sábado, 10 de dezembro de 2022

Projeto Contos Do Sábado: Mário de Andrade:O peru de Natal:


(O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida
cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade
familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito
abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas
nem
graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza
cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade
incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da
vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma
estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um
bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal,
eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória
obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação
de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da família. Uma vez que
eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou
foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava
sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente
de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de
amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia
de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito
cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde
cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma
reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos
dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente
desde as lições que dei ou recebi, não sei, duma criada de parentes: eu
consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória
de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa
tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os
filhos e provavelmente com aquele prazer dos que convencem de alguma
superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou,
essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se
realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido,
coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me
queixar um nada.
Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se
imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo.
Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por
causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a
gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma
das minhas "loucuras
- Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia
solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar
ninguém por causa do luto.
- Mas quem falou de convidar ninguém! Essa mania... Quando é que
a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem
toda essa parentada do diabo...
- Meu filho, não fale assim...
- Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita,
diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o
momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a
ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas
duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a
vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru
naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados
pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos
doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar,
trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem
devorava tudo e inda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir.
As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos
ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia inda provavam um naco de
perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem
servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato
o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.
Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas.
E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha,
com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em
que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como
aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti
onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele
ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita
tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. é certo que
com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num
vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o
doido, mamãe adorava cerveja.
Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos,
num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que
sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que
estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de
mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como
pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:
- É louco mesmo!...
Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo
bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:
assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não
fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar
minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo
violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha
imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei
muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento
aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo
àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase
pobreza sem
- Não senhora, corte inteiro! só eu como tudo isso!
Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em
mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro
comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido
a sós, redescobria em cada um o que a cotidianidade abafara por completo,
amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando
em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando
um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente
reduzido a fatias amplas.
- Eu que sirvo!
"Ë louco, mesmo!" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira
naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim
principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a
cerveja. Tomei conta logo dum pedaço admirável da "casca", cheio de gordura
e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou
o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:
- Se lembre de seus manos, Juca!
Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela,
da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus
crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou
sublime.
- Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!
Foi quando ela não pôde mais com tanta comoção e principiou
chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime
seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu
lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então
principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove
anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos
se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. 
Ë que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto.
Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal.
Fiquei danado.
Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava
perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os
sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e
redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo
petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco,
incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão
gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do
Jesusinho nascido.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que
gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente
o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas
de vencer: nem bem gabei o peru a imagem de papai cresceu vitoriosa,
Insuportavelmente obstruidora.
- Só falta seu pai...
Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que
me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem
sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele
Instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente
o partido de meu pai. Fingi, triste:
- É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu
de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei,
mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos
em família.
E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele
foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora
todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom,
sempre se sacrificara por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca
poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma
contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava
mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali
era o peru, dominador, completamente vitorioso.
Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever
"felicidade gustativa", mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula,
um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do
grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no
recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo,
mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então
uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim
grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia
lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo
menos que uma vez na vida coma peru de verdade!
A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor...
Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o
nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à
lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa,
em culto puro de contemplação.
Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por
duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco
importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica
antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder
sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra
ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas
mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...
- Villa Rica Editoras Reunidas LTDA.
Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá
Bernardo Elis
- Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis.
O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro,
debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou
sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole -
outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um
triângulo equilátero.
Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:
- Pronto, vó.
- O rio já encheu mais? - perguntou ela.
Chi, tá um mar d'água! Qué vê, espia, - e apontou com o dedo
para fora do rancho. A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado
havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois
o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo
chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos
apanhara um "ar de estupor" e desde então nunca mais se valera das pernas,
que murcharam e se estorceram.
Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente,
irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal.
O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva.
Dependurou numa forquilha a caroça, - que é a maneira mais analfabeta
de se esconder da chuva, - tirou a camisa molhada do corpo e se agachou
na beira da fornalha.
- Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus
ajudá, nóis se muda.
Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça
de algodão grosso.
A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher
de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento,
cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima,
mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a
bocarra.
Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo - ronco confuso,
rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterrâneo.
A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha,
como se pegasse fogo.
Já tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do
Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos
baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que dois lados eram formados
por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os
habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se vadear
perfeitamente.
No tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente
veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica
construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu,
já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência.
No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se
incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres as pessoas.
"- Este ano, se Deus ajudá, nóis se muda." Há quarenta anos a velha
Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido:
"- Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis". Ele morreu de
maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que falava assim,
mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de
Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar: a velha
Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado.
A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho
porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de
bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas, -
o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia
galgando a perambeira do morrote.
Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia
horizonte - era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as
trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da
vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem
uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um
grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das
marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia.
No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e
apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado.
- Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? - pediu ela ao filho.
- Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro rancho
e eu num quero drumi no chão não.
Ela receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara a cozinha
numa intimidade pachorrenta.
Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa
ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o
baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe
ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho
estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e
incômoda, que não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao
jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar.
Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um
cachorro.
- Adonde será que tá o chulinho?
Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões
de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam
nágua com um barulhinho brincalhão - tchibungue - tibungue. De
repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram banhar as
pernas inúteis de mãe Nhola:
- Nossa Senhora d'Abadia do Muquém!
- Meu Divino Padre Eterno!
O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da
estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de madeira,
cujas, coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas contorsões
diabólicas de espasmos epiléticos, entre as espumas alvas.
- Cá, nego, cá, nego - Nhola chamou o chulinho que vinha nadando
pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pêlo
molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino.
O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as pathas no rio,
com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício. Pelo vão da
parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco, - que se diluía na
cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de chuva, - e que arrastava as
palhas, as taquaras da parede, os detritos da habitação. Tudo isso descia em
longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora
parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo.
Era feita de paus de buritis amarrados por embiras.
Quelemente nadou, apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou
do teto uma ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram
derivando, nessa jangada improvisada.
- E o chulinho? - perguntou o menino, mas a única resposta foi
mesmo o uivo do cachorro.
Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcançar
as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da
superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso
era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores, sair por esse único
ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio pegava a estreitar-se
entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa
passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse
passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele,
podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era
mesmo espatifar-se na cachoeira.
- É o mato? - perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua
furavam o breu da noite.
Sim. O mato se aproximava, discerniam-se sobre o líquido grandes
manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável - deviam
ser as copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o fundo.
A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebatou-a
no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis,
mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a
embarcação, que agora corria na garupa da correnteza.
Quelemente viu a velha cair nágua, com o choque, mas não pôde nem
mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira, cujo
rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva,
tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforçava-se
para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele
estrugir encapetado da cachoeira.
A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo
esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente
notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o tronco
de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado
e rodado. A velha não podia subir, sob pena de irem todos para o fundo. Ali
já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima.
As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que
cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não havia força
capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente
trepar novamente para os buritis, arrastando as pernas mortas que as águas
metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforço da velha
estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo
das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava,
abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim. Tapando
a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua boca de
água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho,
que era perrengue e estava grudado nele.
Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na
cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa
ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão
e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d'água espirrou
no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que
fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio.
Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali
era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O
diabo da correnteza, porém, o arrastava, de tão forte. A mãe, se tivesse pernas
vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto,
eram
uns molambos sem governo, um estorvo.
Ah! se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois coices na
cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada
num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada afundasse...
Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão, as pernas
escorrendo ao longo do rio?
Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira, cujo
ronco escurecia mais ainda a treva?
- Mãe, ô, mãe!
- Mãe, a senhora tá aí?
E as águas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo cinicamente
a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado.
- Mãe, ô, mãe! Eu num sabia que era raso.
- Espera aí, mãe!
O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo
por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo
de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães
danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos
e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre
túmulos.
- Mãe! - lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a
água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos
arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia,
e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira.
***

Nenhum comentário:

Postar um comentário