21 DE NOVEMBRO DE 1861.
Cavaco — Caridade — Thereza Parodi — Coros do teatro lírico
— A “Resignação”.
Ó
pachorra ! Tu és a Circe mais feiticeira que conheço contra quem
não
valem todas as advertências de duas Minervas juntas! Adormeci
em teu
seio, «amiga velha», como te chamava aquele dom Filinto,
que,
além desse, tinha outro ponto de contato comigo, na predileção
pelas
trouxas de ovos; adormeci, digo eu, em teu seio, deixei passar
a
semana sem vir dizer em letra redonda o que pensava das
ocorrências
delas.
Não
faltou, porém, quem se encarregasse de comentar, como eu,
e com um
brilho de que não é capaz um escritor novel, ou já por
crônica,
ou já a propósito de música e de caridade.
E de
música foram últimos dias. De tudo o mais, porém, passou
estéril
a semana. Música nos teatros, música nos concertos, por
caridade
e por prazer.
Pretende
Eugênio Pelletan que a mulher, com o andar dos tempos,
há de
vir a exercer no mundo um papel político. Sem entrar na
investigação
filosófica da profecia, a que dá uma tal ou qual razão
a existência
de certas mulheres da sociedade grega e da sociedade
francesa,
eu direi que é esse um fato que eu desejava ver realizado,
em
maior plenitude do que pensa o autor da “Profession de foi”.
Eu quisera
uma nação, onde a organização política e administrativa
parasse
nas mãos do sexo amável, onde, desde a chave dos poderes
até o
último lugar de amanuense, tudo fosse ocupado por essa
formosa
metade da humanidade. O sistema político seria eletivo.
Abeleza
e o espírito seriam as qualidades requeridas para os altos
cargos
do Estado, e aos homens competiria exclusivamente o direito
de
votar.
Que
fantasia! Mas, enquanto esperamos a realização dessa linda
quimera,
à mulher cabem outros papéis, que, se não satisfazem à
inspiração
de um humorista, podem contentar plenamente o espírito
de um
filósofo e de um cristão. É, por exemplo, o da mãe de família
e o do
anjo da caridade; adoçar os infortúnios da indigência e
preparar
cidadãos para a pátria, que missão!
Cresce
o número das associações de caridade, e as principais
organizadas
são compostas de senhoras, que, no meio da abastança,
não se
esquecem de que há mães de família, a quem a fortuna não
favorece
com esses dons que permitem as primeiras os gozos e os
cômodos
da vida. Essas fazem grossa coleta de donativos, e, sem
temer
empoeirar o sapato de cetim no lar do pobre, vão repartir aos
famintos
o pão da subsistência que a indigência lhes negou.
A
“Associação de Caridade das Senhoras” e a “Congregação de Santa
Thereza
de Jesus” merecem os mais sinceros encômios pelos fins
santos
a que se propõem. Se há glória verdadeiramente real e
verdadeiramente
cristã, é essa.
Ao lado
do concerto que deu no Cassino a “Associação das
Senhoras”,
chamaram a atenção dos “dilettanti”, nestes últimos dias,
os
espetáculos líricos da companhia italiana, que nos deu Ernani e
Favorita.
Tive
ocasião, nos meus últimos comentários, de falar em Thereza
Parodi
e seus companheiros. Acabava de ouvir a Norma, e trazia no
espírito
as impressões recebidas pela execução da famosa partitura
de
Bellini. A representação de Ernani confirmou-me na primeira
opinião,
ou mais, deu-me melhor opinião.
Nessa
peça Thereza Parodi ostentou os mesmos esplendores de seu
talento,
que já haviam dado ao papel de sacerdotisa gaulesa o cunho
das
belas criações, na “cavatina” do primeiro ato, e no “terceto” do
terceiro,
sobretudo, seus belos dotes de canto e de arte forma
empregados
de um modo, não a satisfazer, mas entusiasmar a
platéia.
Dizem
que Thereza Parodi ouviu cantar a Norma à Pasta, de quem
recebeu
proveitosas lições. O fato é que o mesmo juízo feito pelos
críticos
eminentes à célebre cantarina podem ser aplicados a Thereza
Parodi,
guardadas as respectivas distâncias. Nesta, como naquela,
a cantora
descora diante da trágica; ambas deram à sua arte esse tom
dramático
que é o caráter da escola clássica, em ambas se encontra
esse
culto inteligente da plasticidade, de que fala Blaze de Bury a
respeito
da primeira.
Vendo e
ouvindo Thereza Parodi, nós, que tivemos duas brilhantes
amostras
da grande escola em Stolz e De-Lagrange, apreciamos e
dispensamos
àquela artista os aplausos com que, honra de um
público
inteligente, a arte, a grande arte, a verdadeira arte, costuma
ser
festejada.
Depois
de Ernani e de Norma foi anunciada a Favorita. As palmas
com que
ao terminar a execução da ópera de Donizetti foi Thereza
Parodi
chamada à cena, foram à manifestação de um público que,
sem
cuidar de comparações, mostrou apreciar o talento, que, sem
pregão
nem motim, veio receber no fundo da América uma
confirmação
ao batismo que recebera na Europa.
Os
outros artistas, à parte alguns senões, satisfizeram o público, com
especialidade
o Sr. Walter.
Dizem
que a gente experimenta uma certa mudança moral de sete
em sete
anos. Consultando a minha idade, vejo que se confirma em
mim a
crença popular, e que eu entrei ultimamente no período lírico.
É isso
o que explica hoje a minha preferência pelas representações
deste
gênero, e que me fazem adepto fervente da música. Como se
vê, não
me devo em parte lastimar, porque com esta mudança
coincidiu
o movimento lírico, que se vai observando na atualidade.
Oxalá
que, a par do bom que se me dá no velho Provisório,
figurassem
sempre os coros. Diz Alexandre Dumas que para os
ouvidos
se fizeram “Guilherme Tell”, os pianos de Erard e as trompas
de Sax;
evidentemente não se fizeram também os coros do teatro
lírico,
pelo menos se tratando de ouvidos bem educados. Há ocasiões
em que
é preciso muito boa vontade para ouvi-los à sangue frio.
Uma
novidade dramática aguarda o público: um novo drama do
Dr.Achilles
Varejão, autor da Época. Como estas coisas não são
secretas,
e mais ou menos transparecem, pela louvável indiscrição
dos
que, conhecendo uma peça, não se eximem de antecipar a
opinião,
fazendo o seu juízo, direi que não tenho ouvido a respeito
da “Resignação”
senão palavras de louvor e de ardente aplauso.
É uma
composição escrita nesse tom familiar, que tornam notáveis
muita
das composições modernas. Deve subir a cena esta semana;
nos
meus próximos “Comentários” farei detalhada análise.
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de
Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.
Publicado
originalmente o Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, de 01/11/1861
a
05/05/1862.
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