pusilânime; por mais aborrecível
que pareça a idéia da morte, pior, muito pior do que ela, é a de viver. Ah!
tu não
sabes o que isto é?
— Sei: um
namoro gorado...
— Luís!
— ... E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já
diminuído muito o gênero humano, e Malthus perderia o latim.
Eram nove horas da noite; Luís Alves recolhia-se
para casa, justamente na ocasião em que Estêvão o ia procurar; encontraram-se à
porta.
Ali mesmo lhe confiou Estêvão tudo o que havia, e
que o leitor saberá daqui a pouco, caso não aborreça estas historias de amor,
velhas como Adão, e eternas como o céu. Os dois amigos demoraram-se ainda algum
tempo no corredor, um a insistir com o outro para que subisse, o outro a teimar
que queria ir morrer, tão tenazes ambos, que não haveria meio de os vencer, se
a Luís não ocorresse uma transação.
Dizendo isto, Luís Alves travou do braço de
Estêvão, que não resistiu dessa vez, ou porque a idéia da morte não se lhe
houvesse entranhado deveras no cérebro, ou porque cedesse ao doloroso gosto de
falar da mulher amada, ou, o que é mais provável, por esses dois motivos
juntos.
Vamos nós
com eles, escada acima, até a sala de visitas, onde Luís foi beijar a mão de
sua mãe.
Estêvão murmurou algumas palavras, a que tentou dar
um ar de gracejo, mas que eram fúnebres como um cipreste. Luís viu-lhe então, à
luz das estearinas, alguma vermelhidão nos olhos, e adivinhou, — não era
difícil, — que houvesse chorado. Pobre rapaz! suspirou ele mentalmente. Dali
foram os dois para o quarto, que era uma vasta sala, com três camas, cadeiras
de todos os feitios, duas estantes com livros e uma secretária, — vindo a ser
ao mesmo tempo, alcova e gabinete de estudo.
O chá subiu daí a pouco. Estêvão, a muito rogo do
hóspede, bebeu dois goles; acendeu um cigarro e entrou a passear ao longo do
aposento, enquanto Luís Alves, preferindo um charuto e um sofá, acendeu o
primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as mãos sobre o
ventre e contemplando o bico das chinelas, com aquela placidez de um homem
a quem se não gorou nenhum namoro. O silêncio não era completo; ouviase o rodar
de carros que passavam fora; no aposento, porém, o único rumor era dos botins
de Estêvão na palhinha do chão.
Cursavam estes dois moços a academia de S. Paulo,
estando Luís Alves no quarto ano e Estêvão no terceiro. Conheceram-se na
academia, e ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam sê-lo dois espíritos
diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estêvão, dotado de extrema
sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela
bondade varonil, que
é apanágio de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que
vai à mercê de todas as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio
de trazer ainda sobre o nariz os óculos cor-de-rosa de suas virginais ilusões.
Luís Alves via bem com os olhos da cara.
Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo,
e se não era incapaz de afeições, sabia regê-las, moderá-las, e sobretudo
guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens travara-se amizade
íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os
naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos do
que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança.
Estêvão referira ao amigo, desde tempos, toda a
história do amor, agora malogrado, suas esperanças, desalentos e glórias, e,
enfim, o inesperado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o capítulo mais
delicioso do romance — no sentir dele — caiu de toda a altura das ilusões na
mais dura, prosaica e miserável realidade.
A namorada de Estêvão, — é tempo de dizer alguma
coisa dela, — era uma moça de dezessete anos, e, por ora, simples
aluna-professora no colégio de uma tia do nosso estudante, à rua dos Inválidos.
Estêvão tinha-a visto, pela primeira vez, seis meses antes, e desde logo
sentiu-se preso por ela, "até à morte", disse ele ao amigo,
referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de tão estirado prazo. Qualquer
que ele fosse, porém, o prazo fatal daquele cativeiro, a verdade é que Estêvão
no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida
— amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ela?
Estêvão dizia que sim, e devia crê-lo; alguns olhares ternos, meia dúzia de apertos
de mão significativos, embora a largos intervalos, davam a entender que o
coração de Guiomar — chamava-se Guiomar — não era surdo à paixão do acadêmico.
Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais.
O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original
frescura, mas já murcha e sem cheiro, e não dada, senão pedida.
Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabelo, e
deu-lha; Estêvão recebeu-a com igual contentamento ao que teria se lhe
antecipassem o seu quinhão do céu. Além da flor, e para suprir as cartas, que
não havia, nada mais obtivera Estêvão durante aqueles seis compridos meses, a
não serem os tais olhares, que afinal são olhares, e vão-se com os olhos donde
vieram. Era aquilo amor, capricho, passatempo ou que outra coisa era? Naquela tarde, a tarde fatal, estando ambos a sós,
o que era raro e difícil, disse-lhe ele que em breve ia voltar para S. Paulo,
levando consigo a imagem dela, e pedindo-lhe em câmbio, que uma vez ao menos
lhe escrevesse. Guiomar franziu a testa e fitou nele o seu magnífico par de
olhos castanhos, com tanta irritação e dignidade, que o pobre rapaz ficou
atônito e perplexo. Imagina-se a angústia dele diante do silêncio que reinou
entre ambos por alguns segundos; o que se não imagina é a dor que o prostrou, —
a dor e o espanto, — quando ela, erguendo-se da cadeira em que estava, lhe
respondeu, saindo:
Estêvão não ouvia as palavras do amigo; estava
então assentado na cama, com os cotovelos fincados nas pernas, e a cabeça
metida nas mãos, parecendo que chorava. A principio chorou em silêncio; mas não
tardou que Luís Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se convulsivamente, a
soluçar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saíam do peito, a puxar os
cabelos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, tão d'alma
tudo aquilo, tão lastimosamente natural, que enfim o comoveu, e não houve
remédio senão dizer-lhe algumas palavras de conforto. A consolação veio a
tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco a pouco, e as lágrimas
estancaram, ao menos por algum tempo.
A imaginação de Estêvão desceu por este declívio de floridas
conjecturas, e Luís Alves entendeu que era de bom aviso não espantar-lhe os cavalos.
Ela foi,
foi, foi por ali abaixo, rédea frouxa e riso nos lábios. Boa viagem!
exclamou mentalmente o colega voltando a estirar-se
no sofá. A viagem não foi longa, mas produziu efeito salutar no ânimo do
namorado, adoçando-lhe as penas, circunstância que Luís Alves aproveitou para
lhe falar de cem coisas alheias ao coração e diverti-lo do pensamento que o
absorvia. Conseguiu o seu intento durante meia hora, e conseguiu mais, porque
fez com que o colega risse, a princípio de um riso amargo e dúbio, depois de um
riso jovial e franco incompatível com intuitos trágicos. Mas, ai triste! a dor
dele era uma espécie de tosse moral, que aplacava e reaparecia, intensa às
vezes, às vezes mais fraca, mas sempre infalível. O rapaz acertara de abrir uma
página de Werther, leu meia dúzia de linhas, e o acesso voltou mais forte que
nunca.
Luís Alves acudiu -lhe com as pastilhas da
consolação; o acesso passou; nova palestra, novo riso, novo desespero, e assim
se foram escoando as horas da noite, que o relógio da sala de jantar batia seca
e regularmente, como a lembrar aos dois amigos que as nossas paixões não
aceleram nem moderam o passo do tempo.
— a manhã, quero dizer, — muito sossegada e livre de sonhos maus. Quando
abriu os olhos estranhou o aposento e os objetos que o rodeavam. Logo que os
reconheceu, despertou-se-lhe, com a memória, o coração, onde já não havia
aquela dor aguda da véspera. Os sucessos, embora recentes, começavam a
envolver-se na sombra crepuscular do passado.
A natureza tem suas leis imperiosas; e o homem, ser
complexo, vive não só do que ama, mas também (força é dizê-lo) do que come.
Sirva isto de escusa ao nosso estudante, que almoçou nesse dia, como nos
anteriores, bastando dizer em seu abono que, se o não fez com lágrimas, também
o não fez alegre. Mas o certo é que a tempestade serenara; o que havia era uma
ressaca, ainda forte, mas que diminuiria com o tempo. Luís Alves evitou
falar-lhe de Guiomar; Estêvão foi o primeiro a recordar-se dela.
com os olhos enxutos, distraindo-se dos tédios da viagem com alguma
pilhéria de rapaz, — rapaz outra vez, como dantes.
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