Maria Alice
abandonou o livro onde seus dedos longos liam
uma história de amor. Em seu pequeno mundo de volumes, de cheiros, de
sons, todas
aquelas palavras eram a perpétua
renovação dos mistérios em cujo seio sua imaginação se perdia. Esboçou
um sorriso... Sabia
estar só na casa
que conhecia tão bem, em seus mínimos detalhes, casa grande de vários quartos e salas onde se movia livremente,
as mãos olhando por ela, o passo
calmo, firme e silencioso, casa cheia de ecos de um mundo não seu, mundo em que
a imagem e a cor pareciam a nota mais viva das
outras vidas de ilimitados horizontes.
Como seria cor e
o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava
com
elas a cada
passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras. Era,
com certeza, a nota
marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos
que tantas vezes palpara com inveja
calada e que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como pássaros assustados,
palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos,
que diziam ser claros. Que
seria o claro,
afinal? Algo que aprendera,
de há muito, ser igual ao branco. Branco, o mesmo que alvo, característica
de todos os seus, marca dos amigos
da casa, de todos os amigos,
algo que os distinguia dos humildes serviçais da copa e da cozinha, às vezes das
entregas do armazém. Conhecia o negro pela voz, o branco pela maneira de agir ou falar. Seria uma
condição social? Seguramente. Nos primeiros tempos, perguntava. É preto? Ë branco? Raramente
se enganava agora.
Já sabia... Nas pessoas, sabia... Às vezes,
pelo olfato, outras,
pelo tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas
vezes - e aquilo a perturbava - encontrasse também a cor social mais nobre no
trato das panelas e na limpeza da casa. Nas paredes, porém, nos objetos, já não
sentia aquelas cores. E se ouvia geralmente um tom de desprezo ou de
superioridade, quando se falava no negro das pessoas, que envolvia sempre a
abstração deprimente da fealdade, o mesmo
negro nos gatos,
nos cavalos, nas estatuetas, vinha
sempre conjugado à idéia de
beleza, que ela sabia haver numa sonata de Beethoven, numa fuga de Bach, numa
polonaisede Chopin, na voz de uma cantora,
num gesto de ternura humana.
Que seria a cor,
detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e
dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos
morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em
comum com o adocicado de outras frutas e se
encontrava também nos vestidos, nos lábios (seriam os seus vermelhos
também e convidariam ao beijo, como
nos anúncios de rádio?), em certas cortinas, naquele cinzeiro áspero da mesinha
do centro, em determinadas rosas (e havia brancas e amarelas), na pesada poltrona
que ficava à direita e onde se afundava feliz, para ouvir novelas? Que seria a
cor, que definia as coisas e marcava os contrastes, e ora agradava, ora
desagradava? E como seria o amarelo, para alguns padrão de mau gosto, mas que
tantas vezes provocava entusiasmo nos comentários do mundo onde os olhos viam?
E que seria ver? Era o sentido
certamente que permitia
evitar as pancadas, os tropeções, sair à rua sozinho,
sem apoio de bengala, e aquela inquieta procura de mãos divinatórias que tantas
vezes falhavam. Era o sentido que permitia encontrar o bonito, sem tocar, nos vestidos, nos corpos, nas feições, o bonito, variedade do belo e de
outras palavras
sempre ouvidas e empregadas e que bem compreendia, porque o podia sentir
na voz e no caráter
das pessoas, nas
atitudes e nos
gestos humanos, no Rêve clAmour, que executava ao piano, e em muita
coisa mais... Ver era saber que um
quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera
e desigual, sem nenhum sentido para o
seu mundo interior, por vezes
bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos, frutas,
peixes, panelas de cobre (tão gratas
aos seus dedos),
velhos mendigos,
mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada...
Claro que via
muito pelos olhos dos outros. Sabia onde ficavam
as coisas e seria capaz
de descrevê-las nos
menores detalhes. Conhecia-lhes até a cor... Se lhe pedissem o cinzeiro vermelho, iria buscá-lo sem receio. E sabia dizer, quando tocava em Ana Beatriz, se
estava com o vestido bege ou com a blusa lilás. E de tal maneira a cor flutuava
em seus lábios,
nas palestras diárias, quepara todos os
familiares era como se a visse também.
-
Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz...
Dizia aquilo um
pouco para que não dessem conta da sua inferioridade, mais ainda
para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia
a cada passo a
torturava e Maria
Alice tinha pudor
de seu estado. Seria mais feliz se pudesse
estar sempre sozinha como agora, movendo-se como sombra muda pela casa, certa de não provocar exclamações
repentinas de pena, quando se
contundia ou tropeçava nas idas e vindas do cotidiano labor.
- Machucou,
meu bem?
Doía mais a
pergunta. Certa vez a testa sangrava, diante
da família assustada e do remorso de Jorge, que deixara um móvel fora do lugar, mas teimava em dizer
que não fora nada.
E quando
insistiam, com visita presente, para que tocasse piano, era sistemática a recusa.
- Maria
Alice é modesta, odeia exibições...
Outro era o
motivo. Ela muita vez bem que ardia em desejos de se refugiar no
mundo dos sons, para escapar aos mexericos de toda a gente... Mas como a
remordia a admiração piedosa dos amigos... As palmas e os louvores vinham sempre cheios de pena e havia grosserias trágicas
em certos entusiasmos, desde o
espanto infantil por vê-la acertar direitinho com as teclas à exclamação
maravilhada de alguns:
- Muita
gente que enxerga se orgulharia de tocar assim...
Nunca Maria
Alice o dissera, mas seu coração tinha ternuras apenas
para os que não
a avisavam de haver uma
cadeira na frente
ou não a preveniam
contra a posição do abajur.
- Eu
sei... eu já sei...
E como tinha os
outros sentidos mais apurados, sempre se antecipava
na descrição das
pessoas e coisas. Sabia se era homem ou
mulher o recém- chegado, antes que se pusesse
a falar. Pela maneira de pisar, por mil e uma
sutilezas. Sem que lhe dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito
ou feio. E antes
que qualquer outro,
lia-lhe o caráter
e o temperamento. Àqueles
pequeninos milagres de sua intuição e de sua capacidade de observar, todos estavam habituados em casa. Por
isso lhe falavam sempre em termos de
quem via, para quem via. E nesses termos lhes falava também.
O livro
abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava
liberto. Recordava agora o largo tempo que passara
no Instituto, onde a família julgara
que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava
o ambiente de humildade, raramente de revolta, que lá encontrara.
Vivendo em comunidade, sabia
facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum
destes se desse conta disso ou dissesse que enxergava. Pela simples linguagem, pela
maneira de agir o sabia. E ali começara a odiar os dois mundos diferentes, O
seu, de humildes e resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o
da piedade e da cor.
- Me dá
o cinzeiro vermelho, Maria Alice... Maria Alice dava.
- Vou
ao cinema com o vestido claro ou com aquele estampado, Maria Alice?
Maria Alice aconselhava.
Ninguém
conseguia entender como sabia ela indicar qual
o sapato ou
a bolsa que ia
melhor com este ou aquele vestido. Quase sempre
acertava. Assim como ninguém
sabia que, com o tempo,
Maria Alice fora identificando as cores com sentimentos e coisas. O branco era como barulho de água
de torneira
aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa.
Verde, aprendera a
identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com
serenidade. Diziam que o céu era azul. Que seria o céu? Um lugar, com certeza.
Tinha mil e uma idéias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina,
bem-aventurança, hinos e salmos. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro,
material, sobre as pessoas e casas, feito de nuvens, que associava à idéia do
veludo, mais
própria do cinza, apesar de insistirem em que o céu era azul. Aquelas associações materiais, porém, não a satisfaziam. A cor realmente era o grande mistério. Sentira muitas vezes que o cinza
pertencia a substâncias ásperas ou duras. Que o branco estava no mármore duro e na folha de papel, leve
e flexível. E que o negro estava
num cavalo que
relinchava inquieto, com um sopro vigoroso de vida, e na suavidade e
leveza de um vestido de baile, mas era ao mesmo tempo a cor do ódio e da negação, a marca inexplicável da inferioridade.
E agora Maria
Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera.
Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de
Beethoven, dos mistérios para eles tão claros da música eterna.
Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como se adivinhavam entre dezenas de outros
e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas
bocas se encontrado... De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente
no Instituto e a haviam levado à sala do diretor
e se haviam queixado da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento
em que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo
pelo qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai
exclamara, horrorizado:
-
Você não tem juízo, criatura? Casar-se
com um mulato? Nunca! Mulato era cor.
Estava longe
aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual nunca
mais tivera notícia, e do qual somente
restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino
dos livros, tão
parecido com a vida
dos outros, tão cheio de cores... Um rumor familiar
ouviu-se à porta.
Era a volta do cinema. Ana
Beatriz ia contar-lhe o filme todo, com certeza.
O rumor - passos
e vozes - encheu a casa.
- Tudo
azul? - perguntou Ana Beatriz, entrando na
sala.
- Tudo
azul - respondeu Maria Alice.
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