sexta-feira, 22 de julho de 2022

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O Seringueiro III:


Oito anos decorreram, acumulando-se sobre esse dia ou, antes, sobre essa noite. Confiado a outro seringueiro, veterano na faina, para que o iniciasse na extração do antigo ouro negro, o rapazola do Graça sentiu, logo nos primeiros dias, o inominável suplício do arrependimento. As estradas de seringueira que lhe haviam sido destinadas ficavam em plena selva, longe dois dias do barracão. Para moradia, encontrara, já, a barraca de palha, com soalho de troncos de palmeira, rachados ao meio. Fora, ao lado da barraca, a pequena latada para a defumação da borracha, e que lhes servia, ao mesmo tempo, de cozinha. Próximo, rolava, o rio, para baixo, as suas águas escuras, deslizando entre duas paredes de vegetação compacta, de que se desgarravam caules de açaizeiros, como braços de condenados que, atravessando as grades de suas células, pedissem perdão ou socorro. E em torno à barraca humilde, sufocando-a, asfixiando-a, comprimindo-a, a mata imensa, ameaçadora, impenetrável, o tronco encostado ao tronco, a fronde presa à fronde, e os cipós amarrando tudo em um verde feixe compacto, no qual a estrada para o centro se abria pequena, estreita, insignificante como um buraco de rato na majestade de um muro. 
Às três horas da manhã o companheiro levantava-se, empurrava a porta de esteira, empunhava o búzio, e um rugido de dor, de angústia, de saudade, cortava a solidão silenciosa. Outro búzio, ao longe, respondia, na mesma queixa resignada. E outro, ainda mais distante. Eram os galés daquele presídio, vasto como um mundo, que se comunicavam sem, às vezes, se conhecerem, dando a notícia de que ainda viviam. E o silêncio caía em seguida, sepultando, de novo, centenas de homens vivos. 
Preparando o café, ingerido às pressas com farinha ou bolacha, tomava cada um o seu lampião de querosene, o facão, a machadinha, e penetrava a estrada de Seringueiras, abrindo no coração da selva espessa o olho vermelho do farol. Ao chegar a uma das árvores cuja posição determinava as oscilações da vereda ziguezagueante, - árvore mártir, sangrada mil vezes, durante anos seguidos, desde as raízes até a maior altura do tronco, seis ou oito metros acima do solo - o seringueiro subia os "mutás" ou giraus superpostos, indo lá em cima golpear a casca rugosa e o cerne generoso, que logo lhe respondiam jorrando o seu leite. Fixadas, sob os golpes, as tigelinhas de folha, o homem descia, e continuava, silencioso como um fantasma, o seu caminho. Surpreendia -o nessa peregrinação a madrugada. Encontrava-o o sol, de que ele tinha notícia apenas pela claridade doce que se coava pela copa das árvores, cuja vastidão lhe impedia a vista do céu. Às onze horas, enfim, o seringueiro desembocava outra vez, pelo lado oposto da estrada, diante da barraca. Almoçava o feijão preparado na véspera. E reiniciava a romaria da madrugada, recolhendo num grande frasco de folha, no "boião", o leite recebido pelas tigelinhas, que ficavam junto às próprias árvores para o trabalho do dia seguinte. À tarde, chegava à barraca, defumava o leite, preparava a borracha. E posto ao fogão o feijão e o pedaço de carne seca ou de caça apanhada casualmente durante o dia, deitava-se, fatigado, na rede macia, suja, ouvindo a orquestra imensa, constituída por todas as vozes da natureza, que o insultavam, e o vaiavam, e o desafiavam, da sombra das folhas, da cavidade dos troncos, do cimo das árvores, da margem do rio - no coaxar dos sapos, no zumbir dos insetos, na reza do vento, no estalido dos galhos, no rugido das onças, acordadas para comer...

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