sábado, 2 de outubro de 2021

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: A cozinheira II:



Dormiam as crianças, mas dona Ernestina de Araújo ainda estava acordada. 
O esposo deu-lhe o beijo convencional , um beijo apressado, que tinha uma tradição de quinze anos, e começou a despir-se para deitar-se. Araújo levava grande parte da vida a mudar de roupa. 
— Venho achar-te acordada: isso é novidade! 
— É novidade, é. A Jacinta deu-lhe hoje para embebedar-se, e saiu sem aprontar o jantar. Fiquei em casa sozinha com as crianças. 
— Oh, senhor! é sina minha andar atrás de cozinheiras! 
— Não te aflijas: eu mesma irei amanhã procurar outra. 
— Naturalmente, pois se não fores, nem eu, que não estou para maçadas! Depois que o marido se deitou, dona Ernestina, timidamente: 
— E o meu chapéu? perguntou; compraste-o? 
— Que chapéu? 
— O chapéu que te pedi. 
— Ah? já não me lembrava... Daqui a uns dias... Ando muito arrebentado... 
— É que o outro já está tão velho... 
— Vai-te arranjando com ele, e tem paciência... Depois, depois... 
— Bom... quando puderes. E adormeceram. 
Logo pela manhã a pobre senhora pôs o seu chapéu velho e saiu por um lado, enquanto o seu marido saía por outro, ambos à procura de cozinheira. 
Os pequenos ficaram na escola. 
Os rendimentos de Araújo davam-lhe para sustentar aquelas duas casas. Ele almoçava com a mulher e jantava com a amante. Ficava até a meia-noite em casa desta, e entrava de madrugada no lar doméstico. 
A amante vivia num bonito chalé, a família morava numa velha casinha arruinada e suja. Na casa da mão esquerda havia o luxo, o conforto, o bem estar; na casa da mão direita reinava a mais severa economia. Ali os guardanapos eram de linho; aqui os lençóis de algodão. Na rua do Matoso havia sempre o supérfluo; na rua de São Cristóvão muitas vezes faltava o necessário. 
Araújo prontamente arranjou cozinheira para a rua do Matoso, e à meia noite encontrou a esposa muito satisfeita: 
— Queres saber, Araújo? Dei no vinte! Achei uma excelente cozinheira! 
— Sério? 
— Que jantar esplêndido! Há muito tempo não comia tão bem! Esta não me sai mais de casa. 
Pela manhã, a nova cozinheira veio trazer o café para o patrão, que se achava ainda recolhido, lendo a 
Gazeta. A senhora estava no banho; os meninos tinham ido para a escola. 
— Eh! eh! meu amo, é vosmecê que é dono da casa? 
Araújo levantou os olhos; era a Josefa, a cozinheira que tinha estado em casa de Maricas! 
— Cala-te, diabo! Não digas que me conheces! 
— Sim, sinhô. 
— Com que então tomaste anteontem um pileque onça e nos deixaste sem jantar, hein? 
— Mentira sé, meu amo; Josefa nunca tomou pileque. Minha ama foi que me botou pra fora! 
— Oras essa! Por que? 
— Ela me xingou pro via das compra, e eu ameacei ela de dizê tudo a vosmecê. 
— Tudo, o que? 
— A história do estudante que entra em casa à meia-noite quando vosmecê sai. 
— Cala-te! disse vivamente Araújo, ouvindo os passos de dona Ernestina, que voltava do banho. 
O nosso herói prontamente se convenceu que a Josefa lhe havia dito a verdade. Em poucos dias desembaraçou-se da amante, deu melhor casa à mulher e aos filhos, começou a jantar em família, e hoje não saí à noite sem dona Ernestina. Tomou juízo e vergonha.

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