A primeira coisa
que ele fez foi olhar para o meu sapato. Logo depois para minha roupa e se eu dissesse que arriscou um olhar para
minhas pernas talvez não fosse
mentira. Fato é que abriu
uns dentes bem
maiores que a boca
e sorriu uma vantagem e meia sobre minha surpresa.
Foi questão de segundos aquela troca animada de palavras, misturando anda logo pra cá e fica quietinha ou te passo fogo. Se eu dissesse que o medo nasce no estômago como uma flor de cerrado, deveria acrescentar que nascia uma plantação bem no meio da minha barriga, seca como meus lábios e a garganta vazada de vodca. Ele era ágil, embora nervoso. Sacudia a bolsa como uma caixa de surpresas e só não adivinhava porque metia a mão dentro dela e vasculhava. Toma os documentos, dona, não preciso dessa merda. E nada de gritos.
A ameaça vinda de um menino parecia um rio em busca do mar. E, sem saber muito bem das respostas, era como deixar-se afogar num poço aturdido pelo próprio eco. Com a carteira na mão, ele já podia me ver. A rua pedia silêncio àquelas horas. O olhar dele entregava o medo e o medo vinha bater nos meus pés feito um gato ou outro bicho qualquer que se ajeita diante do dono. As mãos queriam a certeza de que assalto não é brinquedo e que se a polícia passasse ou eu cismasse de gritar, aquilo era um calaboca ruidoso, mas muito eficiente. Nada disso. Ele me olhava como um menino, e ia pedir pão, dinheiro, trocado pro doce. Parecia mais sereno agora, o dinheiro garantido, a bolsa atirada longe, fora da luz que nos denunciava.
Quem olhasse de longe, teria certeza de que vivíamos confissões. E, no fundo, era isso que fazíamos. Ele, me roubando, revelava sua miséria e sua dor. Sem falar no espanto que percorria sua cara, os olhos livres, as mãos prontas. E eu, inerte, lhe confessava as sobras, o supérfluo, as cadeiras vazias
reverenciando a mesa. Enfim, era somente uma bolsa de couro cru entupida de inutilidades fundamentais. Foi a primeira troca. A vantagem estava comigo. De que valeria uma carteira cheia e essa vida aberta para o nada? Éramos dois pensamentos, bóias luminosas em alto-mar. Ninguém a ser salvo, a correnteza. A voz dele timbrava o escuro e o escuro engolia as sílabas, os ss, as palavras truncadas que atirava na minha cara. Que que tá olhando, hein dona? Nunca viu não, é? A voz dele batia na minha pele e eu deixava escorrer, fazendo ele pensar que comandava o espetáculo. Verdadeiro circo, pau e cerco. Num se move não, moça, esse bicho aqui num gosta de conversa. Ele chove bala e fura seu corpinho todo.
Foi o segundo tempo. Ele falou "corpinho todo". E me olhou mais undo, varando o escuro, metendo a mão no silêncio e abrindo a porta sem bater. E ele logo percebeu que estávamos desaguando no meio do mar. E ali boiávamos, lado a lado, náufragos de uma solidão ao contrário. A fome dele não parecia ter destino. A minha esperava, estava aprisionada e gritava no cerrado. Depois de tanta água, tanto sal, a seca rachando a terra, flor enfiada no meio do barro, resistindo sabe-se lá o quê.
Me diz seu nome,
diz. Ele se espantou. Que qui há, dona? A curiosidade começou a crescer. De um
lado beirava o abismo, do outro o muro não deixava passar. É, o seu nome. Como
você se chama? Os dois olhos do menino dançavam numa esquina e noutra. Acha que
sou otário, é moça?
Passar assim o
serviço, sem nada. Qualé? Tem nome não, dona.
É menino mesmo, tá falado? Ora, você tem que ter um apelido, ser chamado de
alguma coisa. Sai dessa!
A vantagem
aumentava. Ele, sem perceber, cedia. Era só uma bolsa,
uns trocados e os documentos - graças a Deus - ele devolvia. Por que é que você assalta? Ah! que isso, dona? Tá a fim de sacanear, pô! Tá tudo aí na rua, soltinho, pedindo preu levar. Eu levo. Quantos anos você tem? Ih! dona, a senhora tá mesmo esticando o gumex. Vô nessa, num se mexe que leva chumbo. E nunca me viu, tá falado? A ameaça era mais uma tentação. Pra que ele fazia tanto jogo de cintura se não ia nem sair dali assim? Acho que ele gostava era de fazer cena. Será? Coisa de cinema, a porta do bar tem que ser de mola e se não estiver escrito saloon, entrou no filme errado.
Tá querendo o quê, hein dona? Fazer uma sacanagenzinha, é? Isso é mais caro, tá sabendo? Num vale essa merda de dinheiro que tava aí, não, saca? E foi chegando mais perto.
Aí pude ver que a cara dele estava toda marcada, desenhada a traço de navalha, podia ser canivete, gilete, essas alegorias da sobrevivência. Os cabelos escorriam até o ombro e não estavam sujos. Aliás, ele não parecia um pivete, nem tampouco um adolescente. Era um náufrago. Molhado, suado, debatendo-se para não morrer. Atirei-lhe um braço de bóia. Vem, sobe, te salvo. Ele se aproximou mais. A dona gostou do material, é? Ele não sabia fazer nada calado. Tinha que falar alto, explicar direitinho tudo o que acontecia. Gostava de se exibir. Tem gente que gosta de se mostrar nas mínimas coisas e tem gente que não tem o que mostrar e, por isso, tira partido do que é de graça. Foi a natureza, dona. Exclamava cheio de um orgulho compensador. Vem cá, vem. Cara a cara com a miséria, ela se enrolava no meu peito. Ele beijava sem rancor, nem parecia o mesmo. O carro apoiava
a perna dele na minha. E me batia uma vontade sem freios de beijar ele todinho, lamber aquela fome toda, saquear todos aqueles assaltos em nome de nada. Ele balançava o corpo contra o meu, metendo pela minha coxa. E avançava a avenida do meu corpo, acelerando entre um vão e outro.
Babava um pouco, o que não me importava. Segurava forte minha coxa, bem perto da calcinha. Machucava e eu gostava. A liberdade dele não tinha preço, nem etiqueta. Arfava mais forte pelo balanço ritmado contra meu corpo encostado no carro. A perna dele sacudia e ele ia endurecendo, marcando a calça. Tremia e não parecia nada à vontade. Devia ser aquela história de comer "gente muito fina", como ele se referia a mim quando estava quase gozando. Fincava os dentes no meu ombro e a língua dura arrepiava minhas costas, arredondando um tanto assim a boca só pra ficar mais gostoso. E ele era. Mas me intrigava aquele furor todo sem pasto. Daí pisava na grama desobedecendo a placa. Depois cuspia nos dizeres só pra ter certeza de que comia o impossível. A fome faz destas coisas. E outras também.
O prazer é uma aventura perto do coração selvagem. E agora esse menino vem mexer nas minhas veias e ativar meu sangue, sacudir a poeira das minhas estantes, ferir dance e cole porter, rir alto de todos os pensamentos, de todas as teorias, bulir com o improvável, liquidificar larousse com azulão. Sacana. Arrombar o silêncio da minha casa a quilômetros de distância, radiografar meu cotidiano sem o menor pudor e violar minha correspondência com a segurança dos amantes. Meter o pé no meu gato, pôr água pra ferver o chá e nem poder sentir o cheiro que o tchaika exalava.
Dormir Maré e acordar Manhattan. Ora, imagens, imagens, imagens. Cheirava e alisava meu corpo como se não tivesse coisa melhor pra fazer. E vai ver não tinha mesmo. Por isso atiçava fogo em sua própria pele, apertava meu peito, mostrava a língua e melava um pouco os dedos, enfiando minha mão inteira na boca. Não respondia às perguntas que eu ainda fazia. Talvez não pudesse. Falava de boca cheia, comia sôfrego e não me ouvia, protegido pelo tesão e pelo olho atento, em vigília, com medo que passasse alguém naquele fim de mundo. Eu sabia que ali, àquelas horas, nem fantasma assustaria. Era o preço da tranqüilidade.
Eu saboreava aquele fruto silvestre e ele pensava que transava com uma grã-fina, como gemia pra dentro. Gostosa, faz assim, abre mais. Eu deixava tudo. Ele passava a mão, esfregava o peito contra o meu, forçava a perna, mordia meu ombro, babava meu rosto todo e me chamava de puta, vaca, vagabunda... E eu flutuava, asas ao vento, subindo e descendo, acariciada pelos tapas, pela barba rala. A mão dele raspava a pintura do meu corpo, rachava os conceitos alicerçados pela educação, varava a escuridão das insônias, perfurava o prazer como um cartão de computador, programando um inesperado de situações que aquele assalto e os poucos trocados não valeriam.
Esfrega, vaca. Pega nele, toca, anda. Se eu dissesse que obedecia, estaria mentindo. Eu queria adivinhar o que ele queria, encharcar as mãos dele de um prazer incontrolável, naufragar de vez numa ressaca e tragar a força dele, sem a menor piedade. Ele suava, a camisa empastava, afogueado no meu pescoço. Vai, vai, vai, desesperado, pronto para a entrega. Meu corpo amolecia ainda mais e ele montava na minha coxa como um aleijado e partia para caçada em mata desconhecida. Estou gozando, gozando, faz, a voz misturava prazer e gana, agarrado a meu braço, pedindo, quase, pra eu perdoar. Eu estava aberta, vasculhada, escancarada pra rua, a polícia entrando sala adentro, sem ordem, invadindo as dependências, virando livros e papéis - no chão. Os olhos dele entornavam, a boca deixava escapar um sorriso, os braços pendiam sem forças, anestesiados por um prazer incógnito. Eu limpava a testa dele, botava remédio, aliviava o incêndio estampado na cara. Ainda colado em mim, amparado, ele mandou eu virar. Obedecia.
-
Anda, dá logo essa bunda, senão leva é
muita porrada. A ameaça estava enfraquecida,
a luz filtrava o pé da porta.
Virei devagar e ele metia
faminto. Comecei a sentir dor e dormência, a circulação fluir mais rápido, vontade de segurar ele
lá dentro e me redimir. A mão dele roçava na
frente, tocava
-
rápido,
movimentos que conhecia
de cor. O prazer alastrava corpo inteiro.
Abrandou o movimento. Relaxamos. A voz do menino cortou o silêncio.
Fica aí
quietinha, nada de virar. Te manjo, puta velha.
E se tu passar pra polícia
esta história, tu vai ver, hein?
Meu corpo se confundia com a lataria do carro. Ouvi os passos dele se afastando, correndo no asfalto. Minha perna estava bamba e mesmo que quisesse gritar por ele, a voz tinha perdido as palavras e as palavras não fariam muito sentido. Resolvi virar e a noite permanecia no mesmo lugar, os edifícios tapando a lua, as árvores protegendo os carros, os postes chovendo um cone de luz contra a calçada. Mais adiante, minha bolsa já pertencia àquela rua e os meus pés esqueciam o comando de seguir. Por um instante olhei em volta, subi a calcinha, apanhei a bolsa, arrumei os movimentos, ensaiei uns passos sem convicção. Estranho, ele não levou o relógio. Ficaria tão bem nele. Fui recompondo as cenas devagar, medindo os passos na direção de casa.
A primeira coisa
que ele fez foi olhar para o meu sapato. Ele podia ter me matado, eu sei. Ele
bem que podia ter me salvado.
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