.mo Sr. Conselheiro- Director os nossos mais sentidos pêsames pela desgraça que acaba de o ferir implacavelmente.
Veríssimo e Nunes podem ainda viver, porque eram robustos de corpo e de alma.