sexta-feira, 6 de maio de 2022

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O Caldo II:

 


Um ano depois, pelo S. João, achava-se o coronel Solano à porta da casa, de onde havia partido uma tropa rumo do sertão. O cotovelo encostado no portal, a mão aberta sustentando a cabeça, olhava, sem ver, a natureza que o cercava. À frente, muito longe, a serra Dourada esfumava- se, coberta, aqui e ali, de lenços de bruma. Coleando para a direita e para a esquerda, arenosa e cheia de sol, a estrada deserta era como uma serpente imensa, de cauda presa ao sertão e cabeça mergulhada no mar. Em uma árvore próxima, chiavam cigarras, limando o silêncio. O sertanejo ouvia e olhava tudo isso estupidamente, quando, surgindo do oitão da casa, lhe apareceu um vulto de mulher, que não pôde logo reconhecer. Trazia nos braços uma criança adormecida, em um sujo pano de algodão. 
Toda ela denunciava miséria, penúria, sofrimento. O cabelo sem trato, amarrado ao alto da cabeça, escapava-lhe, em falripas escuras, pelo pescoço, pelos ombros, pelo rosto. Devia ser moça, mas trazia, já, nas feições, os estigmas da velhice precoce. 
- Boa tarde, "seu" coronel! 
- Boa tarde! - respondeu, seco, O sertanejo, sem mudar de posição. -"Seu" coronel não me conhece? 
Antônio Solano examinava-a, sem compreender. 
- Eu sou a Maria Rosa, filha do defunto Tranquilino, - aventurou a rapariga, medrosa. E enquanto o coronel fechava a cara: 
- Eu vim trazer a vossa senhoria o Antoninho, p'ra tomar a benção p'ro pai... 
A essas palavras, ditas timidamente, com um tremor por todo o corpo e a ponto, quase, de soltar a criança, o antigo fazendeiro explodiu: 
- Pai?... Que pai, nada!... Vocês andam por ai como as cabras com os bodes, com um e com outro, arranjam os seus moleques e, depois, o coronel Solano é que é o pai! Isso já é desaforo... Eu não estou aqui para trabalhar para os filhos dos outros... Vá procurar o pai, em outra parte!... 
Pálida, ainda, dos martírios da maternidade, das privações que sofria, Maria Rosa tornara-se cor de cera. O filho deitado nos braços, quase caindo, os olhos súplices e sem uma gota de pranto, recordava certas imagens toscas de Nossa Senhora que se vêem, às vezes, nas igrejas coloniais. Parecia-lhe um sonho, o que ouvia. De repente, porém, tomou coragem, e, quase num soluço: 
- Ele é seu filho, "seu" coronel... Eu juro... E se eu vim aqui, não foi por mim, foi por ele... 
Minha mãe morreu, na semana passada... Meu leite secou.... E o que eu vim pedir a vossa senhoria foi qualquer coisa para dar um caldinho p 'ra ele... 
E como quem diz, com terror, uma coisa que lhe parece impossível: 
- Senão ele morre... 
- Caldos! Caldos!... - rugiu, indignado, o coronel, dando de entrar para o balcão. - Aos meus caldos querem viver vocês todos... 
E, braço estirado, no rumo da Baixa: 
- Vá embora!... Já!... 
- Vossa senhoria nega um caldo para seu filho... Não é? - fez a rapariga, com firmeza. 
- Vá embora!... Já lhe disse! - tornou Solano, colérico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário