— A que devo o prazer
de uma visita a estas horas? perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde
havia quinze minutos, a baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e
admiravelmente calçado.
Ergueu-se a formosa visitante, e suspirou,
aliviada pela presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos consuetudinários,
sentaram-se ambas.
— O visconde ainda dorme?
— Ainda, e não
acordará tão cedo: são apenas sete horas.
—
Posso falar sem receio?
— Estamos completamente sós. Houve uma pequena pausa.
— Temos então algum
mistério? interrogou a dona da casa, consertando as dobras da sua magnífica
bata de rendas brancas. Histórias do coração, aposto?
— Do coração? Não sei.
Há quem diga que estas coisas nada tem a ver com ele, mas com a cabeça...
Em todo caso, fazem
padecer.
— A quem o dizes!
— Não durmo há duas
noites... há três dias não abro o piano... Amor? - sei lá! Despeito, raiva, talvez...
— Conta-me tudo, disse
a viscondessa, enxugando com os lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos
da amiga; conta-me tudo. Os meus trinta e nove outonos estão, como sempre, às
ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do Bittencourt.
— Fale mais baixo.
— Não tenhas medo.
— Sim, venho ainda uma
vez ao encontro dos seus conselhos... Há oito meses a senhora ensinou-me a
subjugá-los, a escravizá-lo aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor;
hoje, que ele se mostra arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua
experiência, a sua calma, o seu bom senso e, sobre tudo, a sua amizade, me
indicará os meios de reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para
mim. A senhora teve quatro amantes...
— Três, interrompeu
serenamente a viscondessa; ao quarto não se pode ainda aplicar o pretérito mais
que perfeito: está no pleno gozo da sua conquista.
— Pois bem, três, e
nenhum deles a desprezou; no momento oportuno a senhora desfez-se habilmente de
todos três, sem deixar a nenhum o direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço
do visconde: Fui eu que não quis mais...
Houve outra pausa.
— Imagine, prosseguiu
a baronesa, imagine que há mês e meio só tenho estado com ele no Lírico,
durante os espetáculos. Procura, para cumprimentar-me, justamente as ocasiões
que o meu marido está no camarote. Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal;
não tive resposta!
— Que horror! murmurou
a viscondessa, profundamente impressionada.
— Vamos... diga-me...
aconselhe-me! Que devo fazer?... Estou irresoluta... a senhora bem sabe... é o
meu primeiro amante...
— Deixa-me pensar,
filhinha, deixa-me pensar. Estas coisas não se decidem assim, num abrir e
fechar de olhos!
E, depois de refletir alguns segundos,
tamborilando com os dedos nos braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a
seriedade de um velho advogado, comprometido a defender causa importante.
— Vejamos: o
Bittencourt, segundo me consta, contraiu ultimamente uma dívida de gratidão com
teu marido...
— Sim, creio que
sim... O barão, ao que parece, interveio com muito empenho para que lhe dessem
aquele belo emprego...
— Uma verdadeira
sinecura.
— Mas... que tem isso?
— Tem tudo, filhinha;
a moral fácil desses senhores proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde
que devam favores ao marido.
— Quer isso dizer que
tais favores são pagos à custa do nosso amor
próprio?
— E do nosso próprio
amor: o sacrifício é todo nosso! Podem limpar a mão à parede com sua moral!
— Mas, por fim das
contas, que devo fazer?
— Guerrear e vencer os
escrúpulos tolos do teu amante! Para isso é indispensável que ele te escreva.
Verba volant, scripta moment.
— Não sei latim.
— Quero dizer que
nenhum homem, por mais inteligente, soube até hoje redigir uma epístola de amor
sem se compromete. Na sua carta o Bittencourt fatalmente renovará promessas, e
o seu cavalheirismo - o seu cavalheirismo pelo menos - o obrigará a cumpri-las.
E quando o vires de novo rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém
esses amantes que fazem pose da sua
falsa dignidade.
— Mas por amor de
Deus, viscondessa! Não lhe acabo de dizer que as minhas cartas tem ficado sem
resposta?
— A que lhes vai
escrever agora não ficará sem ela. Tenho um ardil que há tempos empreguei com
ótimo resultado. Vem cá, acompanha-me.
A doutora levantou-se e
dirigiu-se para um gabinete contíguo. A baronesa acompanhou-a.
— Senta-te, e escreve
o te vou ditar.
No
dia seguinte o Bittencourt recebia este bilhete:
“Tenho-lhe
escrito três cartas, e de nenhuma recebi resposta. Não me queixo, perdôo: o
senhor deve andar muito preocupado com o seu novo emprego, e há momentos,
parece, em que todo o homem honesto é obrigado a sacrificar os seus afetos aos
deveres e às responsabilidades da vida prática. Paciência.
Entretanto, como
o senhor agora já deve estar mais folgado, tem por fim esta carta pedir-lhe a
resposta das outras. - Sua quand même, L.
“Post-scriptum
- Há aqui no meu bairro grande dificuldade de obter selos do Correio, e,
para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los à cidade. Peço-lhe que, com
os cinco mil réis que inclusos encontrarás, compre cinqüenta selos de tostão, e
nos remeta dentro da sua carta quando me responder. - Sua L.”
E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma nota de cinco mil réis!
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