domingo, 4 de dezembro de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Erça de Queiroz: Londres, 14 de Abril de 1877:




Londres, 14 de Abril de 1877 
Estamos, parece, nas vésperas da guerra. 
A Turquia deu ao ultimato da Rússia uma verdadeira resposta turca – verbosa, altiva, teimosa, cheia do espírito de fatalismo muçulmano: recusa tudo: fazer concessões ao Montenegro, desarmar, mandar embaixadores a Sampetersburgo, aceitar as intervenções alheias, renovar quaisquer garantias, quase discutir: desprende-se assim violentamente das combinações diplomáticas, carrega a espingarda e espera. Era fácil prever esta reacção do orgulho turco. 
Há um ano que a Sublime Porta vive num estado de humilhação permanente. A Europa tem-na tratado como um seu subalterno dependente e inconsciente: impõe-lhe constituições, governa as suas finanças, discute a sua administração, usa da sua capital como de uma sala de hotel para instalar conferências, manda comissões impertinentes investigar os seus massacres domésticos, dá razão às províncias que se insurreccionam, força-a a constantes renovações do funcionalismo, censura as suas despesas, decide nos seus tribunais, obriga-a a nomear um parlamento, repreende-a, diz-lhe «chut!», desacredita-a, ralha-lhe, ameaça-a, não admite que ela tenha um espírito de raça, uma tradição histórica, uma necessidade religiosa e trata-a absolutamente como se ela fosse uma povoação de negros perdida no Sul da África. 
Esta situação não podia durar. O Turco é inteligente, orgulhoso, bravo, teimoso, fanático; um dia viria em que, enfastiado de ver em roda de si tantos pedagogos a querer dirigi-lo e tantos ferrabrases a franzirem-lhe a testa – devia necessariamente dar dois passos a trás e meter a espingarda à cara. 
Foi o que sucedeu. 
Aceitando tacitamente a guerra, a Sublime Porta foi hábil. Qualquer nova concessão que 
fizesse seria inútil: a Rússia sempre quis a guerra; através das declarações adocicadas de paz, da proposta de conferências, das esperanças nas soluções diplomáticas a Rússia ia lenta e seguramente preparando a guerra. A Turquia não a podia evitar; e indo, decisivamente, ao encontro dela mostra ao menos um sentimento de dignidade e de força. 
Além disso impelia-a a grande corrente do sentimento nacional; a cólera pública, excitada pelos ulemás, pelo partido da Velha, Turquia. é tão forte que concessões demasiadas ou a demonstração evidente de uma submissão à Europa faria correr um grande risco à dinastia dos Osmanlis. 
O actual grão-vizir tinha de mais a mais um interesse de ambição pessoal em se mostrar resistente e enérgico: é que, tendo substituído Midhat Paxá exilado tinha de mostrar as fortes qualidades que o sentimento geral atribui a Midhat: Midhat tem um grande partido, não só em Constantinopla mas em todo o império; ele é considerado como homem capaz de fazer face à Europa, de manter a dignidade da raça turca e de saber morrer com honra: ora o actual grão- vizir quer provar, para se manter, que não é um patriota inferior a Midhat: ninguém, na diplomacia, duvida que esta razão de política pessoal influiu poderosamente para a altiva resposta da Turquia ao ultimato da Rússia. Acresce a estas uma outra razão: é que a Turquia não pode licenciar o seu exército e que para o fazer viver tem de o fazer combater. Os Turcos têm quase duzentos mil homens mobilizados, reunidos na fronteira, com grandes esforços e sacrifícios nos dois últimos anos. Que se faria a este exército desmobilizando-o? Num país em que não há caminhos de ferro, quase não há estradas, estes homens, pertencendo às províncias mais afastadas do império, como poderiam voltar às suas casas? O Estado não tem dinheiro para os transportar. Com que recursos pessoais empreenderão eles a viagem? Nesta época do ano, os trabalhos do campo estão feitos; o Estado não tem trabalho que lhes dar, em que se ocupariam eles? A maior parte, em dois anos de acampamento, têm perdido o hábito do trabalho agrícola; o instinto da raça é militar: todo o turco ganha facilmente o hábito de ser soldado; perde mais facilmente o hábito de ser cultivador. 
Este exército desmobilizado dispersar-se-ia através de províncias pobres, assoladas pela insurreição, e seria um elemento de desordem, de pilhagem, de deboche, e a renovação das cenas da Bulgária: assim o sentimento nacional, estreitas questões de ambição pessoal, inextricáveis dificuldades financeiras – aí está o que leva a Turquia à guerra. 
O imperador da Rússia, por seu lado, é impelido também pelo entusiasmo público. 
Um retraimento agora poderia causar como na Turquia um abalo revolucionário em toda a Rússia. E um ódio nacional: os jornais, pela exaltação da sua cólera, pelas narrações permanentes das crueldades e das opressões turcas sobre os cristãos; os comités de Moscovo pela sua vasta influência; o sacerdócio russo por uma prédica irritada e fanática mantêm o espírito nacional num furor permanente contra o Turco; a guerra e considerada santa, sem nenhuma ideia de conquista, de anexação; é possível que a plebe e a rica burguesia mercantil de Moscovo e das cidades pensem em Constantinopla; mas as classes militares, a aristocracia, sabem bem que nem a Inglaterra nem a Áustria lhes permitiriam aumentar o território: e realmente por um puro sentimento, pela libertação dos cristãos que se batem. E no fundo os dois governos – russo e turco são impelidos por um fanatismo contrario. 
Qual será o resultado da luta? A desproporção de forças na fronteira é grave: os Russos têm duzentos e setenta e cinco mil homens de infantaria, vinte mil cavalos e novecentas peças de artilharia. Os Turcos têm cento e cinquenta mil homens de infantaria, três mil cavalos e duzentos e dezasseis canhões. Este número inferior é compensado por esta consideração: que o Turco é atacado e o Russo ataca – ora é conhecido que o Russo é o mais vagaroso e insuficiente dos exércitos de ataque e o Turco é um admirável soldado de defesa. Ninguém como ele para manter uma posição: é ainda uma qualidade que a sua religião lhe deu: a impassibilidade. 
Os Russos decerto podem mobilizar rapidamente grandes forças, mas aos Turcos basta-lhes levantar o estandarte do Profeta para que todo o maometanismo, sejam quais forem as dissidências de seita, corra às armas. 
Kalil Paxá, o embaixador da Turquia em Paris, dizia há dias, como o velhaco sorriso de velho maometano:

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