sexta-feira, 1 de julho de 2022

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: O VELHO LIMA:


 A Fricinal Vassico 

O velho Lima, que era empregado - empregado antigo - numa da nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil. 
O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram- lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias. 
O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais, e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República. 
No dia 23, restabelecido e pronto para outra comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras: 
— Bom dia, cidadão. 
O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder! 
— Bom dia, comendador. 
— Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores! 
— Ora essa! Então por que? 
— A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!... 
O velho Lima encarou o comendador, e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria. Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro: 
— Como vai você com o Aristides? 
— Que Aristides? 
— O Silveira Lobo. 
— Eu?... onde?... como?... 
— Que diabo! pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do Interior? 
Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido. 
— Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? perguntou Vidal, passados alguns momentos. Sonetos, naturalmente, que é o do que mais se ocupava aquele tipo! 
— Ora vejam, refletiu o velho Lima, ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava nos eu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador. 
Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador. 
— Uma autoridade policial! murmurou o velho Lima. E o comendador acrescentou: 
— Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve chegar lá no princípio do mês. 
O velho Lima comovia-se: 
— Não diz coisa com coisa, coitado! 
— E a bandeira? Que diz você da bandeira? 
— Ah, sim... a bandeira... sim... repetiu o velho Lima para o não contrariar. 
— Como a prefere: com ou sem lema? 
— Sem lema. respondeu o bom homem num tom de profundo pesar; sem lema. 
— Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro. 
Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado, e disse-lhe: 
— Parece que vamos ficar aqui! está cada vez pior o serviço da Pedro II! 
— Qual Pedro II! bradou o comendador. Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil 
contos! 
— E vá para a casa do diabo! acrescentou o subdelegado. 
O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se. 
Chegado à praça da Aclamação. entrou num bonde e foi até a sua secretaria sem reparar em nada nem 
nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara. 
Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação... 
Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer: 
— Cidadão! 
— Deram hoje para me chamar de cidadão! pensou o velho Lima. Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data. 
— Oh! você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!... O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente. 
— Querem ver que já é alguém! refletiu o velho Lima. 
— Amanhã parto para a Paraíba, disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos; como sabe, vou exercer o cargo de chefe da polícia. Lá estou ao seu dispor. 
E saiu. 
— Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!... 
Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros. 
— Muito bem! disse consigo; foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa. 
Sentou-se, e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. 
Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe: 
— Por que tiraram da parede o retrato de sua majestade? O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso: 
— Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana? 
— Pedro Banana! repetiu raivoso o velho Lima. E, sentando-se, pensou com tristeza: 
— Não dou três anos para que isto seja república.

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