sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: ARDIL: A Raul Pompéia:

 


  A que devo o prazer de uma visita a estas horas? perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde havia quinze minutos, a baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e admiravelmente calçado.

Ergueu-se a formosa visitante, e suspirou, aliviada pela presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos consuetudinários, sentaram-se ambas.

  O visconde ainda dorme?

  Ainda, e não acordará tão cedo: são apenas sete horas.

  Posso falar sem receio?

  Estamos completamente sós. Houve uma pequena pausa.

  Temos então algum mistério? interrogou a dona da casa, consertando as dobras da sua magnífica bata de rendas brancas. Histórias do coração, aposto?

  Do coração? Não sei. Há quem diga que estas coisas nada tem a ver com ele, mas com a cabeça...

Em todo caso, fazem padecer.

  A quem o dizes!

  Não durmo há duas noites... há três dias não abro o piano... Amor? - sei lá! Despeito, raiva, talvez...

  Conta-me tudo, disse a viscondessa, enxugando com os lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos da amiga; conta-me tudo. Os meus trinta e nove outonos estão, como sempre, às ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do Bittencourt.

  Fale mais baixo.

  Não tenhas medo.

  Sim, venho ainda uma vez ao encontro dos seus conselhos... Há oito meses a senhora ensinou-me a subjugá-los, a escravizá-lo aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor; hoje, que ele se mostra arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua experiência, a sua calma, o seu bom senso e, sobre tudo, a sua amizade, me indicará os meios de reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para mim. A senhora teve quatro amantes...

  Três, interrompeu serenamente a viscondessa; ao quarto não se pode ainda aplicar o pretérito mais que perfeito: está no pleno gozo da sua conquista.

  Pois bem, três, e nenhum deles a desprezou; no momento oportuno a senhora desfez-se habilmente de todos três, sem deixar a nenhum o direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço do visconde: Fui eu que não quis mais...

Houve outra pausa.

  Imagine, prosseguiu a baronesa, imagine que há mês e meio só tenho estado com ele no Lírico, durante os espetáculos. Procura, para cumprimentar-me, justamente as ocasiões que o meu marido está no camarote. Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal; não tive resposta!

  Que horror! murmurou a viscondessa, profundamente impressionada.

  Vamos... diga-me... aconselhe-me! Que devo fazer?... Estou irresoluta... a senhora bem sabe... é o meu primeiro amante...

  Deixa-me pensar, filhinha, deixa-me pensar. Estas coisas não se decidem assim, num abrir e fechar de olhos!

E, depois de refletir alguns segundos, tamborilando com os dedos nos braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a seriedade de um velho advogado, comprometido a defender causa importante.

  Vejamos: o Bittencourt, segundo me consta, contraiu ultimamente uma dívida de gratidão com teu marido...

  Sim, creio que sim... O barão, ao que parece, interveio com muito empenho para que lhe dessem aquele belo emprego...

  Uma verdadeira sinecura.

  Mas... que tem isso?

  Tem tudo, filhinha; a moral fácil desses senhores proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde que devam favores ao marido.

  Quer isso dizer que tais favores são pagos à custa do nosso amor próprio?

  E do nosso próprio amor: o sacrifício é todo nosso! Podem limpar a mão à parede com sua moral!

  Mas, por fim das contas, que devo fazer?

  Guerrear e vencer os escrúpulos tolos do teu amante! Para isso é indispensável que ele te escreva.

Verba volant, scripta moment.

  Não sei latim.

  Quero dizer que nenhum homem, por mais inteligente, soube até hoje redigir uma epístola de amor sem se compromete. Na sua carta o Bittencourt fatalmente renovará promessas, e o seu cavalheirismo - o seu cavalheirismo pelo menos - o obrigará a cumpri-las. E quando o vires de novo rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém esses amantes que fazem pose da sua falsa dignidade.

  Mas por amor de Deus, viscondessa! Não lhe acabo de dizer que as minhas cartas tem ficado sem resposta?

  A que lhes vai escrever agora não ficará sem ela. Tenho um ardil que há tempos empreguei com ótimo resultado. Vem cá, acompanha-me.

A doutora levantou-se e dirigiu-se para um gabinete contíguo. A baronesa acompanhou-a.

  Senta-te, e escreve o te vou ditar.

No dia seguinte o Bittencourt recebia este bilhete:

“Tenho-lhe escrito três cartas, e de nenhuma recebi resposta. Não me queixo, perdôo: o senhor deve andar muito preocupado com o seu novo emprego, e há momentos, parece, em que todo o homem honesto é obrigado a sacrificar os seus afetos aos deveres e às responsabilidades da vida prática. Paciência.

Entretanto, como o senhor agora já deve estar mais folgado, tem por fim esta carta pedir-lhe a resposta das outras. - Sua quand même, L.

Post-scriptum - Há aqui no meu bairro grande dificuldade de obter selos do Correio, e, para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los à cidade. Peço-lhe que, com os cinco mil réis que inclusos encontrarás, compre cinqüenta selos de tostão, e nos remeta dentro da sua carta quando me responder. - Sua L.”

 E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma nota de cinco mil réis!


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