domingo, 5 de dezembro de 2021

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis: A “Resignação”.

21 DE NOVEMBRO DE 1861.
Cavaco — Caridade — Thereza Parodi — Coros do teatro lírico
— A “Resignação”.
Ó pachorra ! Tu és a Circe mais feiticeira que conheço contra quem
não valem todas as advertências de duas Minervas juntas! Adormeci
em teu seio, «amiga velha», como te chamava aquele dom Filinto,
que, além desse, tinha outro ponto de contato comigo, na predileção
pelas trouxas de ovos; adormeci, digo eu, em teu seio, deixei passar
a semana sem vir dizer em letra redonda o que pensava das
ocorrências delas.
Não faltou, porém, quem se encarregasse de comentar, como eu, 
com um brilho de que não é capaz um escritor novel, ou já por
crônica, ou já a propósito de música e de caridade.
E de música foram últimos dias. De tudo o mais, porém, passou
estéril a semana. Música nos teatros, música nos concertos, por
caridade e por prazer.
Pretende Eugênio Pelletan que a mulher, com o andar dos tempos,
há de vir a exercer no mundo um papel político. Sem entrar na
investigação filosófica da profecia, a que dá uma tal ou qual razão 
existência de certas mulheres da sociedade grega e da sociedade
francesa, eu direi que é esse um fato que eu desejava ver realizado,
em maior plenitude do que pensa o autor da “Profession de foi”. 
Eu quisera uma nação, onde a organização política e administrativa
parasse nas mãos do sexo amável, onde, desde a chave dos poderes
até o último lugar de amanuense, tudo fosse ocupado por essa
formosa metade da humanidade. O sistema político seria eletivo. 
Abeleza e o espírito seriam as qualidades requeridas para os altos
cargos do Estado, e aos homens competiria exclusivamente o direito
de votar.
Que fantasia! Mas, enquanto esperamos a realização dessa linda
quimera, à mulher cabem outros papéis, que, se não satisfazem à
inspiração de um humorista, podem contentar plenamente o espírito
de um filósofo e de um cristão. É, por exemplo, o da mãe de família
e o do anjo da caridade; adoçar os infortúnios da indigência e
preparar cidadãos para a pátria, que missão!
Cresce o número das associações de caridade, e as principais
organizadas são compostas de senhoras, que, no meio da abastança,
não se esquecem de que há mães de família, a quem a fortuna não
favorece com esses dons que permitem as primeiras os gozos e os
cômodos da vida. Essas fazem grossa coleta de donativos, e, sem
temer empoeirar o sapato de cetim no lar do pobre, vão repartir aos
famintos o pão da subsistência que a indigência lhes negou.
A “Associação de Caridade das Senhoras” e a “Congregação de Santa
Thereza de Jesus” merecem os mais sinceros encômios pelos fins
santos a que se propõem. Se há glória verdadeiramente real e
verdadeiramente cristã, é essa.
Ao lado do concerto que deu no Cassino a “Associação das
Senhoras”, chamaram a atenção dos “dilettanti”, nestes últimos dias,
os espetáculos líricos da companhia italiana, que nos deu Ernani e
Favorita.
Tive ocasião, nos meus últimos comentários, de falar em Thereza
Parodi e seus companheiros. Acabava de ouvir a Norma, e trazia no
espírito as impressões recebidas pela execução da famosa partitura
de Bellini. A representação de Ernani confirmou-me na primeira
opinião, ou mais, deu-me melhor opinião.
Nessa peça Thereza Parodi ostentou os mesmos esplendores de seu
talento, que já haviam dado ao papel de sacerdotisa gaulesa o cunho
das belas criações, na “cavatina” do primeiro ato, e no “terceto” do
terceiro, sobretudo, seus belos dotes de canto e de arte forma
empregados de um modo, não a satisfazer, mas entusiasmar a
platéia.
Dizem que Thereza Parodi ouviu cantar a Norma à Pasta, de quem
recebeu proveitosas lições. O fato é que o mesmo juízo feito pelos
críticos eminentes à célebre cantarina podem ser aplicados a Thereza
Parodi, guardadas as respectivas distâncias. Nesta, como naquela, 
cantora descora diante da trágica; ambas deram à sua arte esse tom
dramático que é o caráter da escola clássica, em ambas se encontra
esse culto inteligente da plasticidade, de que fala Blaze de Bury a
respeito da primeira.
Vendo e ouvindo Thereza Parodi, nós, que tivemos duas brilhantes
amostras da grande escola em Stolz e De-Lagrange, apreciamos e
dispensamos àquela artista os aplausos com que, honra de um
público inteligente, a arte, a grande arte, a verdadeira arte, costuma
ser festejada.
Depois de Ernani e de Norma foi anunciada a Favorita. As palmas
com que ao terminar a execução da ópera de Donizetti foi Thereza
Parodi chamada à cena, foram à manifestação de um público que,
sem cuidar de comparações, mostrou apreciar o talento, que, sem
pregão nem motim, veio receber no fundo da América uma
confirmação ao batismo que recebera na Europa.
Os outros artistas, à parte alguns senões, satisfizeram o público, com
especialidade o Sr. Walter.
Dizem que a gente experimenta uma certa mudança moral de sete
em sete anos. Consultando a minha idade, vejo que se confirma em
mim a crença popular, e que eu entrei ultimamente no período lírico.
É isso o que explica hoje a minha preferência pelas representações
deste gênero, e que me fazem adepto fervente da música. Como se
vê, não me devo em parte lastimar, porque com esta mudança
coincidiu o movimento lírico, que se vai observando na atualidade.
Oxalá que, a par do bom que se me dá no velho Provisório,
figurassem sempre os coros. Diz Alexandre Dumas que para os
ouvidos se fizeram “Guilherme Tell”, os pianos de Erard e as trompas
de Sax; evidentemente não se fizeram também os coros do teatro
lírico, pelo menos se tratando de ouvidos bem educados. Há ocasiões
em que é preciso muito boa vontade para ouvi-los à sangue frio.
Uma novidade dramática aguarda o público: um novo drama do
Dr.Achilles Varejão, autor da Época. Como estas coisas não são
secretas, e mais ou menos transparecem, pela louvável indiscrição
dos que, conhecendo uma peça, não se eximem de antecipar a
opinião, fazendo o seu juízo, direi que não tenho ouvido a respeito
da “Resignação” senão palavras de louvor e de ardente aplauso. 
É uma composição escrita nesse tom familiar, que tornam notáveis
muita das composições modernas. Deve subir a cena esta semana;

nos meus próximos “Comentários” farei detalhada análise.

Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.
Publicado originalmente o Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, de 01/11/1861 a
05/05/1862.

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