sexta-feira, 4 de março de 2022

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: UMA EMBAIXADA:

 

 

Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema. 
— Entra. Estava ansioso. 
— Vim, mal recebi o teu bilhete. Que desejas de mim? 
— Um grande serviço! 
— Oh, diabo! trata-se de algum duelo? 
— Trata-se simplesmente de amor. Senta-te. Sentaram-se ambos. 
Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opiniões ou sentimentos. 
Estimavam-se muito, estimavam-se deveras. 
— Mandei-te chamar, continuou Minervino, porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ía guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há se der hoje por força. 
— Estou às tuas ordens. 
— Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado? 
— Sim, lembro-me... um namoro... 
— Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão! 
— Que? Tu estás apaixonado?!... 
— Apaixonadíssimo... e é preciso acabar com isto! 
— De que modo? 
— Casando-me; e tu que hás de pedi-la! 
— Eu?!... 
— Sim, meu amigo. Bem sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entrou ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: — Vá descansado, hei de fazer justiça, - eu respondi-lhe: — Vossa Excelência, se me nomear, não chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que dirá com as viúvas! 
— Mas tu a conheces? 
— Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido de minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloqüência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna. 
— Mas que diabo! observou Salema, - isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado! 
— Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença. 
— Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir? 
— Ah! como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa. 
E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre: — Vai! Vai! não te demores! Salema saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins. 
No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara. 
— Que diabo! refletiu ele; não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... eles namoram- se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos. 
Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de reps, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto. 
Salema esperou uns dez minutos. 
Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se-lhe os movimentos, e não pode reter uma exclamação de surpresa. 
Era ela! ela!.. a misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito. 
Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!... 
— Oh!, disse a viúva, estendendo-lhe a mão, muito naturalmente, como se fosse a um velho amigo; era o senhor? 
— Conhece-me? balbuciou Salema. 
— Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro, e, não sei porque... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem........................................................... lembra-me que o puseram nas 
nuvens. Por que nunca mais tornei a vê-lo? 
Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se mais tímido que Minervino, - mas cobrou ânimo, e respondeu: 
— Não foi porque não a procurasse por toda a parte... 
— Não sabia onde eu morava? 
— Não; supus que nas Laranjeiras. Via-a entrar naquele sobrado. e debalde passei por lá um milhão de 
vezes, na esperança de tornar a vê-la. 
— Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só se abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim........................ Sente-se, e diga o motivo de sua visita. 
De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino. 
— O motivo da minha visita é muito delicado; eu... 
— Fale! diga sem rebuço o que deseja! seja franco! imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui 
educada por meu marido... 
E apontou para o retrato. 
— Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!... 
— Minha senhora, eu sou... 
Ela interrompeu... 
— É o senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento. 
Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou. 
— É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações e quase rica. Não tenho filhos nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo! 
Salema quis dizer alguma coisa; ela não o deixou falar. 
— Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado. 
Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado. 
— Mano, apresento-lhe o senhor Nuno Salema, o meu noivo. 
O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse: 
— All right!... 
Depois inclinou-se, de novo e saiu da sala, sempre apressado. 
— Mas, minha senhora, tartamudeou o noivo muito confundido, imagine que o meu colega Minervino que mora ali defronte... 
— Ah! aquele moço?... Coitado! não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!... 
— Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar... 
— Deveras?! exclamou a viúva Perkins. E ei-la acometida de um ataque de riso: 
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! 
E deixou-se cair no divã. 
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! 
Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou: 
— Que hei de dizer ao meu amigo? Ela ficou muito séria, e respondeu: 
— Diga-lhe que quem tem boca não manda assoprar.

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