domingo, 10 de julho de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis: 30 DE NOVEMBRO DE 1862:


O acadêmico Viennet, voltando depois de algum tempo ao campo da publicidade, escreveu estas palavras no prefácio do seu livro: “Me voilà cependant, me voilà encore!”. Guardando todas as proporções, e sem pretender o contentamento e a sensação que o livro do autor da Ligue devia naturalmente produzir, escrevo aquilo mesmo, e acrescento: “Me voilà pour toujours!” 
Para sempre. Neste aposento construído no fundo do edifício que o leitor acaba de percorrer instalo-me eu, e aqui praticarei mansamente com o leitor sobre todas as coisas que nos fornecer a quinzena, sem fadiga para mim nem mágoa para ninguém. Durarão as nossas palestras o intervalo de um charuto, mais infelizes nisto que as rosas de Malherbe. Olhe o leitor: à roda da mesa estão jornais de todo o império; sentemo-nos como bons e pacíficos amigos, e comecemos por encarar afoitamente aqueles estouvados peruanos. 
O leitor sabe já de todas as ocorrências de que foi testemunha o velho Amazonas; sabe que ali troou o canhão e que fomos ludibriados no começo, no meio e no fim. O atentado não se podia revestir de circunstâncias mais agravantes, nem a arrogância peruana podia manifestar-se em mais larga proporção e sob melhor luz. Arrogância, disse eu, e não se pense que foi por não me ocorrer outro termo; arrogância ingênita, filha deste preconceito, que naturalmente os peruanos hão de ter, de que são realmente filhos do Cid e do sol. 
Seja como seja, o fato é que a dignidade da nação brasileira foi vilipendiada e que só uma enérgica intimação poderá ter lugar depois daquelas ocorrências; o país espera ser bem defendido pelo governo nesta deplorável questão. 
No meio de todas as preocupações esta me parece a principal, a que deve ocupar mais lugar e tempo nas lucubrações íntimas do gabinete. Creio que o sentimento do governo é o mesmo; certos atos demonstram que ele não quer protelar a questão, e sem dúvida as ordens levadas pela expedição do Pará hão de ser no sentido de nos desagravar honrosamente. 
O que eu não posso é saber já o que se tem passado, e serei desculpado por não dar notícia sobre os fatos dos navios peruanos e da esquadrilha brasileira. Mas, a 
não dizer mais alguma coisa sobre a questão, como encher o espaço que me resta? Ir ao Castelo assistir à exumação dos ossos de Estácio de Sá? Melhor sorte me dê Deus! Dispenso o leitor dessa viagem, e com isso me dispenso a mim mesmo. Direi, já que falo nos ossos do fundador da cidade, que quaisquer que fossem os inconvenientes do modo por que se procedeu à exumação, e os houve, ainda assim aquela empresa revela que entre nós já se quer cuidar de certas coisas que até hoje pareciam não merecer séria atenção. Ainda bem. Segundo se acha anunciado, efetua-se no dia 1º o ato de inumação dos restos de Estácio de Sá, convenientemente arranjados e entregues aos cuidados de pessoas vigilantes. 
Para alguns é duvidosa a autenticidade dos ossos achados na sepultura do Castelo; devo dizer que esta dúvida só a ouvi articular a pessoas que duvidam de tudo, pela razão de terem sido enganadas muitas vezes, o que é um procedimento acertado. Eu não sei se a dúvida tem lugar, mas louvo-me na opinião geral e na dos professores que dirigiram a exumação, para a qual não faltaram, segundo nos disse a imprensa, todas as instruções arqueológicas. 
Lembra-me agora que Méry, estando em Roma, encontrara um dia alguns sujeitos a cavar em certo lugar, animados por dois lords que, de quando em quando, atiravam uma moeda aos trabalhadores. Méry, apaixonado pelas ruínas, parou e assistiu à exumação do que quer que fosse. Finalmente apareceram uns fragmentos de estátua, a cujo aspecto um olhar experimentado não daria menos de mil anos. 
Grande contentamento dos ingleses, que fizeram conduzir até o carro as preciosidades encontradas no solo romano. Méry pediu humildemente para ajudar a carregar parte daqueles preciosos achados, e com toda a veneração foi depositar a sua carga no carro dos patrícios de lord Palmerston. 
Compreendo a satisfação que deve ter um homem apaixonado pela antiguidade, ao ver diante de si os restos de uma obra que supõe haver encantado os olhos de todo o patriciado romano. E compreendo também o desgosto que havia de ter o autor da Florida, quando, à noite, em uma reunião de pessoas distintas, depois de haver contado o fato da manhã, soube que os restos achados eram de véspera preparados de modo a parecer que datavam de longe, acrescentando o carrasco das suas ilusões que o Museu de Londres esta cheio destas tais antiguidades, coisa que eu creio um pouco dura. 
Não presuma o leitor malicioso que eu trouxe este conto para diminuir a idade aos ossos encontrados na sepultura de Estácio de Sá. Creio que são autênticos, e na verdade é isso que devemos crer todos, porque não podemos crer noutra coisa. Compensa isso à fadiga dos que lá foram ao Castelo assistir ao ato. Eu não fui, e creio que fiz mal. De mais, se é verdade, como eu creio, que além desta vida há uma vida melhor, e que, portanto Estácio de Sá está nos olhando talvez por um destes óculos do céu que nós chamamos estrelas e dumas faíscas dos pés do Onipotente; se é verdade isto, sejam ou não aqueles os ossos autênticos, uma vez que a intenção é boa, Estácio ficará agradecido e aceitará lá de cima a fé, a intenção, se não puder aceitar os ossos. 
Estas reflexões sobre ossos e ruínas levam-me naturalmente ao teatro, que está ameaçado de passar ao estado de monumento curioso, a despeito dos esforços individuais. Mas parece que a força da corrente é superior a todos os esforços, e que não há regime preventivo contra o efeito dos elementos deletérios. Eu não acho culpa do que sucede senão nos poderes do Estado, que ainda se não convenceram de que a matéria de teatros merece uns minutos ao menos da sua atenção como tem merecido nos países adiantados. Quando eu vejo que na França, em março de 48, um mês depois da revolução, se decretava sobre teatro, no meio das preocupações políticas, lastimo deveras que no Brasil o poder executivo tenha limitado a sua ação a dar e a retirar subvenções, e a incomodar uma comissão, de cujas opiniões escritas fez depois pasto às traças da secretaria. 
Voltarei a esta matéria mais tarde, ou talvez faça dela objeto de estudo especial; por agora, cumpre-me mencionar as novidades anunciadas, e que sem dúvida serão novidades realizadas no momento em que o leitor me ler. 
O Ateneu anuncia uma comédia de Emile Augier e Ed. Foussier, As leoas pobres. Esta comédia deve a sua celebridade em Paris a duas coisas: ao seu mérito intrínseco, que é de primeira ordem, e às discussões havidas por ocasião de ser apresentada à comissão de censura. Parece que a comissão saiu um pouco fora dos seus deveres, deixando de fazer censura dramática para fazer censura literária; e a não ser o imperador, ainda hoje a comédia estaria interditada. 
Anuncia também a Sociedade Dramática uma representação da Herança do Chanceler, no Teatro Lírico. 
Em cata de notícias procuro lembrar-me se durante os últimos quinze dias houve alguma publicação literária, ou mesmo iliterária, de que dar parte. Em outra parte não haveria necessidade de procurar; com certeza o revisteiro encontraria, ao começar o seu trabalho, a mesa cheia de publicações. Tudo, porém, é relativo, e o movimento das publicações entre nós ainda é, como outras coisas, lento e raro. 
Vejo agora um exemplar de um novo romance do Museu Literário, intitulado A Lamparina. É a segunda obra que o museu publica, e ainda do mesmo autor. Para os que leram a Lenda do Alfinete esta é a melhor recomendação que se lhe possa dar. Eu só desejo que publicações como o Museu Literário e a Biblioteca Brasileira sejam compreendidas e festejadas pelo público, doce remuneração aos esforços conscienciosos. 
Se fosse possível a comunicação de todos os fatos da vida particular entre o cronista e os seus leitores, eu daria aqui as razões do desconchavo em que vai esta revista, escrita a todo o vapor, para satisfazer às exigências da tipografia. Mas, como não é possível, limito-me a lamentar que assim seja e a despedir-me para a quinzena seguinte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário