sexta-feira, 22 de abril de 2022

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: Luís Soares VI:


Adelaide contou miudamente ao amigo de seu pai os sucessos que a obrigavam a não preencher a condição da carta póstuma confiada a Anselmo. Em conseqüência desta recusa, a fortuna devia ficar com Anselmo; a moça contentava-se com o que tinha. 
Não se deu Anselmo por vencido, e antes de aceitar a recusa foi ver se sondava o espírito de Luiz Soares. 
Quando o sobrinho do major viu entrar por casa o fazendeiro suspeitou que alguma coisa houvesse a respeito do casamento. Anselmo era perspicaz; de modo que, apesar da aparência de vítima com que Soares lhe aparecera, compreendeu ele que Adelaide tinha razão. 
Assim pois tudo estava acabado. Anselmo dispôs-se a partir para a Bahia, e assim o declarou à família do major. 
Nas vésperas de partir achavam-se todos juntos na sala de visitas, quando Anselmo soltou estas palavras: 
- Major, está ficando melhor e forte; eu creio que uma viagem à Europa lhe fará bem. Esta moça também gostará de ver a Europa, e creio que a Sra. D. Antônia, apesar da idade, lá quererá ir. Pela minha parte sacrifico a Bahia e vou também. Aprovam o conselho? 
- Homem, disse o major, é preciso pensar... 
- Qual pensar! Se pensarem não embarcarão. Que diz a menina? 
- Eu obedeço ao tio, respondeu Adelaide. 
- Além de que, disse Anselmo, agora que D. Adelaide está de posse de uma grande fortuna, há de querer apreciar o que há de bonito nos países estrangeiros a fim de poder melhor avaliar o que há no nosso... 
- Sim, disse o major; mas você fala de grande fortuna... 
- Trezentos contos. 
- São seus. 
- Meus! Então sou algum ratoneiro? Que me importa a mim a fantasia de um generoso amigo? O dinheiro é desta menina, sua legítima herdeira, e não meu, que aliás tenho bastante. 
- Isso é bonito, Anselmo! 
- Mas o que não seria se não fosse isto? A viagem à Europa ficou assentada. 
Luiz Soares ouviu a conversa toda sem dizer palavra; mas a idéia de que talvez pudesse ir com o tio sorriu-lhe ao espírito. No dia seguinte teve um desengano cruel. Disse-lhe o major que, antes de partir, o deixaria recomendado ao ministro. 
Soares procurou ainda ver se alcançava seguir com a família. Era simples cobiça na fortuna do tio, desejo de ver novas terras, ou impulso de vingança contra a prima? Era tudo isso, talvez. 
À última hora foi-se a derradeira esperança. A família partiu sem ele. 
Abandonado, pobre, tendo por única perspectiva o trabalho diário, sem esperanças no futuro, e além do mais, humilhado e ferido em seu amor-próprio, Soares tomou a triste resolução dos covardes. 
Um dia de noite o criado ouviu no quarto dele um tiro; correu, achou um cadáver. Pires soube na rua da notícia, e correu à casa de Vitória, que encontrou no toucador. 
- Sabes de uma coisa? perguntou ele. 
- Não. Que é? 
- O Soares matou-se. 
- Quando? 
- Neste momento. 
- Coitado! É sério? 
- É sério. Vais sair? 
- Vou ao Alcazar. 
- Canta-se hoje Barbe-Bleue, não é? 
- É. 
- Pois eu também vou. 
E entrou a cantarolar a canção de Barbe-Bleue. 
Luiz Soares não teve outra oração fúnebre dos seus amigos mais íntimos.


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