ÍNDICE:
CAPÍTULO
PRIMEIRO
CAPÍTULO
II
CAPÍTULO
III
CAPÍTULO
IV
CAPÍTULO
PRIMEIRO
DE
UMA IDÉIA MIRÍFICA
Conta
um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar
uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado
com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras,
sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes
divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular.
Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de
combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
—
Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário
contra breviário.
Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas,
novenas e todo o demais aparelho eclesiástico.
O meu credo será o núcleo universal
dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto
as
outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei
diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só
um de negar tudo.
Dizendo
isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico
e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar lhe
a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança,
e disse
consigo:
— Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo
que
abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito
azul.
CAPÍTULO
II
ENTRE
DEUS E O DIABO:
Deus
recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam
o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada
com os olhos no Senhor.
—
Que me queres tu? perguntou este.
—
Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos
do século e dos séculos.
—
Explica-te.
—
Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse
bom
velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes
o
recebam com os mais divinos coros...
—
Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
—
Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que
o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar
uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estoucansado da
minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de
obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade,
para que
me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
—
Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
—
Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres.
Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal
exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
—
Vai.
— Quereis
que venha anunciar-vos o remate da obra?
—
Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da
tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?
O
Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito,
algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve
instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso,
e disse:
—
Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes,
filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de
veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa
franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda
pura...
—
Velho retórico! murmurou o Senhor.
—
Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem
as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços
cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção
entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença, ao
menos, — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que
liberalmente
espalha, — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas
matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas
miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade,
nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma
comenda...
Vou a negócios mais altos...
Nisto
os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram
no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
—
Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe
o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas
do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para
renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas
legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo
ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
—
Já vos disse que não.
—
Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio,
ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que
se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade.
Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de
algodão?
—
Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
—
Negas esta morte?
—
Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros,
para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
—
Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as
virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai! Debalde
o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins,
a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo
sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio,
caiu
na terra.
CAPÍTULO
III
A
BOA NOVA AOS HOMENS
Uma
vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula
beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova
e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Eleprometia
aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites
mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar
a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito
contavam as velhas beatas.
—
Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos,
terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza,
a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede me
gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado
para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo,
tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era
assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes,
congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que
vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca
de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da
forma,
era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada. Clamava
ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as
naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim
também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com
a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor
defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada:
"Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da
gula,
que
produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude
tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias;
foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões
de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude,
quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares,
em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua
parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela
vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com
o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que
era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que
chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As
turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes
de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo
amar as perversas e detestar as sãs.
Nada
mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe
o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos
homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos;
não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a
todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda,
foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um
monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito
superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato,
o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em
todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto,
a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria
consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório.
Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender
uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue
e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção
moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou
em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou
ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um
direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia,
isto é, merecer duplicadamente.
E
descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão
das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente
a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária,
ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão
imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário,
pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram
condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal;
salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção
foi
logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em
simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para
rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade
humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova
instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas
e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença;
em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de
que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles,
aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo
regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese
em que
ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias,
porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa
mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem
que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas,
o Diabo recorreu a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um banco,
para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos
seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro
da sabedoria.
CAPÍTULO
IV
FRANJAS
E FRANJAS
A
previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em
franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham
alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou
a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma
região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça
que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um
dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas,
praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente,
mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se
a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em
dias
de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas;
vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos
falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo
rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
A
descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu
que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista
do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto
das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão
de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada
de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali
roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo
de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita
muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente
o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de
cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na
campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava
a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem,
não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados.
Tendo
angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele,
numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações
secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal
pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não
se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir
do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao
céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno.
Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o
repreendeu,
não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:
—
Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda,
como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição
humana.
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