O CONTRABANDO
A Valentim Magalhães VI
À uma hora, Geraldo apeava-se do carro e batia à porta de casa. Veio abrir-lha o José, que esperava a pé firme, e notou, surpreso, que o patrão viera acompanhado por uma mulher. A princípio supôs fosse a menina, que tivesse ido com o pai ao teatro e uma circunstância qualquer impedisse de voltar para o colégio, - mas qual não foi o seu espanto ao ver que se tratava de um contrabando, o primeiro que entrava naquela casa!
— Pode recolher-se, disse Geraldo.
O criado sumiu-se, e o patrão abriu a porta da sala, convidando Laura a entrar. Entraram, e ele imediatamente acendeu o gás.
A rapariga olhou com curiosidade em volta de si e o retrato de Margarida chamou-lhe logo a atenção.
— Que moça tão bonita e simpática! exclamou. Parece uma santa! — Quem é?
— Minha filha.
— Sua filha? Que idade tem?
— Dezessete anos.
— Tem a minha idade.
Geraldo estremeceu.
— Tem também dezessete anos?
— Nasci em 1874.
— Sim... e em que mês?
— Em abril... no dia 27 de abril.
O viúvo empalideceu e ficou a olhar para a rapariga com uma expressão singular. Depois sorriu, pareceu refletir, foi ao seu quarto, abriu um guarda roupa, e tirou do gavetão uma camisa de mulher que ali estava religiosamente guardada havia dez anos. com outras roupas que eram o espólio sagrado da morta.
— Aqui tem uma camisa de dormir. Dispa-se e deite-se.
Laura ficou sozinha no quarto. Ele esperou que ela se despisse e se deitasse, trouxe para a sala as suas roupas úmidas e estendeu-as nas cadeiras para secarem, apanhando o ar que entrava timidamente pelas venezianas.
Tornou à alcova. Laura estava deitada. Tinha vestido a camisa. Bocejava. Parecia morta de sono.
Geraldo cobriu-a com um lençol, e perguntou-lhe:
— Gosta de dormir com luz?
— Gosto.
Ele acendeu uma lamparina e apagou o gás. Depois, aproximou-se da cama, abaixou-se, beijou a sua hóspede na fronte, e disse-lhe:
— Boa noite, Laura; durma bem.
— Oh!... então o senhor não se deita comigo?...
— Não.
— Por que?
— Porque você nasceu no mesmo dia em que nasceu minha filha. Ela compreendeu, ficou muito triste e murmurou:
— Boa noite.
Geraldo foi para a sala, despiu-se e deitou-se no canapé. Refletiu que Laura iria talvez fazer mau juízo de sua virilidade, e espalhar por aí que ele não era um homem. Um instante quis erguer-se para justificar-se positivamente... Mas não; separava-os aquela data: 27 de abril de 1874; seria quase um incesto! Adormeceu e passou toda a noite no canapé.
Levantou-se pela manhã, foi à alcova, e encontrou Laura acordada. Indicou-lhe a toilette num quarto adjacente, e levou-lhe as roupas que ficaram na sala a secar. Depois, serviu-lhe uma xícara de café com leite e biscoitos.
Às oito horas e meia, Laura estava vestida. Geraldo chamou o José e deu-lhe ordem para acompanhá-la até a sua casa. Quando ela ia sair, ele meteu-lhe nas mãos um envelope contendo uma nota de cem mil réis, beijou-a na fronte, e disse-lhe:
— Adeus, minha filha.
E pôs-se à janela, e acompanhou-a com a vista até vê-la dobrar a esquina, com muita pena de não poder tirá-la para sempre daquela vida.
Depois, foi contemplar o retrato de Margarida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário