Camilo não foi longa nem seguida. E todavia, leitor, se
alguma simpatia te
merece a princesa moscovita, deves sinceramente lastimá-la.
A aurora de
um novo sentimento começava a dourar as cumeadas do coração
de
Camilo; ao subir as escadas, confessava o filho do
comendador de si parasi, que a interessante patrícia tinha qualidades superiores
às da bela
princesa russa. Hora e meia depois, isto é, quase no fim do
jantar, o
coração de Camilo confirmava plenamente esta descoberta do
seu
investigador espírito.
A conversa, entretanto, não passou de coisas totalmente
indiferentes;
mas Isabel falava com tanta doçura e graça, posto não
alterasse nunca a
sua habitual reserva; os olhos eram tão bonitos de ver ao
perto, e os
cabelos também, e a boca igualmente, e as mãos do mesmo
modo, que o
nosso ardente mancebo, só mudando de natureza, poderia
resistir ao
influxo de tantas graças juntas.
tenente-coronel todas as notabilidades do lugar, o vigário,
o juiz
municipal, o negociante, o fazendeiro, reinando sempre de
uma ponta à
outra da mesa a maior cordialidade e harmonia. O imperador
do Divino,
já então restituído ao seu vestuário comum, fazia as honras
da mesa com
verdadeiro entusiasmo. A festa era o objeto da geral
conversa,
entremeada, é verdade, de reflexões políticas, em que todos
estavam de
acordo, porque eram do mesmo partido, homens e senhoras.
eloqüentes em cada jantar de certa ordem a que assistisse. A
facilidade
com que ele se exprimia não tinha rival em toda a província.
Além disso,
como era dotado de descomunal estatura, dominava de tal modo
o
auditório, que o simples levantar-se era já meio triunfo.
coronel; ia-se entrar na sobremesa quando o eloqüente major
pediu
licença para dizer algumas palavras singelas e toscas. Um
murmúrio,
equivalente aos não-apoiados das câmaras, acolheu esta
declaração do
orador, e o auditório preparou o ouvido para receber as
pérolas que lhe
iam cair da boca.
ousadia; não vos fala o talento, senhores; fala-vos o
coração.
“Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a
capacidade do ilustre
Tenente-coronel Veiga não é preciso fazer um longo discurso.
Seu nome
diz tudo; a minha voz nada adiantaria...”
O auditório revelou por sinais que aplaudia sem restrições o
primeiro
membro desta última frase, e com restrições o segundo; isto
é,
cumprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que,
para ser
coerente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a
esvaziar o copo,
prosseguiu da seguinte maneira:
que nunca se apagará da vossa memória. Muitas festas do
Espírito Santo
têm havido nesta cidade e em outras; mas nunca o povo teve o
júbilo de
contemplar um esplendor, uma animação, um triunfo igual ao
que nos
proporcionou o nosso ilustre correligionário e amigo, o
Tenente-coronel
Veiga, honra da classe a que pertence, e glória do partido a
que se
filiou...
— E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel.
— Nem outra coisa era de esperar de V. Ex.ª, disse o orador
mudando de
voz para dar a estas palavras um tom de parênteses.
Apesar da declaração feita no princípio, de que era inútil
acrescentar nada
aos méritos do tenente-coronel, o intrépido orador falou
cerca de vinte e
cinco minutos com grande mágoa do Padre Maciel, que namorava
de
longe um fofo e trêmulo pudim de pão, e do juiz municipal
que estava
ansioso por ir fumar. A peroração desse memorável discurso
foi pouco
mais ou menos assim:
— Eu faltaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de
correligionário,
de subordinado e de admirador, se não levantasse a voz nesta
ocasião, e
não vos dissesse em linguagem tosca, sim (sinais de
desaprovação), mas
sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o
entusiasmo
de que me sinto possuído, quando contemplo o venerando e
ilustre
tenente-coronel Veiga, e se vos não convidasse a beber
comigo à saúde
de S. Ex.ª.
O auditório acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao
qual
respondeu o tenente-coronel com estas poucas, mas sentidas
palavras:
— Os elogios que me acaba de fazer o distinto Major Brás são
verdadeiros
favores de uma alma grande e generosa; não os mereço,
senhores;
devolvo-os intactos ao ilustre orador que me precedeu.
No meio da festa e da alegria que reinava ninguém reparou
nas atenções
que Camilo prestava à bela filha do Dr. Matos. Ninguém, digo
mal;
Leandro Soares, que fora convidado ao jantar, e assistira a
ele, não tirava
os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.
Há de parecer milagre ao leitor a indiferença e até o ar
alegre com que
Soares assistia aos ataques do adversário. Não é milagre;
Soares também
interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferença,
talvez o desdém,
com que tratava o filho do comendador.
Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior;
cada dia que
passava aumentava a chama que o consumia. Paris e a
princesa, tudo
havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só
ente, um
lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.
A esquivança e os desdéns da moça não contribuíram pouco
para esta
transformação. Fazendo de si próprio melhor idéia que do
rival, Camilo
dizia consigo:
“Se ela não me dá atenção, muito menos deve importar-se com
o filho de
Soares. Mas por que razão se mostra comigo tão esquiva? Que
motivo há
para que eu seja derrotado como qualquer pretendente
vulgar?”
Nessas ocasiões lembrava-se do desconhecido que lhe falara
na igreja e
das palavras que lhe dissera.
— Algum mistério haverá, dizia ele; mas como descobri-lo?
Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de
olhos miúdos
e vivos. Ninguém lho soube dizer. Parecia incrível que não
chegasse a
descobrir naquelas paragens um homem que naturalmente alguém
devia
conhecer; redobrou de esforços; ninguém sabia quem era o
misterioso
sujeito.
Entretanto Camilo freqüentava a fazenda do Dr. Matos e ali
ia jantar
algumas vezes. Era difícil falar a Isabel com a liberdade
que permitem
mais adiantados costumes; fazia entretanto o que podia para
comunicar à
bela moça os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais
estranha às
comunicações do rapaz. Suas maneiras não eram positivamente
desdenhosas, mas frias; dissera-se que ali dentro morava um
coração de
neve.
Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o
despeito e a
vergonha, e tudo isto, junto a uma epidemia que então
reinava na
comarca, deu com o nosso Camilo na cama, onde por agora o
deixaremos, entregue aos médicos seus colegas.
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