sexta-feira, 6 de maio de 2022

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O Caldo III:

 


A noite começava a cair, envolvendo o sertão imenso. Uma cinza tênue e contínua envolvia as coisas, gastando-lhes os contornos. As seriemas soltavam ao longe o seu canto monótono de aves engasgadas. As moitas, povoadas de insetos, chiavam, como fervessem ao fogo. Uma primeira estrela abriu no céu, como uma açucena num lago sem ondas. E outras foram miúdas, piscando os olhos pequeninos. 
Pesado, grosso, a cabeça inteiramente o coronel Antônio Solano pouco mudara, em vinte anos. A casa era a mesma. O criado o mesmo. E o mesmo, ainda, o lampião de querosene suspenso do teto sobre a mesa de jantar, onde se estendia a metade de uma toalha de algodão e se via, sobre a toalha, um prato e um talher. 
- Libório, - chamou o ancião, tomando lugar à cabeceira da mesa; - traga o jantar. 
A figura de um preto alto, cabeça alva como a do patrão, atravessou o compartimento, rumo da cozinha. E, um momento depois, voltava com um prato fundo, onde fumegava um caldo de carne, em que flutuavam fragmentos de tempero e bolhas de gordura. Colocou-o diante do coronel, e retirou-se, de novo, em direção à cozinha, para trazer, mais tarde, o arroz, o cozido, o feijão. 
A colher na mão, Antônio Solano curvou-se para a frente, e bebeu a primeira colherada. Tomou a segunda. Se houvesse à sua frente um espelho, teria visto, talvez, nesse momento, que um homem, esgueirando-se pela porta, se aproximava, pé ante pé, da sua cadeira, com os olhos postos no seu pescoço taurino... Tomou a terceira colher... Dentes cerrados, o homem era novo e trazia à mão uma faca meticulosamente afiada, como a dos açougueiros. E o coronel tinha a boca cheia pela quarta colherada, quando uma grande mão lhe empurrou, violenta, o rosto no prato, ao mesmo tempo que uma lâmina certeira, navalhante, lhe decepava completamente, e de um golpe, cabeça vigorosa! 
Quando o criado voltou com o cozido, soltou-o no chão, de pavor: o prato do caldo estava cheio de sangue, que transbordava pela toalha, pela mesa, pelo soalho encardido; e no prato, mergulhado no caldo sangrento, o rosto do patrão.

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