sexta-feira, 2 de abril de 2021

Projeto Contos do Sábado na Usina:Machado de Assis: Torrente de Loucos:


 Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração.
 — A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de S. Paulo aos Coríntios: “Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada”. 
O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que
com isto presto um bom serviço à humanidade.
— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.
— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; 
ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.
— Muito maior, acrescentou o outro.
E tinham razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde.
Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos
deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma
povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria
de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de
tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por
exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia
regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de
apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, 
Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três
meses antes, jogando peteca na rua!
 — Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa
Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.
— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas
na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas
antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...
— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o
alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também
alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato...
— Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do
delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela
d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, 
ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele
recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do
pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, 
quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se
de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de
uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.
O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia
de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-
diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca
para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:
 — Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi,
Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o
marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes
seguidas:
 — Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei;
outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente,
dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não
acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um
sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia 
reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois
desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em
que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu
e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.
 Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por
caridade do que por interesse científico.
 Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que
todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão
Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa
idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem
incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela Câmara, da
distribuição da comida e da roupa, e assim também na escrita, etc. Era o melhor
que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.
 — A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há
o governo temporal e o governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado,
— e acrescentava, — com o único fim de dizer também uma chalaça: — Deixe
estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta
classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes
principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias,
delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo;
analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias,
as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão,
costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da
mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa,
enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma
observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. 
Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, 
os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados
árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora,
todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal
comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um
texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do

jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista. 



Papéis Avulsos:
 Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Lombaerts & Cia, Rio de Janeiro, 1882

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