O burguês
Foi durante a
noite que, de repente, ele se fez a pergunta:
- Porque não?
A pergunta
finalizava a série de pensamentos que haviam começado
horas antes, quando estava no teatro.
Fora com a mulher assistir
a uma peça de sucesso, com
artistas de sucesso, estréia recente e também de sucesso. As duas primeiras noites haviam sido
dedicadas à alta sociedade, às classes produtoras, ao Corpo Diplomático, às
autoridades constituídas e a penetras
de diferentes origens e feitios. Na altura da terceira apresentação, ele
chegara
em casa e a
mulher o intimara:
-
É o fim, Figueiredo! Todo mundo já viu a
peça, menos nós. Tem de ser hoje.
Uma semana
depois, a peça seria suspensa por falta de público, mas naquela terceira
noite ele teve de se acotovelar na entrada, discutir
com os bilheteiros e terminar
sendo explorado por um cambista que lhe vendeu
duas péssimas poltronas com ágio pesado e imerecido.
Suportou, lá
dentro - e estoicamente - os primeiros momentos da
peça, mas ainda
em meio ao primeiro ato desanimou de procurar entender
o que se passava
no palco. Era um drama complicado e palavroso, uma jovem que tinha neurose e
amantes, um analista, uma enfermeira lésbica e, presidindo
a tudo, um pai
severo e asmático. Em suma: um conflito acima de suas possibilidades e de seu interesse.
Quando ia ao
cinema, sempre podia dormir quando o filme seguia
um rumo surpreendente assim. No escuro o cochilo ficava impune, a mulher
nem suspeitava. À saída, ele
concordava com a opinião da mulher e conseguiam
chegar em casa sãos e salvos. Mas no teatro era difícil o cochilo. Havia luz, e pior que a luz, havia sempre
a iminência de algo espantoso, o cenário despencar,
a roupa da atriz cair, um ator ter enfarte ou esquecer o texto, um
fósforo botar
fogo no pano de boca. Tais e tantos atrativos impediam-no de dormir, mas propiciavam discreta
dormência, o pensamento solicitado ora pelo
calor, ora pela peça, ora ainda pelo pigarro de um velho na platéia, ou pelo sapato um pouco apertado que Ema
- a mulher - o obrigara a usar.
Tivera um dia
calmo, calmos eram todos os seus dias. A
firma, apesar
do sócio que era
uma toupeira, prosperava. Saúde boa, perspectivas
boas. Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe
motivos para dormir no presente, a peça já era um motivo.
A frase, dita
por alguém no palco, chamou-o de volta. Ele
já contara as pregas do lado direito da cortina que compunha o fundo do cenário, e preparava-se, resignado, pra contar as pregas do lado esquerdo, quando
ouviu alguém falar em morte.
Não, não
ameaçavam ninguém de morte. O drama do palco era existencial, não
continha mortes nem
ameaças de. Fora uma
frase convencional, assim
como "não devemos matar a velha de susto, ou "se a velha
souber disso
pode morrer Matar ou morrer?
Não chegava a ser uma opção, nem no palco, nem
em sua vida, mas
uma série de pensamentos que tinham, ora a sua lógica, ora o seu absurdo, e em
ambos os casos, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em sua própria
morte, mas sabia que havia gente que
morria e gente que matava. Os que morriam eram os doentes, os suicidas, os atropelados, os assassinos, os passageiros de avião ou da Central
do Brasil. Os que matavam
eram os criminosos, os ladrões noturnos, os tiranos, os motoristas de ônibus.
Não era
agradável pensar em morrer. Logo retirou este
elemento de sua opção e ficou apenas com o matar.
Matar o quê?
Matar para quê? Na peça, falavam em matar uma velha
de susto.
Ele não tinha
velha nenhuma à vista. A mãe já morrera,
as parentas de velhice mais
agressiva também já haviam morrido. Havia a sogra, ainda, mas não chegava a ser uma velha, e, além do mais, era uma excelente pessoa. Se não adiantava matar uma velha,
matar o quê?
Matar por matar,
amor à arte, eis a questão. Matar para experimentar
os nervos,
ou para provar
a si mesmo do que
era capaz. Sim,
isso justificava um crime.
Mas para provar do que era capaz, não bastaria matar - isso qualquer idiota
poderia fazer. Tinha de matar e permanecer impune - para poder se olhar no
espelho e se sentir redimido, confiante: sou um caráter! Foi então que surgiu o problema - que seria, nos próximos
dias, o seu problema, o único problema realmente sério de sua vida - como obter o crime perfeito? Matar o
porteiro de seu edifício, por exemplo,
nunca seria um crime
perfeito. Mais cedo ou mais tarde a polícia apertaria os moradores do
prédio e ele acabaria confessando. Para matar impunemente teria de escolher um
comerciário de Brás de Pina, uma funcionária subalterna que voltasse, tarde da
noite, para o Leblon.
Mas seria
estúpido matar sem motivo, embora matasse perfeitamente.
O crime
perfeito, sem lucro
pessoal, não lhe interessava, aliás,
pensando bem, agora que o
primeiro ato terminava, nenhum crime lhe interessava.
Teve coragem
para o comentário. Uma peça muito profunda!
A mulher não
concordou nem discordou. Apenas disse:
- Vamos
esperar pelo resto. Acho que vai sair um escândalo!
Foi a vez de ele
concordar, embora não suspeitasse que tipo de escândalo estava prestes
a estourar. Saiu para o hall, circulou
entre estranhos, bebeu um gole d'água gelada, sem sede
mesmo, só para passar o tempo.
Durante o
segundo ato os pensamentos seguiram outro rumo. Surgiu
no palco um
pastor protestante. Surgiu também um militar reformado que era mudo - e ele
começou a pensar em como seria sua vida - e como seria ele mesmo - se não
tivesse voz.
Chegou à
conclusão e ao fim da peça: poderia manter o mesmo padrão
de vida se, por acaso, ficasse
sem voz. Era-lhe
coisa inútil, espécie de adorno.
Para ganhar dinheiro e dormir com a mulher - a voz era dispensável, uma
responsabilidade incômoda.
pronunciado uma
só palavra-o que não era uma vantagem especial, sempre que iam ou que voltavam
de algum lugar, a mulher é quem falava, ele
apenas ouvia.
A grande
oportunidade para testar a sua disciplina interior foi ao guardar o carro na
garagem. Todas as vezes tinha de pedir à mulher que suspendesse o vidro da porta:
- Suspenda
o seu vidro, Ema.
Àquela noite,
engoliu em seco e esperou que a mulher saísse
para, então, inclinar-se no banco, com algum esforço para sua espinha já
bombardeada por sedimentações calcáreas que prenunciavam um respeitável bico-de-papagaio, e rodar a manivelinha
até fechar o vidro.
Na cama,
preparado para dormir, a palavra primeiramente, e o conceito depois, retornaram
à sua cabeça e às suas preocupações: matar. Há muito não tinha insônia. A firma
prosperava, vendia material de escritório aos ministérios militares, era pago
em dia, e não faltavam encomendas, tanto a
Marinha como o Exército e a Aeronáutica - felizmente para ele e para a Pátria -
gastavam mais em papel timbrado do que em pólvora.
Geralmente, caía
duro em cima da cama. De quinze em quinze dias,
ou de vinte em
vinte dias, procurava a mulher para um amor apressado e quase sempre incompleto
da parte dela.
Quando percebeu
as horas, viu que gastara a noite toda pensando.
Tinha disciplina
interior feroz e eficiente. Se dormisse até as 9, estaria salvo.
Virou para o
lado e antes de escorregar definitivamente no sono, teve um pensamento também definitivo:
- "Se
não fosse a polícia, eu matava!" O crime
A firma era
próspera e prosperava, apesar do sócio: um belo homem, excelente caráter, pai
amantíssimo, esposo exemplar, amigo irreprochável - foio mínimo que um orador,
à beira do túmulo, disse
dele, no dia do enterro: "Colhidos pela brutalidade
de tua morte, aqui estamos, Anselmo, para prantearmos o excelente caráter, o
pai amantíssimo, o esposo exemplar, o amigo irreprochável que acabamos de perder!"
No mesmo
cemitério, à beira de outro túmulo, e mais ou menos à mesma hora, Ema
foi sepultada e chorada quase que solitariamente: quatro coveiros a sepultaram,
com suas correntes e más vontades, e o marido a chorou, apesar de tudo, segundo
afirmaram alguns poucos presentes
que ouviram os soluços de um enterro e o discurso do outro.
À noite,
apareceram-lhe em casa alguns amigos compenetrados.
Conforme
afirmaram mais tarde, foram à casa dele unicamente para que o Figueiredo
"não fizesse uma besteira".
Apesar da
presença dos amigos, Figueiredo conteve-se e não cometeu besteira nenhuma.
Tomou apenas um porre, como lhe convinha, e disse obscenidades a respeito da
vida e de si mesmo, chamando a vida de merda e chamando-se a si mesmo de corno.
O que ia de encontro aos pensamentos gerais,
embora os amigos
protestassem, deixa disso,
Figueiredo, deixa disso! No dia seguinte ao do enterro,
apareceu mal vestido e barbeado para iniciar
as providências legais
das sucessões, pois
sucedia ao sócio
no controle da firma e
sucedia à mulher nos bens do casal que eram muitos,
o sogro lhe havia deixado apólices e
casas em Vila Isabel.
Estava rico e
livre agora da chatice do sócio e da chatice da mulher.
E para ficar livre
dos amigos, começou
a cultivar mau hálito,
o que impedia que os mais
importunos se acercassem dele para dar conselhos, principalmente quando, após o escândalo da dupla morte,
revelou-se o outro escândalo, o da
fortuna que lhe chegava às mãos através de tão rudes eventos.
Rosnavam que, se
não fossem as trágicas e patentes circunstâncias, a polícia deveria investigar
melhor aquilo tudo. Mas a suspeita não tinha consistência - apesar do ódio que
Figueiredo passou a provocar pela
fortuna, pelo mau hálito, e pela liberdade que lhe chegara à vida. Ele
mesmo, com o tempo, começou a
esquecer, a duvidar do passado, e um dia, vendo no fundo do armário uma peça
íntima de Ema, suspirou e sentiu saudades.
Logo se aprumou, afugentou o pensamento macabro que lhe surgiu, e embora não
houvesse ninguém à volta, disse em voz alta, como convinha a um homem
que sofrera tanto:
- "Aquela cachorra!"
Porém já cinco
anos eram passados da morte da cachorra e do cachorro. Cinco anos daquela tragédia
que enlutou a família cristã,
rudemente golpeada pelo
escândalo daquele pacto de morte. Cronistas sem
assunto escreveram sobre o pacto de morte tão romanticamente previsto e
executado, foram ouvidas opiniões de sociólogos, de pedagogos e de sacerdotes
sobre o caso. Cinco dias depois já
ninguém falava no assunto e cinco anos
depois, só mesmo ele, e às vezes, pensava em tudo, detalhadamente, como num
passo heróico de sua vida.
Chegara àquela
noite em casa, de uma viagem rápida a São Paulo, e baqueara ao entrar em seu
quarto: caídos e nus, em cima da cama, a sua mulher e o sócio. Próximo do
sócio, o copo partido, cujos resíduos foram examinados pelo Instituto de Criminalística e cuja malignidade foi devidamente
provada.
A perícia, com a
ajuda dele, reconstituiu os acontecimentos. Ele viajara a São Paulo, voltaria
na noite seguinte. Tão logo se mandou
pela estrada, Ema chamara o amante. A perícia examinou a vagina de Ema e encontrou sinais evidentes do
coito recente. O imperscrutável aconteceu - e aqui o relatório policial foi
respeitoso, ao afirmar que, "após manterem relações de
fundo sexual, os
dois amantes decidiram pôr fim à vida através
de um pacto de morte que foi
imediatamente cumprido".
Anselmo preparou o veneno, Ema
bebeu estoicamente, sem
repugnância pela morte ou pelo gosto de amêndoas que saía
do copo. E Anselmo, logo
em seguida,
ingeriu o restante. Contorceram-se pouco, e logo se imobilizaram
- e foi
assim que, à noite, Figueiredo e mais tarde a polícia os encontraram.
No Distrito
Policial o pacto de morte foi classificado como "Ocorrência nº
53.697" e arquivado após despacho do delegado-auxiliar, cumpridas as
formalidades legais e pagas as taxas do costume.
Com essa frase
ele adormecera, uma semana antes da tragédia
que
abalou a sociedade cristã
e a sua vida. Viera
do teatro e ficara pensando em matar, mas não sabia nem como, nem a quem matar. Não tinha nenhum problema importante na
vida, tudo lhe ia bem, e essa inexistência
de um problema dava-lhe a sensação de burrice, de imprestabilidade.
Desde que
pensara em matar, sentiu que iniciava uma nova vida, fugia
à rotina,
à qual sempre se submetera. Era o seu problema, embora não fosse, ainda, a sua vontade.
No trabalho, em casa, andando
pelas ruas, tinha agora
uma ordem fixa de pensamentos e de energias.
Certa tarde,
regressando da cidade, parou no Flamengo. Entrou num prédio, tomou o elevador,
fechou os olhos e apertou um botão: qualquer andar em que o elevador parasse,
serviria. Parou no sétimo andar.
Havia duas portas à frente, apertou
a campainha do 701. A velhinha veio
abrir e ele
quase chegou ao crime: levou as duas mãos para a frente em direção ao gasganete da velha. Mas
deu-lhe uma tremedeira nas pernas e ele recuou.
O elevador ficara parado no andar e ele pôde fugir. Poderia
ter deixado a velha
morta, ninguém teria visto
nada. Mas deixou
a velha apenas
surpreendida e irritada. Passou uma noite de cão,
reprovando-se a covardia. Tivera tudo à mão, a velha,
o elevador, não
esbarrara com ninguém, nunca entrara
naquele prédio. A polícia
procuraria pelos parentes
da velha, os desafetos, os fornecedores,
as ex-empregadas, os vizinhos. Não tivera ao alcance das mãos apenas o
gasganete da velha: tivera nas
mãos o crime
perfeito - e o desperdiçara, sem lucro algum.
E então tremeu,
emocionado e surpreso: acabara de descobrir o crime verdadeiramente perfeito: O
LUCRO. Matar sem lucro, como no caso da velha, seria uma brincadeira idiota.
Tinha de matar com muito lucro, com tanto lucro que
ficasse óbvia a lucrabilidade do crime. E para tornar
patente essa lucrabilidade, tinha de escolher uma vítima que fosse patentemente próxima de seus
interesses. Viu a mulher dormindo a seu lado.
- "Se
mato esta mulher - a minha mulher - o primeiro e necessário suspeito serei eu mesmo.
Riu, com a
facilidade do problema. Tão fácil era o problema que
resolveu exagerar.
Não mataria apenas uma pessoa,
mas duas. E, na escala de importância e de lucro,
a segunda pessoa
que lhe apareceu foi o sócio,
o qual hipotecara, há tempos, a parte dele,
para levar a mulher aos
Estados Unidos, curar um
tumor no colo do útero. Ele emprestara o dinheiro e ficara com as hipotecas do sócio. Se matasse o sócio, a firma ficaria
inteiramente em suas mãos, era um lucro evidente, agressivo.
Dois dias
depois, avisou à mulher que ia a São Paulo,
viagem rápida.
Saiu à noite,
subiu em direção a Teresópolis. Deixou o
carro numa rua que lhe pareceu deserta,
tomou um ônibus e antes da meia-noite estava novamente em
casa. Entrou pela garagem, como o fazia todas as noites, mas sem
o carro,
e por causa disso, não teve necessidade de acordar o garagista. Surpreendeu a esposa:
- Uê?
Você já voltou?
- Você
está vendo.
Explicou que o
carro enguiçara no quilômetro 97 da Rio-São Paulo, tomara um ônibus, amanhã
voltaria ao local, com um mecânico. Foram dormir e ele procurou a mulher. Dessa
vez, pela primeira vez em muitos
anos, concentrou-se no esforço de fazê-la gozar- era parte do plano. Depois
que ela estremeceu e gritou coisas
indecentes - sinal que finalmente gozara
-
ele conseguiu, também, um escasso
prazer. Mas logo levou a mão ao peito:
- Ema,
o enfarte!
Caiu para o
lado, olhos arregalados, bufando grosso. Ema deu um pulo da cama, nua.
- Vou
buscar a coramina!
- Não!
Chame o Anselmo, preciso falar com ele, é urgente, mas diga
a ele para não
contar a ninguém, para vir já! As hipotecas dele! Ele pode perder tudo!
Ema foi ao
telefone, acordou Anselmo:
- O
Figueiredo teve um enfarte. Venha correndo, mas não diga nada a ninguém. As hipotecas!
A mulher de
Anselmo perguntou quem chamava o marido dela
àquela
hora da noite,
mas Anselmo, apesar de esposo exemplar e pai amantíssimo, deu um grito:
- Vá à
merda, mulher. Depois eu explico!
Ema foi à
cozinha, apanhou um copo d'água. Quando voltou
ao quarto, pingando gotas de coramina no copo, encontrou o marido em pé, com um copo na mão.
- Uê?
Já ficou bom? Figueiredo avançou para ela.
- Beba isso!
- Mas...
- Beba,
sua idiota!
Era a primeira vez,
em dezenove anos de casados, que se
dava o nome
ao boi naquela
casa. Ema apanhou o copo, sentiu um cheiro estranho. Bebeu um gole e ainda teve
tempo de perguntar:
- Para
que é isso?
- É um
afrodisíaco. Faz a gente gozar mais ainda.
Mas Ema não
ouviu que ia gozar mais ainda. Caiu próximo à cama e Figueiredo arrumou-a o
melhor que pôde. Mais alguns minutos, foi à porta da frente, esperar pelo
sócio. Viu o elevador subir, a
luzinha crescendo, crescendo. Anselmo saiu do elevador e deu com ele na porta.
- E o enfarte?
- Entre depressa!
Anselmo não
gostou. A mulher dele ia falar o resto da vida contra aquela saída abrupta,
misteriosa, ia ser o diabo explicar.
- Brincadeira
tem hora! Cadê o enfarte? Figueiredo estendeu-lhe o copo.
- Prove
essa droga! Veja que gosto tem e se concorda
comigo.
Anselmo provou,
sentiu um gosto adocicado de amêndoas, mas
não
teve tempo
de concordar. Figueiredo arrastou-o ao quarto,
tirou-lhe a roupa, deitou-o ao lado de Ema, a mão estendida para fora do leito. Pegou no copo, colocou-o na mão de Anselmo, deixou
que o copo se partisse no chão.
Apagou as luzes,
deixando apenas um pequeno abajur aceso. Ganhou
a rua,
atravessando a garagem do prédio, o garagista tinha sono de pedra, quando
chegava tarde, com o carro, tinha de esmurrar a campainha para que o homem lhe
abrisse a porta dos carros.
Andou pela
cidade, esperando o primeiro ônibus para Teresópolis.
Deixara
impressões no copo, nas roupas, em todos os lugares. Mas o lucro era tão dele que invalidava a suspeita. Deixara
atrás de si um crime que se
explicava por si mesmo.
Tomou o ônibus
para Teresópolis. Com o sereno da noite, o
carro ficara melado como um bicho. Antes
de ligar o motor, abriu
o painel de instrumentos
e desligou o cabo do velocímetro. Desceu a serra, almoçou um frango assado
à beira da estrada, atingiu
a Avenida Brasil
e cortou em direção
oposta à cidade. Andou mais alguns quilômetros e pegou a Rio-São Paulo.
Enfrentou as
retas iniciais, atingiu a serra mas logo fez
um contorno e embicou de volta
ao Rio. Parou
no posto de gasolina para
abastecer o carro.
-
Tem mecânico aí?
O mulato de maus
dentes surgiu das entranhas de uma camioneta.
- É o
cabo do velocímetro. Acho que houve alguma coisa
com ele.
Deu boa gorjeta
ao mecânico e ao homem do posto que lhe enchera o
tanque, tinha
agora duas pessoas que atestariam que ele regressava de São Paulo. Quando
arrancou, os dois homens o chamaram de doutor:
- Boa
viagem, doutor!
Chegou em casa,
após uma boa viagem, e viu o quadro que logo os policiais examinaram, os
jornais noticiaram e com o qual ele lucrou.
Moral
O crime, para o
burguês, só não compensa quando a polícia está
contra.
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