quarta-feira, 24 de março de 2021

Poesia de de Quinta na Usina: Machado de Assis:

 




NO ESPAÇO

Il n’y a qu’une sorte d’amour, mais il y en a mille différentes copies.
La Rochefoucauld

Rompendo o último laço
Que ainda à terra as prendia,
Encontraram-se no espaço
Duas almas. Parecia
Que o destino as convocara
Para aquela mesma hora;
E livres, livres agora,
Correm a estrada do céu,
Vão ver a divina face:
Uma era a de Lovelace,
Era a outra a de Romeu.
Voavam... porém, voando
Falavam ambas. E o céu
Ia as vozes escutando
Das duas almas. Romeu
De Lovelace indagava
Que fizera nesta vida
E que saudades levava.
“Eu amei...mas quantas, quantas,
E como, e como não sei;
Não seria o amor mais puro,
Mas o certo é que as amei.
Se era tão fundo e tão vasto
O meu pobre coração!
Cada dia era uma glória,
Cada hora uma paixão.
Amei todas; e na história
Dos amores que senti
Nenhuma daquelas belas
Deixou de escrever por si.
Nem a patrícia de Helena,
De verde mirto c’roada,
Nascida como açucena
Pelos zéfiros beijada
Aos brandos raios da lua,
À voz das ninfas do mar, 
Trança loura, espádua nua, 
Calma fronte e calmo olhar.
Nem a beleza latina,
Nervosa, ardente, robusta,
Levantando a voz augusta
Pela margem peregrina,
Onde do eco em seus lamentos,
Por virtude soberana,
Repete a todos os ventos
A nota virgiliana.
Nem da doce, aérea Inglesa,
Que os ventos frios do norte
Fizeram fria de morte,
Mas divina de beleza.
Nem a ardente Castelhana,
Corada ao sol de Madrid,
Beleza tão soberana,
Tão despótica no amor,
Que troca os troféus de um Cid
Pelo olhar de um trovador.
Nem a virgem pensativa
Que as margens do velho Reno,
Como a pura sensitiva
Vive das auras do céu
E murcha ao mais leve aceno
De mãos humanas; tão pura
Como aquela Margarida
Que a Fausto um dia encontrou.
E muitas mais, e amei todas,
Todas minha alma encerrou.
Foi essa a minha virtude,
Era esse o meu condão.
Que importava a latitude?
Era o mesmo coração,
Os mesmos lábios, o mesmo
Arder na chama fatal...
Amei a todas e a esmo.”
Lovelace concluíra;
Entravam ambos no céu;
E o Senhor que tudo ouvira,
Voltou os olhos imensos
Para a alma de Romeu:
“E tu?” – Eu amei na vida
Uma só vez, e subi
Daquela cruenta lida,
Senhor, a acolher-me em ti.”
Das duas almas, a pura,
A formosa, olhando em face
A divindade ficou:
E a alma de Lovelace
De novo à terra baixou.
Daqui vem que a terra conta,
Por um decreto do céu,
Cem Lovelaces num dia
E em cem anos um Romeu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário