O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar
profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos,
descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu
coração. Creio que
com isto presto um bom serviço à humanidade.
— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.
— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia
fazer;
ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.
— Muito maior, acrescentou o outro.
E tinham razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos
afluíam loucos à Casa Verde.
Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a
família dos
deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa
Verde era uma
povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se
anexar uma galeria
de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não
imaginara a existência de
tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de
alguns casos. Um, por
exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois
do almoço, fazia
regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de
antíteses, de
apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas
de Cícero,
Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um
rapaz que ele vira, três
meses antes, jogando peteca na rua!
Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.
— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela
confusão das línguas
na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura;
provavelmente, confundidas
antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a
razão não trabalhe...
— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do
fenômeno, concordou o
alienista, depois de refletir um instante, mas não é
impossível que haja também
alguma razão humana, e puramente científica, e disso
trato...
— Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois
espantavam pelo curioso do
delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos,
supunha-se estrela
d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes
certa feição de raios,
e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha
saído para ele
recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda
das salas ou do
pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo.
Era um desgraçado,
a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal
descobrira a fuga, armou-se
de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas
depois, ao pé de
uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de
crueldade.
O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então
começou aquela ânsia
de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais
notável era um pobre-
diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque
não olhava nunca
para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:
Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o
duque engendrou o
marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia
cinco, seis vezes
seguidas:
Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por
mordomo do rei;
outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir
boiadas a toda a gente,
dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas
a outro, e não
acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa;
apenas citarei um
sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o
deus João, e prometia
o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos
outros; e depois
desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque
imaginava que no dia em
que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se
despegariam do céu
e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.
caridade do que por interesse científico.
todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa.
Simão
Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração;
e, aceitando essa
idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois
sobrinhos, a quem
incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado
pela Câmara, da
distribuição da comida e da roupa, e assim também na
escrita, etc. Era o melhor
que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.
o governo temporal e o governo espiritual. E o Padre Lopes
ria deste pio trocado,
— e acrescentava, — com o único fim de dizer também uma
chalaça: — Deixe
estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a
uma vasta
classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em
duas classes
principais: os furiosos e os mansos; daí passou às
subclasses, monomanias,
delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um
estudo aturado e contínuo;
analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as
aversões, as simpatias,
as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos
enfermos, profissão,
costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da
infância e da
mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família,
uma devassa,
enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada
dia notava uma
observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno
extraordinário.
Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias
medicamentosas,
os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham
nos seus amados
árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de
sagacidade e paciência. Ora,
todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo.
Mal dormia e mal
comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora
interrogava um
texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de
um cabo a outro do
jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.
Papéis Avulsos:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Lombaerts & Cia,
Rio de Janeiro, 1882
Nenhum comentário:
Postar um comentário