domingo, 12 de junho de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis:15 DE DEZEMBRO DE 1862:


Cuida o leitor ao ver-me começar por este modo, que tenho uma crônica farta e volumosa de notícias, e que para ganhar tempo é que entro em matéria? Antes assim fosse. Eu comecei assim, não só para usar de todas as deferências para com um talento modesto, mas ainda para fugir a este lugar-comum que me ia saindo dos bicos da pena: 
Suponha o leitor, queria eu dizer, que está em uma assembléia legislativa. Discute-se o orçamento da receita e despesa, matéria de máxima importância, como se vê logo pela designação. Há grande alvoroço: pedem a palavra, sobem à tribuna os melhores oradores, a lógica e a retórica andam em pleno exercício; e a palavra humana torna-se nesse momento, para usar da expressão de Montalembert, o tipo supremo da beleza, a arma irresistível da verdade. Sobre que se discute? Sobre o orçamento? Não, senhor: os oradores cansam-se, elevam- se, lutam, fazem prodígios da língua, sobre tudo, menos o objeto da discussão. As questões de política especulativa, as recriminações dos partidos, as invectivas pessoais, o inventário parcial do passado, as conjecturas arbitrárias do futuro, tudo o que pode ser alheio ao orçamento entra em pleno serviço; o orçamento, esse ouve falar em seu nome por duas outras vozes mais moderadas, que, entrando no terreno prático, desdenham o palavreado estéril e procuram utilizar o tempo malbaratado. 
A imagem diminuída, mas aproximada deste fato anual, queria eu acrescentar, acha-se nesta palestra de hoje com os meus leitores, na qual poderemos tratar de tudo, menos do objeto principal que nos reúne. Vê o leitor que, apesar de usado por boas autoridades, isto é um lugar-comum perfeitamente comum. Tive razão em retrair a pena. Afinal de contos, o leitor não tem culpa que o Rio de Janeiro ande a competir com a chuva em aborrecimento e que mesmo lhe leve a palma. Em míngua de notícias forja-se, ou enche-se papel com qualquer coisa. 
Dada esta ligeira explicação, volto aos Contos do Serão. É um livrinho do Sr. Leandro de Castilhos, composto de três contos: Uma boa mãe, Otávia e Um episódio de viagem. O título do livro, modesto e simples, corresponde à natureza da matéria. Trata-se de ligeiros contos, escritos sem pretensão, visando menos glória literária do que as impressões passageiras e agradáveis do lar. Entretanto, fora injustiça ler o volume do Sr. Castilhos fora do terreno literário. Dá-lhe o direito de assistir aí a um talento que, se não se apresenta com maior fulgor, nem por isso é menos real e menos esperançoso. 
Por que não ensaia o Sr. L. de Castilhos um romance de largo fôlego? Não lhe falta invenção, as qualidades que ainda se não pronunciaram, reservadas ao romance, hão de por certo tomar vulto e consistência nas composições posteriores, feitas com meditação e trabalhadas conscientemente. 
O romance, de que temos apenas dois assíduos cultores, o Srs. Macedo e Alencar, espera por novos, porque tem ainda muitos recantos não investigados e talvez fontes de boa riqueza. 
Do romance ao teatro é um passo, e eu não tenho grande dificuldade em dá-lo. Duas novidades que devem ser contadas como literária apareceram na quinzena: 
As leoas pobres, de Emile Augier, e a Herança do Chanceler, do Sr. Mendes Leal. Todavia, esta segunda, por já conhecida de todos, não ofereceu outra novidade além da representação pelos artistas do Ginásio. Farei eu a injustiça de crer que os leitores não conheciam a Herança do Chanceler? 
Há uma terceira novidade; esta, porém, não me cabe avaliar, que a não vi, e a julgar pelo que me assegura pessoa de conceito, está fora das condições literárias assinaladas às duas primeiras. É a comédia: Os amores de Cleópatra que entretanto preenche o dever a que os nomes dos autores estão obrigados: faz rir. Foi também representada no Ginásio. 
Pelo que respeita às Leoas pobres, é essa uma comédia que assusta os espíritos menos ousados e faz recuar à primeira vista. Todavia, quem tiver a força de conservar-se alguns momentos diante dela e meditá-la, verá que nem há motivo para terrores, mas que ainda há muito boas razões mais bem acabadas do teatro contemporâneo, todas as reservas de parte, entenda-se. 
Não fatigarei a paciência do leitor relatando o entrecho das Leoas pobres, que o leitor viu, ou leu, ou soube pelos jornais. Vinha a propósito, é verdade, desenvolver um ponto que na imprensa foi apenas tocado, o desenlace da peça, mas eu ainda não quero fazer injustiça a ninguém que me lê repetindo princípios de arte comezinhos, expostos por todos os autores, e quase objeto de compêndio hoje. 
De duas representações a que assisti, uma pouco me agradou, foi a do Teatro Lírico, onde só se podem acomodar os sopranos e tenores de força, e impróprio para fazer sobressair uma composição dramática. Levada ao Ateneu Dramático, cujas proporções me parecem perfeitamente acomodadas à cena moderna, a comédia pôde aparecer melhor, e satisfez-me a representação com pouquíssimas reservas. 
Para voltar ainda à comédia, pois que a pressa com que vai este escrito me obriga a estas marchas retroativas, direi que, como concepção e execução, as Leoas pobres honram o talento de E.Augier, que não pode ser acusado nem de falta de vigor dramático, nem de certo critério que resulta da observação e da meditação. Há, como indiquei acima, pontos de reserva, mas eu que não faço crítica, e apenas dou relação comentada dos fatos da quinzena, poderei entrar na apreciação desses lados que me parecem fracos sem, por um retorno justo, avaliar uma por uma as muitas belezas da comédia ? Bem vêem que me levaria longe, e eu prefiro não sair das raias marcadas pelas exigências tipográficas. 
Houve outra novidade no teatro, que eu de propósito deixei para o fim; é uma comédia que tem por título — O Protocolo — e que traz o meu nome. Os escrúpulos que me fazem não dizer palavra sobre este pequeno ato são bem compreendidos do leitor. Não foi, porém pelo simples prazer de falar da minha peça que eu citei esta novidade. Foi para deixar escrito desde já, que muito a meu contento a representaram os artistas do Ateneu. 
E para terminar direi que, ao passo que esta revista escrita, é lida pelo leitor no seu gabinete fechado e na sua casa não menos solidamente construída, anda por alto mar o pianista Arthur Napoleão, que daqui se foi a mostrar-se aos nossos vizinhos do Prata. 
Para não fazer esquecer a fraseologia mitológica e o cunho de certas figuras poéticas, ponho ponto final dizendo que Éolo há de por certo respeitar aquele que, com harmonias mais brandas, o faria encerrar-se cativado nas grutas sombrias de sua morada incógnita.

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