Mês e meio depois desse encontro no Passeio Público, Leopoldo das Neves estava sozinho em casa, e sentia um aborrecimento de morte.
Era uma noite chuvosa e fria.
Tentou escrever, e não conseguiu alinhar quatro palavras; quis ler um livro interessante, que ainda não conhecia, e fechou o volume logo depois da segunda página; sentou-se ao piano, e sentiu as mãos pesadas como se fossem de chumbo. Acendeu um charuto, e deitou-se na cama a fio comprido, contemplando os bicos dos pés.
Tinham-se já passado quarenta dias depois que ele apresentara Viriatinho a Clotilde, numa soirée, em casa de um tal comendador Freixo.
Leopoldo tratara Clotilde com muita indiferença, passando a noite a jogar o voltarete com o marido dela, um major de engenheiros e um médico. De vez em quando o Viriatinho lhe aparecia na sala de jogo, e, por gestos, o informava de que tudo corria às mil maravilhas.
Terminada a soirée, os dois amigos saíram juntos e, na rua deram cinqüenta passos ao lado um do outro sem falar.
Leopoldo quebrou o silêncio:
— Então, César? Chegaste, viste e venceste?
Por única resposta o Viriatinho tirou da algibeira um pequenino lenço e apresentou-o a Leopoldo,
dizendo:
— Vê se conheces este perfume.
— Bravo!... as coisas chegaram à cerimonia, meio maometana, da troca dos lenços?
— Tal qual como contigo. Primeiro que tudo, e modéstia à parte, não há dúvida que lhe fiz certa
impressão. É que naturalmente me achou parecido com algum herói de Xavier de Montépin. O resto já tu sabes: uns olhares ardentes e expressivos... uns apertos de mão durante a primeira quadrilha... logo em seguida uma valsa, e a troca dos lenços... Depois de amanhã lhe escreverei uma carta...
Os dois amigos separaram-se, e, desde essa ocasião, Leopoldo não mais esteve com o Viriato. A correspondência de Clotilde cessou completamente.
Durante os primeiros dias ele sentiu-se feliz, aliviado - uf! - daquela pesada algema que durante quatro anos penosamente arrastara. Depois vieram-lhe... como direi?... remorsos. Recordava-se do passado; saudosas cenas se renovavam no seu cérebro inquieto.
Clotilde aparecia-lhe agora com toda a sua meiguice, como todo o seu ardor de mulher que fecha os olhos e se entrega resolutamente a um homem, como se mergulhasse no oceano
Depois, ele passou todas noites consecutivas a sonhar com ela: via-a muito alta, muito magra, muito loura, de olhos azuis, a tocar harpa, dizendo-lhe: — Aqui me tens! Agora, sim, agora sou o teu ideal!...
Naquela noite chuvosa e úmida, Leopoldo sentia-se mais do que nunca envergonhado do seu procedimento. Por fim de contas,. Clotilde era uma bonita mulher, e uma boa rapariga, que só tivera um defeito: amá-lo exageradamente. E que fez ele? Uma canalhice: entregou-a ao Viriatinho, ao Viriatinho da Estrada de Ferro, um pulha, uma besta que com certeza não saberia apreciá-la.
O ingrato monologava esta interrogação terrível: — Já teriam indo à rua da Assembléia? - quando ouviu bater à porta.
Foi abrir. Era o Viriatinho, que entrou alegre e radiante.
— Está chovendo: tinha certeza de encontrar-te em casa. Venho trazer-te notícias da minha conquista...
Fomos hoje à cartomante!...
Leopoldo estremeceu, teve um sorriso contrafeito, e agarrou-se a um móvel para não cair.
— Arre! Custou! Escrevi nada menos que de seis cartas! As três primeiras ficaram sem resposta. Afinal foi ela própria quem me indicou o buen retiro da rua da Assembléia... Talvez o mesmo quarto, hein?
— Talvez...
— Olha: sobem-se duas escadas... abre-se uma grade de pau... entra-se num corredor,,, primeira alcova à direita... com uma janela que dá para uma área... Embaixo uma casa de fumos... É isso?...
As palavras de Viriatinho penetravam no coração de Leopoldo das Neves como outras tantas punhaladas. O pobre diabo teve ímpetos de agarrar uma bengala, e por pela porta a fora, a pauladas, o seu substituto; mas - que diabo! - o culpado de tudo não tinha sido ele próprio?... ele próprio não lhe indicara os meios de seduzir Clotilde?... não era esse o resultado fatal de uma combinação infame, proposta espontaneamente por ele?...
O Viriatinho observou:
— Mas... valha-me Deus! acho-te assim a modo de contrariado... Estás arrependido?
— Eu?... que idéia!... murmurou Leopoldo sufocado; que idéia!...
— Olha, se queres que te diga, acho que tinhas muita razão... A Clotilde é bonita, isso é, mas que mulher vulgar, que espírito acanhado!... Não tem por onde se lhe pegue!...
— Não te dizia? acudiu vivamente Leopoldo, regozijado por essa opinião; a Clotilde não vale nada!
— Sabes? não estou disposto a agüentar aquilo quatro anos, como tu... Nada! na primeira ocasião desfaço-me dela! Quis apenas prestar-te um serviço, e folgo de ter sido “útil inda brincando”.
Alguns minutos depois, o Viriatinho saiu, e Leopoldo das Neves ficou aniquilado pelo desgosto.
Foi para o seu quarto de dormir, abriu um armário, e tirou um vidro de perfumaria, o extrato predileto de Clotilde, há três anos esquecido no fundo daquele móvel. Ensopou o lenço, aspirou longamente aquele perfume “capitoso e enervante” como se quisesse anestesiar-se; depois, atirou-se à cama, enterrou a cabeça no travesseiro, e numa crise de nervos, começou a chorar desesperadamente, soluçando o nome dela.
Passou assim toda a noite.
Nenhum comentário:
Postar um comentário