domingo, 17 de julho de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis:15 DE JANEIRO DE 1863:


A questão das reclamações inglesas ocupou exclusivamente a atenção do público durante esta quinzena. A população da Corte nos primeiros dias do ano ofereceu o mais nobre e consolador espetáculo; a ansiedade ao princípio, e depois, uma vez conhecida toda a correspondência diplomática, a indignação moderada, prudente, sensata; o desafio tácito do direito à força, da legalidade ao abuso, sem desvarios, 
sem ataques individuais. Os dias 5 e 6 principalmente foram os de maior agitação; o imperador com toda a família imperial desceu ao paço da cidade; a confraternização do povo com o chefe do Estado foi mais cordial, a mais expansiva, a mais verdadeira. Às aclamações populares respondia o imperador com protestos vivos de que era brasileiro, e que a sua coroa respondia pela dignidade da nação. 
Em tal situação, e correspondendo a tão patrióticas manifestações, o governo imperial teve a coragem precisa para responder às exigências britânicas com firmeza e energia, pondo acima de todas as mesquinhas considerações a idéia nobre e augusta do decoro nacional. A correspondência diplomática é uma página viva do patriotismo. A razão é nossa, o direito é nosso; se os resultados de um ataque não forem igualmente nossos, que importa isso? A consciência da nossa causa deve dar-nos bastante tranqüilidade diante da vitória da força, que será a vitória da imoralidade. Tal é o transunto das notas do gabinete. 
O representante da Inglaterra cedeu de todas as suas anteriores pretensões; e as condições da nota de 20 de dezembro prevaleceram mais extensas talvez, e, portanto com mais honra para a nação. Levada a questão ao gabinete de Londres, resta saber se o grupo de homens que dirige os destinos da Grã-Bretanha imitará o procedimento do seu representante nesta Corte. Há uma dignidade convencional que consiste em desconhecer o dever e a justiça para dar satisfação ao orgulho do poder. Esta dignidade há de se achar ferida com a altivez do nosso governo; a submissão teria dado à Grã-Bretanha mais uma razão de apertar os vínculos de amizade com o Império! 
Prevendo todas as conseqüências futuras, o país acha-se disposto a depor o que houver de resistência no altar da pátria. Nesta Corte as manifestações desta natureza não se têm feito esperar; recursos de que o governo carece, sem que este tenha reclamado uma subscrição nacional, já vão aparecendo; a câmara municipal já recebeu o nome de muitos voluntários. Uma sociedade que tomou o nome de União e Perseverança formou-se na câmara municipal, domingo último. Mais de duas mil pessoas concorreram aos convites feitos nos jornais. Foi aclamado presidente o Sr. Dr. Saldanha Marinho, e bem assim um diretório composto daquele ilustre jornalista e dos Srs. Theophilo Ottoni e conselheiro Antonio José de Bem. Outra sociedade foi também organizada nesse dia no Pavilhão Fluminense. O mesmo entusiasmo patriótico reina por toda a parte sem distinção de classes. 
Se me é dado conjecturar as emergências ulteriores em relação ao Futuro, deixe o leitor que eu revele a incerteza em que eu estou, os temores que me assaltam, porque não suponho que os ingleses, em caso de ataque, tenham simpatia por coisa nenhuma. Já não é desta opinião o redator principal, que tem entre mãos um romance do Sr. Camilo Castelo Branco, matéria de um grosso volume, e que o redator pretende dar todo no Futuro, capítulo por capítulo, sem receio de bala inglesa. Uma coisa que ele não pode compreender é que a publicação de um romance do Sr. Camilo Castelo Branco depende da vontade de lord Palmerston. Acho-lhe até certo ponto alguma razão. O romance escrito expressamente para o Futuro, e propriedade desta revista, tem por título um provérbio: Agulha em palheiro é este século e a sociedade onde o poeta escreveu; o que o poeta procura é um homem, que chega a encontrar, mais feliz nisto que o vaidoso Ateniense. De mulheres é que não há palheiro no século; o próprio poeta o declara referindo-se à sua heroína: “Paulinas de certo há muitas. As senhoras, em geral, são, como ela, todas, quando encontram homens como aquele.” Não sei se esta regra tão absoluta pode ser admitida, mas, feitas algumas exceções de que rezam até os noticiários, acho que é uma verdadeira regra geral. 
Passo a falar da peça do Sr. S. B. Nabuco de Araújo, ultimamente representada no Ateneu, com fervoroso aplauso. Esse aplauso, creio eu, tem duas significações: uma pelo talento do poeta, outra pela nacionalidade da obra. Em uma terra onde a 
literatura dramática balbucia apenas, os aplausos públicos não podem deixar de ter esta dupla significação; e nesse sentido é que a crítica deve apreciar. 
Sempre que um novo sacerdote se apresenta à porta desta igreja, tão despovoada ainda, deve ser recebido com palmas e cânticos. Transmitir à geração futura os preliminares de uma obra que seja completada com proveito é a ocupação de alguns espíritos amantes das letras e do progresso do país. Sem a solidez intelectual e a capacidade que a esses distingue, mas com o mesmo amor e a mesma perseverança, trabalharei eu, conforme me permitirem as forças de que disponho. 
O autor da Túnica de Nessus merece todas as simpatias, e tem direito a ser recebido no seio da literatura dramática. É assim que o aplaudo e saúdo. Entenda- se, porém, uma coisa: nas minhas observações literárias nunca levo pretensão a crítico. Tal não me suponho, mercê de Deus. A crítica é uma missão que exige credenciais valiosas, de cuja míngua não me coro de vergonha em confessar, como não tenho vaidade em referir as pouquíssimas coisas que sei. 
O que eu confesso é que sou moço, e que como tal, vou ao encontro dos moços com entusiasmo de camarada. Entre os que são da mesma idade é natural e fácil à comunicação das impressões recebidas, e mútuo conselho sempre resulta emenda e progresso. 
Entre mim e o autor da Túnica de Nessus não pode haver senão mútuos e cordiais conselhos. Toca-me a vez, e declaro que o faço com tanto prazer quanta sinceridade, e que a independência, de que não posso prescindir no meu juízo, em nada prejudica o desejo que nutro de lhe aplaudir muitas vitórias dramáticas. 
Começarei pelas belezas ou pelos defeitos da Túnica de Nessus? O próprio poeta impõe-me a escolha destes, visto que, pelo que me consta, é seu principal desejo que lhe apontem as falhas da obra. 
Direi, portanto, que me pareceu descobrir o principal defeito da Túnica de Nessus na ação, que não é suficiente para as proporções da peça, nem caminha sempre pela razão lógica das coisas. No intuito de simplificá-la, fê-la o poeta exígua, diluída nos seus quatro atos; eu a quisera, e dizendo eu suponho falar em nome de uma teoria — eu a quisera mais complexa, mais dramática. Preocupado com a pintura do principal caráter, o poeta esqueceu opor o bem ao mal, estabelecer uma luta, que, satisfazendo as condições da cena, desse explicação a muitas passagens obscuras. Adélia gasta, perde-se, infama-se, sem combate; não é combate à queixa desanimada de Máximo e a exposição de algumas teorias muito sãs de Oliveira. Esta ausência de luta entre os sentimentos tira à peça, apesar de vários lances de muito efeito, a necessária vitalidade dramática. 
Mas o tipo de Adélia, tão exclusivamente tratado, satisfaz as intenções do poeta? Cuido que não. Parece-me indeciso, contraditório às vezes, às vezes tocado de mais. A sua exigência de que o marido se dispa dos hábitos modestos e renegue a arte, é tão cruel, tão arrebatadamente feito, que nos leva insensivelmente a indagar que relações existem entre a verossimilhança e esse ruim capricho. 
No segundo ato, prevendo a miséria, foge com um visconde, a quem pouco antes deixa ver que não ignora todo o horror de uma situação equívoca. Perdida, os seus sentimentos parecem ora bons, ora maus, ora filhos de um espírito indiferente e frio. A filha, que levara de casa de seu marido, está a expirar em um quarto; Adélia parece amá-la, tanto que não tivera forças de deixá-la, fugindo da casa de seu marido; mas, entre o leito da moribunda e a mesa de um festim, Adélia prefere esta, senão de notar que nenhuma consideração impede a contigüidade do lugar da ceia e do lugar da morte. Este contraste, trazido para efeito cênico, derrama mais obscuridade e confusão no caráter de Adélia. 
Nesse ato, porém, refere-se que durante dezesseis anos Adélia não assistira Inês de suas carícias de mãe; em tal caso, trazer consigo a filha da casa de seu marido foi um capricho sem explicação. Mas, posta assim à situação, é preciso atribuir às palavras de Oliveira, na penúltima cena, o aparecimento da ternura maternal no coração de Adélia. Pode-se, sem violência, aceitar esta solução? Pois o que não fizeram longos dias de martírio da enferma, fazem algumas palavras mais ou menos veementes do médico? E aquela alma que recua por vaidade, ao ir, por extrema prova, despedir os banqueteadores, estava acaso preparada para receber a divina faísca do amor maternal? 
Máximo é também um caráter pouco seguro. É um homem fraco, passivo, sem vontade, sem decisão; tudo isto é natural; mas essa passividade, que ele afeta no interior conjugal durante anos, não exclui, e até tem sua razão de ser, na extrema delicadeza de sua alma, na bondade de seu coração, no profundo amor que vota a sua mulher. Tais qualidades não se pervertem no sofrimento, apuram-se; e quando uma cela monacal é o teatro das dores íntimas, o espírito ganha forças, não de combate, mas de clemência e perdão. 
Esse espírito misericordioso é que eu quisera ver nas palavras de Máximo, a uma frase de sua filha, que maldiz o pai desconhecido, conta-lhe a história das suas desventuras conjugais, no ponto de vista interessado de marido; esta represália é própria do Máximo do primeiro ato, e, sobretudo do Máximo religioso? Estabelecer no espírito da moribunda um duelo de sentimentos; opor-se, nessa hora suprema, às dolorosas invenções da mãe, revelações não menos dolorosa do pai; lançar a dúvida naquela alma que se ia embora ignorante das tormentas da vida, eis o que falseia o caráter de Máximo e desmente a sua missão evangélica. Dezesseis anos, a solidão do claustro, as letras divinas, a convivência de Deus, não teriam apaziguado naquela alma as paixões da terra e posto termo aos ódios do passado? 
Resta Oliveira; é um homem nobre e dedicado; a sua estima por Máximo e a sua aversão por Adélia são extremas; esse extremo explica a sua áspera e indiscreta pergunta no final da peça, quando a situação pedia uma complacente concessão. 
Do visconde e de Fernando nada direi; passam a peça como meteoros; mas a passagem do segundo está justificada? Que faz a peça a presença desse Armando passageiro ? Sem o amor de Fernando a peça existia, e quanto ao caráter de Adélia, que o poeta quis melhor definir com essa circunstância, torna-se mais confuso ainda. Para rematar estes senões que me parecem existir na Túnica de Nessus, direi que o estilo peca por demasiadamente lírico; as figuras, os tropos, as parábolas, surgem sobreposse em cada diálogo, até nas falas de Inês, menina moribunda, em cuja boca destoa semelhante linguagem. Será isto um partido tomado, ou resulta da própria tendência do poeta? Seja como seja, o poeta dá-nos algumas figuras bonitas, veste idéias novas em roupas originais, o que não impede por vezes figuras como estas condenadas por sua vulgaridade: 
— Para que fazer-me subir nas asas brancas da esperança até ao céu das ilusões, e depois cair no abismo da realidade? 
Indaguemos agora das qualidades do poeta. A primeira é, sem dúvida, a dos efeitos; feitos as reservas que já apontei, a última cena do primeiro ato impressiona muito; é escrita com fogo e cheia de movimento; no segundo ato, a cena vem encontrar Adélia em colóquio amoroso com o visconde é habilmente trazida; a transição, uma das feições típicas de Adélia, inspira interesse e é conduzida com engenho. 
As cenas da enferma com Oliveira e com Adélia são tocadas com sentimento; há nelas o tom plangente da elegia, e a mais de um tenho ouvido o que eu próprio sinto; são imensamente comoventes. O quarto ato, que é para mim o melhor, no ponto de vista do movimento dramático, inspira nas suas poucas cenas muito interesse; a aparição de Máximo sob a veste monacal, o desespero de Adélia aos 
pés da filha, a figura calma de Oliveira dominando aqueles diversos sentimentos, tudo isso traz suspenso o espírito do espectador; o lance do encontro de Máximo e Adélia é hábil e interessante; no desenlace, Adélia enlouquece, é o complemento da sua desgraça, o termo de sua vida malbaratada. 
Do que levo dito, deve concluir-se uma coisa: que ao autor da Túnica de Nessus falta certo conhecimento da ciência dramática, mas que lhe sobejam elementos que, postos em ação e dirigidos convenientemente, lhe darão eminente posição entre os nossos poetas dramáticos. 
A intuição dos efeitos, a imaginação viva, a paixão abundante, tais são os seus meios atuais; a observação e a perseverança se encarregarão de aplicá-los discretamente, desenvolvê-los, completá-los, e abrir ao poeta no futuro uma carreira que eu profetizo segura e gloriosa. 
Expus com franqueza e lealdade, sem exclusão do natural acanhamento, as minhas impressões; os erros que tiver cometido provarão contra a minha sagacidade literária, nunca contra o meu caráter e a minha convicção. 
Esta glória, que não reputo exclusiva, havia de tê-la o autor da Túnica de Nessus, se, em iguais circunstâncias, tivesse de julgar uma obra minha.

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