Dormiam as crianças, mas dona Ernestina de Araújo ainda estava acordada.
O esposo deu-lhe o beijo convencional , um beijo apressado, que tinha uma tradição de quinze anos, e começou a despir-se para deitar-se. Araújo levava grande parte da vida a mudar de roupa.
— Venho achar-te acordada: isso é novidade!
— É novidade, é. A Jacinta deu-lhe hoje para embebedar-se, e saiu sem aprontar o jantar. Fiquei em casa sozinha com as crianças.
— Oh, senhor! é sina minha andar atrás de cozinheiras!
— Não te aflijas: eu mesma irei amanhã procurar outra.
— Naturalmente, pois se não fores, nem eu, que não estou para maçadas! Depois que o marido se deitou, dona Ernestina, timidamente:
— E o meu chapéu? perguntou; compraste-o?
— Que chapéu?
— O chapéu que te pedi.
— Ah? já não me lembrava... Daqui a uns dias... Ando muito arrebentado...
— É que o outro já está tão velho...
— Vai-te arranjando com ele, e tem paciência... Depois, depois...
— Bom... quando puderes. E adormeceram.
Logo pela manhã a pobre senhora pôs o seu chapéu velho e saiu por um lado, enquanto o seu marido saía por outro, ambos à procura de cozinheira.
Os pequenos ficaram na escola.
Os rendimentos de Araújo davam-lhe para sustentar aquelas duas casas. Ele almoçava com a mulher e jantava com a amante. Ficava até a meia-noite em casa desta, e entrava de madrugada no lar doméstico.
A amante vivia num bonito chalé, a família morava numa velha casinha arruinada e suja. Na casa da mão esquerda havia o luxo, o conforto, o bem estar; na casa da mão direita reinava a mais severa economia. Ali os guardanapos eram de linho; aqui os lençóis de algodão. Na rua do Matoso havia sempre o supérfluo; na rua de São Cristóvão muitas vezes faltava o necessário.
Araújo prontamente arranjou cozinheira para a rua do Matoso, e à meia noite encontrou a esposa muito satisfeita:
— Queres saber, Araújo? Dei no vinte! Achei uma excelente cozinheira!
— Sério?
— Que jantar esplêndido! Há muito tempo não comia tão bem! Esta não me sai mais de casa.
Pela manhã, a nova cozinheira veio trazer o café para o patrão, que se achava ainda recolhido, lendo a
Gazeta. A senhora estava no banho; os meninos tinham ido para a escola.
— Eh! eh! meu amo, é vosmecê que é dono da casa?
Araújo levantou os olhos; era a Josefa, a cozinheira que tinha estado em casa de Maricas!
— Cala-te, diabo! Não digas que me conheces!
— Sim, sinhô.
— Com que então tomaste anteontem um pileque onça e nos deixaste sem jantar, hein?
— Mentira sé, meu amo; Josefa nunca tomou pileque. Minha ama foi que me botou pra fora!
— Oras essa! Por que?
— Ela me xingou pro via das compra, e eu ameacei ela de dizê tudo a vosmecê.
— Tudo, o que?
— A história do estudante que entra em casa à meia-noite quando vosmecê sai.
— Cala-te! disse vivamente Araújo, ouvindo os passos de dona Ernestina, que voltava do banho.
O nosso herói prontamente se convenceu que a Josefa lhe havia dito a verdade. Em poucos dias desembaraçou-se da amante, deu melhor casa à mulher e aos filhos, começou a jantar em família, e hoje não saí à noite sem dona Ernestina. Tomou juízo e vergonha.
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