quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Poesia de quinta Na Usina:Fernando Pessoa : NO LIMIAR


Caía a tarde. Do infeliz à porta,
Onde mofino arbusto aparecia,
De tronco seco e de folhagem morta,
Ele que entrava e Ela que saía
Um instante pararam; um instante
Ela escutou o que Ele lhe dizia;
— “Que fizeste? Teu gesto insinuante
Que lhe ensinou? Que fé lhe entrou no peito
Ao mago som da tua voz amante?
“Quando lhe ia o temporal desfeito
De que raio de sol o mantiveste?
E de que flores lhe forraste o leito?”
Ela, volvendo o olhar brando e celeste,
Disse: “— Varre-lhe a alma desolada,
Que nem um ramo, uma só flor lhe reste!
“Torna-lhe, em vez da paz abençoada,
Uma vida de dor e de miséria,
Uma morte contínua e angustiada.
“Essa é a tua missão torva e funérea.
Eu procurei no lar do infortunado
Dos meus olhos verter-lhe a luz etérea.
“Busquei fazer-lhe um leito semeado
De rosas festivais, onde tivesse
Um sono sem tortura nem cuidado.
“E por que o céu que mais se lhe enegrece,
Tivesse algum reflexo de ventura
Onde o cansado olhar espairecesse,
“Uma réstia de luz suave e pura
Fiz-lhe descer à erma fantasia,
De mel ungi-lhe o cálix da amargura.
“Foi tudo vão, — Foi tudo vã porfia,
A aventura não veio. A tua hora
Chega na hora que termina o dia.
“Entra”. — E o virgíneo rosto que descora
Nas mãos esconde. Nuvens que correram
Cobrem o céu que o sol já mal colora.
Ambos, com um olhar se compreenderam.
Um penetrou no lar com passo ufano;
Outra tomou por um desvio. Eram:
Ela a Esperança, Ele o Desengano.

2 comentários:

  1. Fernando Pessoa sempre nos faz refletir, principalmente, sobre o que fazemos ou deixamos de fazer, sou um admirador incondicional, desta poesia quase que palpável, seus textos é como como o sentimento ficasse impresso.

    ResponderExcluir