-
Agradeço-lhe infinitamente o ter-me restituído este pobre animal,
que me merece grande estima, disse Margarida sentando-se.
-
E eu dou graças a Deus por tê-lo achado; podia ter
caído em mãos que o não restituíssem. Margarida fez um gesto a Miss Dollar, e a
cadelinha, saltando do regaço da velha, foi ter com Margarida; levantou as
patas dianteiras e pôs-lhas sobre os joelhos; Margarida e Miss Dollar trocaram um longo olhar de afeto.
Durante esse tempo uma das mãos da moça brincava
com uma das orelhas da galga,
e dava assim lugar a que Mendonça admirasse os seus belíssimos dedos armados
com unhas agudíssimas.
Mas, conquanto
Mendonça tivesse sumo prazer em estar ali, reparou que era esquisita e
humilhante a sua demora. Pareceria estar esperando a gratificação. Para escapar
a essa interpretação desairosa, sacrificou o prazer da conversa e a
contemplação da moça; levantou-se dizendo:
- A minha missão está cumprida...
- Mas... interrompeu a velha.
Mendonça compreendeu
a ameaça da interrupção da velha.
-
A alegria, disse
ele, que restituí
a esta casa é a maior recompensa que eu podia ambicionar. Agora peço-lhes licença...
As duas senhoras
compreenderam a intenção de Mendonça; a moça pagou-lhe a cortesia com um
sorriso; e a velha, reunindo no pulso quantas forças ainda lhe restavam pelo
corpo todo, apertou com amizade a mão do rapaz.
Mendonça saiu
impressionado pela interessante Margarida. Notava-lhe principalmente, além da
beleza, que era de primeira água, certa severidade triste no olhar e nos modos.
Se aquilo era caráter da moça, dava-se bem com a índole do médico; se era
resultado de algum episódio da vida, era uma página do romance que devia ser
decifrada por olhos hábeis. A falar verdade, o único defeito que Mendonça lhe
achou foi a cor dos olhos, não porque a cor fosse feia, mas porque ele tinha
prevenção contra os olhos verdes. A prevenção, cumpre dizê-lo, era mais literária
que outra coisa; Mendonça apegava-se à frase que uma vez proferira, e foi acima
citada, e a frase é que lhe produziu a prevenção. Não mo acusem de chofre;
Mendonça era homem inteligente, instruído e dotado de bom senso; tinha, além
disso, grande tendência para as afeições românticas; mas apesar disso lá tinha
calcanhar o nosso Aquiles. Era homem como os outros; outros Aquiles andam por
aí que são da cabeça aos pés um imenso calcanhar. O ponto vulnerável de
Mendonça era esse; o amor de uma frase era capaz de violentar-lhe afetos;
sacrificava uma situação a um período arredondado.
Referindo a um
amigo o episódio da galga e a entrevista com Margarida, Mendonça disse que
poderia vir a gostar dela se não tivesse olhos verdes. O amigo riu com certo ar
de sarcasmo.
-
Mas, doutor, disse-lhe ele, não compreendo essa prevenção; eu ouço até dizer que os olhos
verdes são de ordinário núncios de boa alma. Além de que, a cor dos
olhos não vale nada, a questão é a expressão deles. Podem ser azuis como o céu
e pérfidos como o mar.
A observação deste
amigo anônimo tinha a vantagem de ser tão poética como a de Mendonça. Por isso
abalou profundamente o ânimo do médico. Não ficou este como o asno de Buridan
entre a selha d’água e a quarta de cevada; o asno hesitaria, Mendonça não
hesitou. Acudiu-lhe de pronto a lição do casuísta Sanchez, e das duas opiniões
tomou a que lhe pareceu provável.
Algum leitor
grave achará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia
sobre a qualidade provável deles. Provará com isso que tem pouca prática do
mundo. Os almanachs
pitorescos citam
até à saciedade mil excentricidades e senões dos grandes varões que a
humanidade admira, já por instruídos nas letras, já por valentes nas armas; e
nem por isso deixamos de admirar esses mesmos varões. Não queira o leitor abrir
uma exceção só para encaixar nela o nosso doutor. Aceitemo-lo com os seus
ridículos; quem os não tem? O ridículo é uma espécie de lastro da alma quando
ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra espécie de
carregamento.
Para compensar
essas fraquezas, já disse que Mendonça tinha qualidades não vulgares. Adotando
a opinião que lhe pareceu mais provável, que foi a do amigo, Mendonça disse
consigo que nas mãos de Margarida estava talvez a chave do seu futuro. Ideou
nesse sentido um plano de felicidade; uma casa num ermo, olhando para o mar do
lado do ocidente, a fim de poder assistir ao espetáculo do pôr-do-sol.
Margarida e ele, unidos pelo amor e pela Igreja, beberiam ali, gota a gota, a
taça inteira da celeste felicidade. O sonho de Mendonça continha outras
particularidades que seria ocioso mencionar aqui. Mendonça pensou nisto alguns
dias; chegou a passar algumas vezes por Matacavalos; mas tão infeliz que nunca
viu Margarida nem a tia; afinal desistiu da empresa e voltou aos cães.
A coleção de cães
era uma verdadeira galeria de homens ilustres. O mais estimado deles chamava-
se Diógenes; havia um galgo que acudia
ao nome de César; um cão d’água
que se chamava Nelson;
Cornélia chamava-se uma cadelinha rateira, e Calígula um enorme cão de fila,
vera efígie do grande monstro que a sociedade romana produziu. Quando
se achava entre
toda essa gente,
ilustre
por diferentes
títulos, dizia Mendonça que entrava na história; era assim que se esquecia do
resto do mundo.
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