"Meus príncipes. As
gentes desses navios de guerra ingleses; que por teima estão aí fundeados em
Yokohama, pedem-nos contas pela morte de alguns de seus compatriotas
assassinados em nosso país, e como satisfação querem não sei quais e quantas
coisas, de que nem vale a pena tratar, porque nenhuma delas sem dúvida lhes
será concedida. Mas, como a formal e desprezível recusa há de dar em resultado
a guerra imediata, preparai- vos para ela com ânimo seguro. De minha própria
mão vos envio Eu, Micado, este aviso para que estejais prontos no primeiro
momento. A campanha será aberta por mim em pessoa."
O que há de mais notável
neste ato é o modo pelo qual o Imperador já se dirige diretamente aos daimos, a
quem chama "Meus Príncipes", pondo assim inteiramente de lado a
autoridade shogunal. E não pára aí a inesperada ação do ex-fantasma de Kioto:
calculando este que o astucioso Shogun lhe poderia destruir a obra tão bem
começada, trata de isolá-lo dos ministros estrangeiros e de evitar que entre
eles se tramem novas maquinações contra os seus planos; manda chamá-lo com a
máxima urgência, dizendo-lhe que lhe precisa fazer em segredo de Estado
importantíssimas revelações. Iyemochi cai no laço e vai a Kioto. Declara-lhe o
Micado, em confidência íntima, achar-se o país em crise, e que pois a capital
do Imperador e os seus arredores devem ser defendidos pelas forças permanentes
do Estado confiadas ao Shogun; e que decidida como está a expulsão dos
estrangeiros, haverá guerra provavelmente e daí negociações e ajustes a fazer
pelo competente Poder Executivo debaixo das vistas do Chefe da Nação; o que só
pode ter lugar no porto de Osaka por ser o mais próximo da Corte Imperial
(trinta e poucas milhas de distância); e mais que, declarada a guerra,
competirá ao Shogun assumir o comando geral das forças e entrar logo em ação.
E, depois de uma pausa, em
que o silêncio foi absoluto, o Micado acrescentou, franzindo levemente as
sobrancelhas:
— Será essa ocasião, meu
jovem Shogun, a de melhor patenteardes a lealdade devida ao vosso Imperador e
de pordes em relevo a vossa dedicação pela causa pública, usando daquela mesma
energia e veemência com que repelistes à mão armada o miserável bando de
maltrapilhos e famintos que vos foi importunar em Yedo!
Iyemochi fingiu não compreender e disse com um meio sorriso:
— Mas... tenho então de abandonar o governo do país? ... Parece-me
que...
- Não vos dê isso cuidado, príncipe, atalhou o
Imperador, far-vos-ei substituir durante a guerra por pessoa competente. Cumpra
cada qual o seu dever observando as minhas ordens e o resto ficará por minha
conta, que também saberei cumprir com o meu. Na ocasião solene de assumirdes o
comando das armas, confiar-vos-ei, de mão a mão, a mesma sacrossanta espada que
o imortal fundador da vossa dinastia recebeu diretamente das divinas mãos do
meu antepassado Goyo Zei, quando tiveram que repelir, em condições talvez
piores que as de hoje, a primeira invasão ousada pelos bárbaros do Ocidente
nesta nossa terra tão bem fechada dentro das "Cem Leis" por Tokugawa
Ieiás, e a qual os descendentes deste pretendem agora abrir à cobiça e à
sensualidade dos nossos inimigos! (Iyemochi tossiu sem levantar os olhos.)
Aprontai-vos para a guerra seguro da vitória, Tokugawa Iyemochi! Hão de
chegar-vos à boca o peixe e o sakê do
triunfo! Com a espada de Goyo Zei não podereis sair senão vencedor; além de
que, é minha intenção ajudar-vos pelo meu lado, suplicando ao poderoso espírito
de meus avós que lá das sublimes alturas vos proteja diretamente na patriótica
expedição. Confiai nisso! e ficareis satisfeito comigo, suponho eu, pois creio
não ter regateado convosco as minhas graças.
Iyemochi curvou-se até poder olhar pela frente
os seus próprios joelhos e respondeu:
— Satisfeitíssimo, Imperial
Senhor! Longe de haverdes regateado as vossas mercês, confundistes o meu cabal
imerecimento com tanta prodigalidade. Vou daqui, sem perda de um instante, dar
todas as providências para que as vossas sagradas ordens sejam cumpridas à
risca... Parto imediatamente para Yedo e...
— Não! contrapôs o
Imperador. Convém aos interesses do Estado que vos quedeis em Kioto; dar-vos-ei
parte quando for oportuno o tomardes à vossa capital. Por enquanto vos deterei
amigavelmente ao meu lado e, para que nada vos falte aqui, vou mandar pôr à
vosas disposição os domésticos de que houverdes mister e, além das gueichas e
menestréis mais escolhidos do meu kókio (harém), uma guarda de honra na altura
da vossa condição.
O Shogun baixou a cabeça
sem responder palavra. Estava prisioneiro. O coração naturalmente lhe estalava
de cólera, mas na sua fisionomia não transluziu dela o menor vislumbre, porque
não era debalde que os chins durante muitos séculos tinham ensinado ao Japonês
o segredo da inalterável compostura do gesto, a fria ciência búdica de governar
com a vontade a expressão do rosto no meio das mais fortes comoções morais,
anestesiando os nervos condutores e impedindo-lhes levarem ao semblante nem a
menos lúcida centelha do oculto incêndio, tapando a tempestade interior com uma
indecifrável máscara de cadáver; triste e amarela ciência que é bem da Ásia, e
que só poderia ter sido refinada a tal extremo por uma raça velha, impassível e
hipócrita como a raça chinesa.
Foi com o mais fino e
perfeito sorriso nos lábios e com a mais airosa reverência que o galante chefe
dos Tokugawas se afastou do seu carcereiro, a recolher aos principescos
aposentos de papel de seda que lhe haviam destinado no chiro imperial.
E aqui tem o leitor como
conseguiu o Micado fechar na mão a influência do Shogun. Produziu logo o fato
grande escândalo nos paços de Sua Majestade; ninguém atinava como poderia
funcionar daí em diante a administração pública, pois que o Imperador não
haveria de ser ao mesmo tempo poder deliberativo e poder executivo. Qual então
seria agora o seu intermediário para com os daimos, se o chefe dos príncipes
ficava preso em Kioto? Iria o Monarca chamar à alçada do Trono as Cortes
Shogunais de Yedo? Mas isso, — que lhes valesse Amateras! — daria uma balbúrdia
de todos os diabos! rosnavam entre si, perplexos e formigantes os cortesãos
imperiais, que nada entendiam de administração e viam periclitar muito a sério
o seu doce e defumado ócio.
Entretanto
Komei, sem consultar nenhum dos seus Conselhos, nomeia o prestigioso Owari para
substituir em Yedo o Shogun durante a guerra; encarrega Nabeschima, daimo com
direito à sua inteira confiança, de defender militarmente a vasta bacia de
Kuanto, onde se acha aquela capital, e entrega ao príncipe de Hizen, de quem já
conhece a lealdade, a direção das forças marítimas que devem proteger as duas
baías de Suruga e Sagami e as costas da península de Izo. E a todos os daimos,
cujos principados confinem com o litoral, ordena que se recolham às competentes
províncias e que se provenham para a guerra.
Quanto à indenização inglesa, nada, nem a mais
ligeira referência nos seus atos oficiais; apenas, entre as instruções secretas
dadas a Owari, no momento da partida deste, recomenda-lhe que, a todas as
perguntas do Ministro inglês sobre o caso, vá respondendo sempre que o Shogun,
em razão de interesse público e ordem direta do Imperador, se acha, por tempo
indeterminado, ausente da sua capital, e que só ele pessoalmente pode dizer
qualquer coisa sobre o assunto, pois foi o Shogunato quem, lá por conta
própria; engendrou essa pantominice dos tratados, da qual, como contrária que é
às leis do pais, não cogita o Chefe da Nação, nem está disposto a cogitar; e
mais que, se os ingleses impugnassem tais razões com ofensas graves, então
prendesse o Ministro e todos os mais que pudesse da mesma nacionalidade,
facultando-lhe todavia os meios de comunicarem à sua esquadra que serão
irrevogavelmente enforcados na praia à primeira manifestação hostil partida de
bordo para a terra.
Nada disso porém chegou a
acontecer. Terminado o prazo dos vinte dias, quando a Nação, já disposta para a
guerra, contava que o Almirante Kuper resolvesse lançar mão das tais medidas
coercivas com que o Ministro a ameaçara, eis que este, à vista da ausência do
Shogun, oferece um novo prazo de igual tamanho, e depois ainda outro, que
naturalmente não seria o último, se um fato decisivo ocorrido em Yokohama, onde
havia então o único settlement
existente no Império, não viesse de modo imprevisto torcer o rumo da questão.
É que, enquanto no litoral se
armavam as fortalezas e no interior as eminências das montanhas, e enquanto os
Tokugawas, tendo à frente os príncipes Aidzu, Ongasawa e Joren In, recorriam a
todos os meios para libertar o seu chefe das mãos do Imperador, começava em
Yokohama a formar-se o vácuo em volta dos estrangeiros que aí residiam, em
número maior do que era de esperar da má vontade dos donos da terra. Sem causa
apreciável, sem nenhuma justificativa, nem o menor comentário, organizava-se,
pela calada e metodicamente, a emigração do elemento indígena, de uma à outra
ponta do settlement.
Que significaria isso?...
Que novidade haveria?... Ninguém o explicava, e, um atrás do outro, lá se iam
esgueirando os empregados do comércio e os serventes domésticos naturais do
país, alguns até abandonando o saldo a receber, sem nenhum deles declarar ao
patrão porque deixava o serviço, nem para onde se punha. Qual seria o motivo de
tão estranha greve? Os operários largavam a obra ao meio, perdendo o que estava
feito; desmanchavam-se ajustes vantajosos; retiravam-se compromissos e
palavras; fechavam- se casas comerciais e particulares depois de absolutamente
esvaziadas; cambistas, negociantes, corretores, bufarinheiros, kurumaias,
kulis, todos enfim que constituíam o elemento nacional no settlement, desertavam silenciosamente, sem mostras de
ressentimento, nem tristeza, carregados de trouxas e com a filharada às costas.
Afinal, um ou outro retardatário, preso por interesses de alta monta, liquidava
às pressas, sem olhar prejuízo, as últimas transações e, já com as bagagens e a
carroça ou o barco à espera, despedia-se para sempre.
E então?
Os europeus, a olharem de
boca aberta uns para os outros, sem atinar nenhum com a razão daquele súbito
abandono, viram-se reduzidos aos seus recursos pessoais, porque já não havia
quem os servisse; muito gentleman
teve que escovar as próprias botas, e muita Iady
que pôr o
avental de cozinheira; e
começaram logo a imaginar em iminência toda a sorte de perigos, acabando, como
era natural, por apoderar-se deles o pânico, que ao fim de alguns dias tomava
já as proporções de intolerável angústia.
E no meio desse sobressalto
terrível, dessa expectação de uma desgraça que ninguém explicava, ou cada qual
explicava a seu modo para maior ansiedade e desespero de todos, no meio dessa
incógnita calamidade que ia rebentar sem se saber donde, nem quando, começaram
a chegar, como um sopro de morte, as primeiras notícias de que as forças
japonesas já se mobilizavam ganhando os litorais; que o Imperador havia marcado
o dia definitivo para a expulsa-o dos estrangeiros, e que o "Bando dos
Roninos", como chamavam eles aos agitados nativistas, já em fúria descia a
estrada do Tokaido na direção de Yokohama para invadir e saquear.
Os ingleses, que eram os mais de perto ligados
ao instante desastre e eram também os mais afligidos pelo terror, foram
agarrar-se ao seu Ministro pedindo-lhe garantias de vida e de propriedade.
Houve reunião de diplomatas, conselhos de autoridades navais, de chefes de
corporação e companhias; trocaram-se notas entre as diversas legações
presentes; e afinal o Ministro inglês comunica oficialmente aos seus
compatriotas que "As forças reunidas nas águas japonesas sob o comando em
chefe do Almirante Kuper não eram suficientes para proteger a colônia, garantir
a existência e os bens dos súditos de Sua Majestade Britânica, residente no settlement de Yokohama, e que por
conseguinte convidava os mesmos a tomarem até o dia 26 desse mês (julho de 1863) as medidas que lhes parecessem
necessárias para se porem ao abrigo da guerra marcada para aquela data."
E esta?'
Foi pior que uma bomba
explosiva tão inopinado ultimatum da
Chancelaria inglesa, caindo em cheio sobre a ávida e orgulhosa colônia, cujos
membros, justamente nesses dois últimos anos, tinham em grande número feito vir
da Europa as competentes famílias para junto de si. E semelhante confissão de
fraqueza por parte dos enviados oficiais da mais forte Potência marítima que
ali se achava, punha, nem só os ingleses, mas todos os estrangeiros de
Yokohama, em estreitíssimo apuro: se a Grã-Bretanha não podia proteger os seus
súditos quanto mais os outros Estados!
E para onde diabo queria o
Ministro inglês que fugissem os seus compatriotas? Para onde, se de um lado
estavam as forças japonesas, aos milhares e assanhadas de ódio; e do outro o
Oceano, sem um só navio que os abrigasse, pois os existentes eram todos
indispensáveis para o combate? E como os ingleses, os mais se encheram de pavor;
holandeses, russos, alemães, norte-americanos e franceses viam-se já
encurralados no estreito setilement,
com suas famílias e seus haveres, dentro de um círculo de fogo, exterminados
até o último por uma guerra feroz e bárbara, feita a ponta de azagaia e bombas
incendiárias como usavam os japoneses.
A agonia foi terrível. A cada momento contavam
com o ataque do bando assolador. Então, nem era de esperar menos de tão
superiores raças, acudiu ao alto espírito de todos os representantes
estrangeiros as idéias filantrópicas e os deveres morais da civilização. Foram
lembradas, na ardente eloqüência dos momentos críticos, todas as conquistas
humanitárias feitas até esse ponto do nosso século de luz pelo
Internacionalismo liberal e triunfante! "Para que a guerra? — pergunta
oficialmente o Coronel Neale, em nome de todos os diplomatas residentes em
Yokohama, no seu longo Manifesto de 19 de julho de 1863 dirigido ao Governador
de Kanagawa e daquela cidade. — Para que a guerra, se o fim da Europa no
formoso Oriente é a confraternização e a paz? Em vez de lutarmos, melhor será
que nos entendamos e que nos amemos. O que por si impõe antes de mais nada,
como indeclinável necessidade do progresso humano, é que o nobre, o corajoso
Povo Japonês, a tantos títulos obrigado
moralmente a compreender as nossas boas intenções, resolva por uma vez
abandonar essa idéia de má vontade e resistência contra os povos amigos, contra
os seus irmãos do Ocidente, que o procuram para a consorciação universal, e nos
abra os braços e nos receba como nós outros em nossos países fazemos, nem só
com os japoneses, mas com todo e qualquer indivíduo proveniente seja de que
nação for."
O manifesto em
que vinha este tópico de requentada ternura produziu o seu efeito, graças aos
Tokugawas que trabalhavam ativamente contra a guerra. Desceu logo de Yedo uma
Embaixada presidida pelo transator Sakai Ukio, ministro do Shogun e amigo dos
estrangeiros, com o qual chegaram os ingleses à fala e logo entraram a negociar
as pazes, ficando inteiramente de parte a pendência da indenização.
Entre os
nativistas porém o efeito do manifesto foi bem diverso. Um deles chegou a
litografar um violento libelo que fez espalhar por Yokohama e no qual, entre
muitas coisas, dizia:
"Com que então esse
Colosso Europeu, esse roncador atrevido, até aqui tão arrogante nas suas
indevidas reclamações, encolhe -se agora diante do perigo, porque, diz ele,
receia lhe matem a mulher e os filhos?! Mas não foi o perigo que os foi buscar
à casa; foram eles que vieram buscar o perigo à casa alheia! Que se agüentem!
se lhes é duro o transe, mais dura é a pedra em que a sua audácia nos converteu
o coração! Tremem pela mulher, os filhos; e nós? nós acaso não teremos também
família, que vivia feliz e tranqüila ao nosso lado, e agora se vê, talvez para
sempre, privada do seu chefe que, em vez de cuidar dela; anda à aventura das
armas para defender a outra sua família maior, que é a pátria?! Que é feito das
tais medidas coercivas do famoso Almirante Kuper? Pois então, apesar de todo
esse espetaculoso aparato de força; apesar dessas numerosas máquinas de guerra
contra as quais só temos para opor o nosso brio nacional; apesar da tão
celebrada ciência e tão decantada coragem desses orgulhos donos dos mares
alheios; apesar dessas dragonas de ouro e desses chapéus de pluma que fizeram
rebentar de medo o Imperador da China nas profundezas empedradas de Pekin;
pois, apesar de tudo isso, nós, os japoneses, esparsos e mal disciplinados, sem
outra arte na guerra mais do que a luta corpo a corpo e sem outra força além da
própria coragem e da convicção patriótica, por tal modo os aterramos que, à
primeira notícia de um ataque eventual, declaram-se impotentes para defender o
território cinicamente ocupado contra a vontade do dono, e escondem-se atrás
das saias da família, a pedir pazes com fementidas palavras de ternura?! Para
que então gritaram tão alto?! Por que nos ofenderam, se não tinham coração para
resistir?! Não! Nós, como o nosso Imperador, não queremos a paz, nem queremos
amizade com estrangeiros! Guardem eles para si a sua civilização e os seus
progressos e com eles se fartem para longe de que lhos não pediu! Resistiremos
até o fim! Se os degenerados Tokugawas conseguirem reter os Daimos, não
conseguirão jamais reter o nosso ódio mortal e a enorme sede de vingança que
nos devora; e nós, que já não temos outro chefe, além dos deuses e do Micado,
havemos de tapar com terra a boca que nos insultou!"
Quando subiu ao
conhecimento do Imperador a proposta de paz, fez ele logo enviar, como
resposta, a todos os representantes diplomáticos estrangeiros as seguintes
singelíssimas palavras:
"Meu Povo
não quer relações com estrangeiros. A cada momento a gente do país está matando
ou está com vontade de matar ingleses, e a Inglaterra quer que se pague. O meu
Governo fez já quanto pôde a ver se as coisas se acomodavam, nada porém
conseguiu, nem conseguirá, em razão do entranhado ódio do meu Povo pelos
estrangeiros; ódio que aperta de dia para dia que nem o sol do mês de agosto.
Assim resolvi fechar definitivamente os portos e convidar por bem os
estrangeiros a que se retirem do país para evitar novas questões."
Enquanto
o Micado procedia deste modo, tão franco, tão superior e tão singelo, o
Ministro inglês, de mãos dadas ao da França, obtinham ambos corresponder-se com
o Shogun e, aproveitando a falsa posição política em que se achava este perante
o Imperador e perante o povo, de um prisioneiro e do outro desprezado,
propunham-lhe secretamente uma aliança ofensiva e defensiva, comprometendo-se a
auxiliá-lo com as forças navais de que dispunham, caso ele quisesse readquirir
o alto poder que lhe havia escapado das mãos.
Este fato não precisa
comentários; basta dizer que é um caso histórico corrente em todas as crônicas
japonesas, mas que nenhum europeu ou norte-americano o narra de modo claro e
positivo nos seus livros. Compreende-se
que aos estrangeiros não conviesse de maneira alguma o aniquilamento do Shogun,
principalmente depois que o Imperador declarara não cogitar dos tratados lá
entre eles feitos; compreende-se ainda que, conhecendo aqueles um pouco melhor
agora o mecanismo da política japonesa e reconhecendo ter pisado em falso,
quisessem a todo custo salvar de modo airoso a própria situação; mas o que se
não compreende é que essa gente civilizada não tivesse um pouco de consciência
ou de escrúpulo em urdir o mal, que estava a tramar contra a paz e os direitos
desse pobre povo, a quem pediam pazes em nome da filantropia e do amor
universal. Positivamente tinham os japoneses razão em chamar-lhes bárbaros! E note-se
que, se por um lado os diplomatas estrangeiros se mostravam desumanos, por
outro se revelavam inábeis, porque pretender destronar o Micado era pisar muito
mais em falso ainda do que ter tomado o Shogun pelo Imperador do Japão como
fizeram na primeira descaída. Seria mais fácil arrasar o Fuji Yama ou
transladar para a Califórnia o Daibutsu, como diligenciaram os yankees na sua
impertinente megalomania, do que pôr abaixo o divino espectro de Kioto do
místico pedestal em que havia dois mil e duzentos anos imperava. Tentando
semelhante coisa, o que conseguiriam os estrangeiros havia de ser, e com efeito
foi, ensangüentar a presa que acossavam e agravar a desgraça dos Tokugawas, a
quem aliás deviam gratidão por serem esses no país a única força ativa que os
não desprezava, nem odiava. Verá depois o leitor em que espécie pagou o Inglês
aos descendentes de Ieiás essa excepcional proteção, sem a qual todavia não
teriam penetrado no sedutor arquipélago, senão depois de arrasá-lo com a sua
civilização de grande alcance forjada na universidade de Krupp.
O Shogun,
coitado! acolheu com as duas mãos a proposta que solicitamente lhe levavam os
dois civilizadores ministros; mas, ao aconchegá-la reconfortado ao peito,
picou-se logo num espinho que ia dentro dissimulado no embrulho, era o ultimatum da indenização.
E o que a isto
se seguiu é inacreditável. O Shogun que, apesar de tudo, dispunha ainda do
Tesouro público e era por si mesmo e sua família imensamente rico, entrou com o
Ministro inglês no seguinte acordo. Pagava as cento e cinqüenta e cinco mil
libras esterlinas, mais que fossem, porque a questão não era de dinheiro;
pagava, com uma condição porém — o Ministro inglês havia de comprometer-se, sob
palavra de honra, a guardar segredo, de modo que o fato não transpirasse dentro
do Japão e que jamais, em nenhuma hipótese, fosse sabido pelo Micado, nem pelo
povo.
O Inglês
aceitou. Pudera! E a indenização foi efetivamente paga em segredo, às quatro
horas da madrugada do dia 24 de agosto de 1863. O dinheiro foi levado à Legação
da Inglaterra em carretas de mão e dentro de cunhetas abarrotadas de muito boa
moeda de prata e ouro.
Vergonhas de parte a parte.
Ah! mas o Japão heróico e brioso não tinha morrido com a família Tokugawa.
Enquanto essas baixezas se mercadejavam no balcão da Chancelaria londrina com
um indigno descendente de Ieiás, o destemido Mori, o príncipe de Nagato, em
cujas veias corria o mesmo sangue de Mito, ao saber do ocorrido,. corre às
fortalezas do litoral, denuncia o revoltante caso e toca com os seus três
frágeis navios para as águas de Chimonoseki na entrada do Mar Interior, onde se
ostentavam vasos de guerra de todos os Estados ocidentais com pretensões no
Japão, e aí, cercado de seus samurais intransigentes e protegido pelas baterias
de terra, lavrou o protesto da honra nacional, cuspindo balas sobre aqueles, do
primeiro ao último, ao mesmo tempo, sem medir forças, nem escolher bandeiras.
Bombardeou o navio inglês Euryalus,
os franceses Kien-Chan, Tancrêde, os
norte-americanos Pembroke e Wyoming, o alemão Semiramis, e o holandês Medusa,
que ficou incendiado, a arder no meio daquelas águas profanadas, com a
triunfante pira do patriotismo, ali acesa por um raio vingador para iluminar a
eterna desafronta. Agora, que vencessem os estrangeiros! só venceriam já esbofeteados!
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