Procurei acalmar
a senhora.
Ela estava tão
aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la
de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que
o fizesse. Ela
precisava fazer alguma
coisa, e a única providência que aparentemente podia
tomar naquele momento de medo era se abanar.
Ofereci-lhe meu
jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais
vento, adquirisse maior
eficiência na sua luta contra a morte.
Gastei cerca de
meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que
uma sua amiga
estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente
que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela;
acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem -
"o senhor"- ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro:
senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião
não ousava cair. Havia certamente
piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem
visível, próximo, que ela podia
tocar. E era nisso
que ela confiava: nesse ser de casimira
grossa, de gravata,
de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que
apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.
Chamei a
aeromoça, que tentou acalmar a senhora com
biscoitos,
chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro,
algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às
vezes continha uma leve repreensão e
às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso
para ocasiões de teto baixo.
Mas de que vale
uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora
evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice
do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia
às suas
palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em
uniforme estava
sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela
se deixasse matar sem reagir.
A única pessoa
de confiança era evidentemente eu: e aquela
senhora,
que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou
definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua
mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito
completo: ela deu um profundo
suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu
lado e ficou imóvel, quieta. Era
claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.
O avião
continuava a rodar monotonamente dentro de uma
nuvem
escura; quando
ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia
suplementar apertando ligeiramente a minha mão
sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.
Voltei a olhar
tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do
nevoeiro. Como a senhora não me desse mais
trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo,
triste e fraco assunto.
E de repente me
veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor
roncando no meio do nevoeiro - e de que eu podia morrer.
Estávamos há
muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a
grande cidade, invisível e tão próxima, vivia
sua
vida indiferente
àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no
alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá,
sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha.
Nem aquele velho viaduto existe
mais, e o aventuroso rapaz
de vinte anos,
calado e lírico, é um triste senhor que olha o
nevoeiro e pensa na morte.
Outras
lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora
da morte,
segundo dizem, a
gente se lembra de uma porção de coisas antigas,
doces ou tristes. Mas a visão
monótona daquela asa no meio da nuvem
me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto
pouco me importava morrer. Talvez fosse até
bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem
forma, para sempre.
Senti prazer em
pensar que agora não haveria mais nada, que
não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar;
que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha
alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.
A senhora
sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava
descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor
parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado
tredo ronco do minuto antes de
morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando o
encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de
cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.
Fiquei a olhá-lo
devagar, desde o ombro forte e suave até
as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da
beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais
morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia,
tão absurda, que me
sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta,
escura, sem a graça, sem a
delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave
irradiação da pele de um corpo de mulher moça.
Mãos, cabelos,
corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas
suaves e sensíveis, tépidas,
feitas para serem
infinitamente amadas. Toda
a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de
viver, uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo,
estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos.
Não devia morrer!
Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se
me dispusesse
afinal a tomar alguma providência.
Meu gesto
pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para
a vidraça
adivinhei casas, um quadrado verde,
um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de
neblina mais rala. Foi uma visão rápida,
logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que
estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas
nevoeiro e havia realmente tudo o que há,
casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel,
onde se pode deitar,
onde se pode dormir seguro e em todo o sossego,
onde um homem pode premer o corpo
de uma mulher
para amá-la com força, com toda sua fúria de
prazer e todos os seus sentidos, com apoio no
mundo.
No aeroporto,
quando esperava a bagagem, vi de perto a
minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de
despacho na mão, pedia
que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma
coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial.
Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo,
era questão de ficar livre a pista; depois
alguém anunciara que todos
os aviões tinham
recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto
incômodo me dera sua
senhora, sempre
muito nervosa. "Ora, não senhor." Ele
se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos,
que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho - que devia permanecer
um estranho.
Um estranho - e
de certo ponto de vista um intruso, foi assim
que
me senti perante
aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o
traíra, e de que ele o sentia.
Quando se
retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho
uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve
o cuidado de me sorrir
quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente
cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi
um instante para mim a própria imagem da vida,
e não o
esquecerei depressa.
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