O peixeiro
presta-lhe esse serviço, tocando. Alguém abre.
- Foi a
garota que pediu para chamar...
Quando não é
algum transeunte austero, senador ou ministro do Supremo, que atende à sua requisição.
Com pouco, a
solução já não lhe satisfaz. Descobre na porta, a seu alcance, a abertura
forrada de metal e coberta por uma tampa móvel, de matéria idêntica: por ali
entram as cartas. Os dedos sacodem a
tampa, desencadeando o necessário e aflitivo rumor. Antes de abrir, perguntam
de dentro:
- Quem
está aí? Ë de paz ou de guerra? De fora respondem:
- É
Luci Machado da Silva. Abre que eu quero entrar.
Ante a intimação
peremptória, franqueia-se o recinto. Entra uma
coisinha morena,
despenteada, às vezes descalça, às vezes comendo pão com cocada, mas sempre
séria, ar extremamente maduro das meninas
de três anos. À força de entrar,
sair, tornar a entrar minutos depois, tornar a sair, lanchar, dormir na
primeira poltrona, praticar pequenos atos domésticos, dissolveu a noção de residência, se é que não a retificou para
os dicionários do futuro.
- Qual
é a sua casa?
- Esta.
- E a
outra de onde você veio?
- Também.
- Quantas
casas você tem?
- Esta
e aquela.
- De
qual você gosta mais?
- Que é
que você vai me dar?
- Nada.
- Gosto
da outra.
- Tem
aqui esta pessegada, esta bananinha...
- Gosto
desta casa! Gosto de você!
Não é gulodice
nem interesse mesquinho... Será antes prazer de
sentir-se
cortejada, mimada. Esquece a merenda para ficar na sala, de mão
na boca,
olhando os pés
estendidos, enquanto alguém
lhe acarinha os cabelos.
Nem tudo são
flores, no espaço entre as duas residências. Há Catarina e Pepino.
Catarina foi
inventada à pressa, para frustrar certa depredação
iminente. Os bichos de cristal na mesinha da sala de estar tentavam a mão
viageira. Pressentia-se o momento em que as formas alongadas e frágeis se desfariam. Na parede, esquecida, preta,
pousara uma bruxa.
- Não
mexa nos bichinhos. Mexia.
- Não
mexa, já disse... Em vão.
- Você
está vendo aquela bruxa ali? É Catarina.
- Que Catarina?
- Uma
menina de sua idade, igualzinha a você, talvez
até mais bonita. Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um dia foi brincar
com o cachorrinho de vidro, a mãe não queria que ela brincasse. Catarina
teimou, mexeu e quebrou o cachorrinho. Então, de castigo, Catarina virou aquela
bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.
A mão
imobiliza-se. A bruxa está presa tanto na parede
como nos olhos fixos, grandes, pensativos. Entre os mitos
do mundo (entre
os seres reais?) existe mais um, alado,
crepuscular, rebelde e decaído.
Pepino tem
existência mais positiva. Circula na rua - a rua é o espaço entre as duas
quadras, repleto de surpresas - geralmente à tarde. Vem bêbado, curvado,
expondo em frases incoerentes seus problemas íntimos. Pegador de crianças.
- Vou
embora para minha casa. Você vai me levar.
- Mas
você mora tão pertinho...
- E Pepino?
- Pepino
não pega ninguém. Ele é camarada.
- Pega,
sim. Eu sei.
- Pois
eu vou dar uma festa para as crianças desta rua e convido Pepino. Você vai ver
se ele pega.
- Eu
não vou na festa.
- Você
é quem perde. Vem Elzinha, Nesinha, Heloísa, Alice, Maria
Helena, Lourdes,
Bárbara, Edison, Careca, João e Adão. Pepino
vai dançar para as crianças. Você, como é uma boba, não toma parte.
- Até logo!
Sai voando, a
porta fecha-se com estrondo. Da varanda, ainda se vê o pequeno vulto desgrenhado.
- Espere
aí, você não tem medo do Pepino?
- Não.
Estou zangada com você.
Com a zanga,
desaparece o temor. Seria realmente temor? Gosta
de ser acompanhada, para dizer à mãe, quando chega em casa:
- Espia
quem me trouxe.
Volta meia hora
depois, penteada, calçada, vestido limpo.
- Espia
minha roupa nova. Meu sapato branco.
- Mas
que beleza! Onde você vai?
- Vou
na festa.
Para tomar banho
e trocar de vestido, é necessário que se anuncie
sempre uma
festa, jamais localizada ou realizada, mas que
opera interiormente sua
fascinação. Não há pressa em ir para ela. A merenda, a conversa
grave com
pessoas grandes, estranhamente preferidas a quaisquer outras, o brinquedo personalíssimo
com o primeiro encontro do dia - um carretel,
a galinha
que salta do carrinho de feira - fazem esquecer
a festa, se não a constituem. E resta saber
se o enganado não será o adulto,
que sugere terrores ou recompensas fantasiosas. Nas
campinas da imaginação, esse galope de formas - será a verdade?
Senta-se no
corredor, e com uns panos velhos, lápis vermelho, pedrinha, qualquer elemento
poetizável, representa para si só a imemorial história das mães.
- Comadre,
seu filhinho como vai?
- Tá bom,
comadre, e o seu?
- Tá
com dedo machucado e dodói na barriga. Vai tomar injeção.
- Então
vou dar no meu também.
Perguntas e
respostas, recolhidas em conversas de adulto, saem da mesma boca inexperiente.
O objeto que serve de filho é
embalado com
seriedade. A doença existe,
existem os sustos
maternais. Mas tudo se desfaz, se acaso um intruso vem
surpreender a criação, tirada em
partes iguais da vida e do sonho, e que os prolonga. Assim pudesse a mãe antiga
tornar invisível seu filho, ante os soldados de Herodes.
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