Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o
qual em
cosmografia professava a opinião de que este mundo é um
imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com
o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei;
mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma
pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.
O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria,
indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi
declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de
Bernardino,Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um
grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a
um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; — nome que
deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei
Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão
deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a
única verdadeira.
aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque,
tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um
olho o fazia igual aAníbal, — comparação que o lisonjeou muito, — o segundo
ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera
ambos os olhos.
Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o
casamento, vamos ao
casamento.
Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos
Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a
moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a
poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída.
Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a
família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que
não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenasse
com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais
aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.
Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como
entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que
estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em
concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha
mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.
Concorreram ao certâmen, que foi anônimo e secreto, vinte
pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era
justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou
abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou
que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de
idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável
de os vencer.
Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o
que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse
segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam
singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e
particularmente as da
moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.
Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros,
pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada,
mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado algum
tempo, voltaram com este alvitre:
Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante
três meses, findos os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro
a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das
letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as consoantes
trepavam nas
consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de
duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado,
nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.
Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou
o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a
mão da bela Estrelada.
A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente
andava atônita.
Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções:
diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx, rouph, aa? A
própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha,
propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia
fazer alguma coisa.
Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se
vinte madrigais.
O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta
amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros e foi a
única vingança.
Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se
atreveu a magoá-la, e cedeu.
Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo,
passeando ou meditando.
Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta
Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:
A mistura elegante os fez eternos.
Páginas Recolhidas
Texto-source:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
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