Quintanilha
engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os dois juntos, não que se
parecessem. Ao contrário, Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves
comprido, o primeiro era baixo e moreno, o
segundo
alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente. Acresce que
eram
quase da mesma idade. A idéia da paternidade nascia das maneiras com que o
primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais em carinhos, cautelas e
pensamentos.
Tinham
estudado juntos, morado juntos, e eram bacharéis do mesmo ano. Quintanilha não
seguiu advocacia nem magistratura, meteu-se na
política;
mas, eleito deputado provincial em 187..., cumpriu o prazo da legislatura e
abandonou a carreira. Herdara os bens de um tio, que lhe davam de renda cerca
de trinta contos de réis. Veio para o seu Gonçalves, que advogava no Rio de
Janeiro.
Posto
que abastado, moço, amigo do seu único amigo, não se pode
dizer
que Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vais ver. Ponho de lado o
desgosto que lhe trouxe a herança com o ódio dos parentes; tal ódio foi que ele
esteve prestes a abrir mão dela, e não o fez porque o amigo Gonçalves, que lhe
dava idéias e conselhos, o convenceu de que semelhante ato seria rematada
loucura.
-
Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros
parentes?
Não foi você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto, como os
outros. Se ele deixou tudo a você, é que o achou melhor que eles; fique-se com
a fortuna, que é a vontade do morto, e não seja tolo.
Quintanilha
acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram reconciliar-se com ele, mas o
amigo mostrou-lhe a intenção recôndita dos tais,
e
Quintanilha não lhes abriu a porta. Um desses, ao vê-lo ligado com o antigo
companheiro de estudos, bradava por toda a parte:
- Aí está, deixa os parentes para se
meter com estranhos; há de ver o fim que leva.
Ao
saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indignado. Gonçalves
sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não valia a pena irritar-se por
ditinhos.
- Uma só coisa desejo, continuou, é que
nos separemos, para que se não diga...
- Que se não diga o quê? Ë boa! Tinha
que ver, se eu passava a escolher as minhas amizades conforme o capricho de
alguns peraltas sem-vergonha!
- Não fale assim, Quintanilha. Você é
grosseiro com seus parentes.
- Parentes do diabo que os leve! Pois
eu hei de viver com as pessoas que me forem designadas por meia dúzia de velhacos
que o que querem é
comer-me
o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quiser, menos isso. Quem escolhe os
meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou você está... está aborrecido de mim?
- Eu? Tinha graça.
- Pois então?
- Mas é...
- Não é tal!
A
vida que viviam os dois, era a mais unida do mundo. Quintanilha acordava,
pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos, faziam alguma
visita, passeavam ou acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves tinha algum
trabalho que fazer à noite, Quintanilha ia ajudá-lo como obrigação; dava busca
aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava os
livros.
Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora uma carta, sapatos,
charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. As vezes, na rua do
Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos que deixara
no escritório. Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão contente
que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o
ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga.
- São estes?
- São; deixa ver, são estes mesmos. Dá
cá.
- Deixa, eu levo.
A
princípio, Gonçalves suspirava:
- Que maçada que dei a você!
Quintanilha
ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não
o molestar, não se acusou de mais nada;
concordou em receber os obséquios. Com o tempo, os obséquios ficaram sendo puro
ofício. Gonçalves dizia ao outro: "Você hoje há de lembrar-me isto e
aquilo." E o outro decorava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas.
Algumas dependiam de horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava aflito,
à espera que chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negócios
ao amigo. E levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as
pessoas, esperá-las na estrada de ferro, fazia viagens ao interior. De si mesmo
descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons espetáculos. Gonçalves já não
tinha liberdade de falar de um livro novo, ou somente caro, que não achasse um
exemplar em casa.
- Você é um perdulário, dizia-lhe em
tom repreensivo.
- Então gastar com letras e ciências é
botar fora? - boa! concluía o outro.
No
fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves acabou aceitando,
e o prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a Petrópolis. Na volta,
serra abaixo, como falassem de pintura, Quintanilha advertiu que não tinham
ainda uma tela com o retrato dos dois, e mandou fazê-la. Quando a levou ao
amigo, este não pôde deixar de lhe dizer que não prestava para nada.
Quintanilha ficou sem voz.
- É uma porcaria, insistiu Gonçalves.
- Pois o pintor disse-me...
- Você não entende de pintura,
Quintanilha, e o pintor aproveitou a ocasião para meter a espiga. Pois isto é
cara decente? Eu tenho este braço torto?
- Que ladrão!
- Não, ele não tem culpa, fez o seu
negócio; você é que não tem o sentimento da arte, nem prática, e espichou-se
redondamente. A intenção foi boa, creio...
- Sim, a intenção foi boa.
- E aposto que já pagou?
- Já.
Gonçalves
abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo. Quintanilha, vexado e
aborrecido, olhava para a tela, até que sacou de um canivete e rasgou-a de alto
a baixo. Como se não bastasse esse gesto de vingança, devolveu a pintura ao
artista com um bilhete em que lhe transmitiu alguns dos nomes recebidos e mais
o de asno. A vida tem muitas de tais pagas. Demais, uma letra de Gonçalves que
se venceu dali a dias e que este não pôde pagar, veio trazer ao espírito de
Quintanilha uma diversão. Quase brigaram; a idéia de Gonçalves era reformar a
letra; Quintanilha, que era o endossante, entendia não valer a pena pedir o
favor por tão escassa quantia (um conto e quinhentos), ele emprestaria o valor
da letra, e o outro que lhe pagasse, quando pudesse. Gonçalves não consentiu e
fez-se a reforma. Quando, ao fim dela, a situação se repetiu, o mais que este
admitiu foi aceitar uma letra de Quintanilha, com o mesmo juro.
- Você não vê que me envergonha,
Gonçalves? Pois eu hei de receber juro de você...?
- Ou recebe, ou não fazemos nada.
- Mas, meu querido...
Teve
que concordar. A união dos dois era tal que uma senhora
chamava-lhes
os "casadinhos de fresco", e um letrado, Pílades e Orestes. Eles
riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma coisa parecida com
lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida. Outra diferença é que o sentimento
de Quintanilha tinha uma nota de entusiasmo, que absolutamente
faltava
ao de Gonçalves; mas, entusiasmo não se inventa. É claro que
o segundo era mais capaz de inspirá-lo
ao primeiro do que este a ele. Em verdade, Quintanilha era mui sensível a
qualquer distinção; uma palavra, um olhar bastava a acender-lhe o cérebro. Uma
pancadinha no ombro ou no ventre, com o fim de aprová-lo ou só acentuar a
intimidade, era para derretê-lo de prazer. Contava o gesto e as circunstâncias
durante dois e três dias.
Não
era raro vê-lo irritar-se, teimar, descompor os outros. Também era comum vê-lo
rir-se; alguma vez o riso era universal, entornava-se-lhe da boca, dos olhos,
da testa, dos braços, das pernas, todo ele era um riso único. Sem ter paixões,
estava longe de ser apático.
A
letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo de seis meses. No dia do
vencimento, não só não pensou em cobrá-la, mas resolveu ir jantar a algum
arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado à reforma. Gonçalves
destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro. O primeiro gesto
de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o guardasse, podia precisar dele;
o devedor teimou em pagar e pagou.
Quintanilha
acompanhava os atos de Gonçalves; via a constância do
seu
trabalho, o zelo que ele punha na defesa das demandas, e vivia cheio de
admiração. Realmente, não era grande advogado, mas na medida das suas
habilitações, era distinto.
- Você por que não se casa?
perguntou-lhe um dia; um advogado precisa casar.
Gonçalves
respondia rindo. Tinha uma tia, única parenta, a quem ele queria muito, e que
lhe morreu, quando eles iam em trinta anos. Dias depois, dizia ao amigo:
- Agora só me resta você.
Quintanilha
sentiu os olhos molhados, e não achou que lhe respondesse. Quando se lembrou de
dizer que "iria até à morte" era tarde. Redobrou
então
de carinhos, e um dia acordou com a idéia de fazer testamento. Sem revelar nada
ao outro, nomeou-o testamenteiro e herdeiro universal.
- Guarde-me este papel, Gonçalves,
disse-lhe entregando o testamento. Sinto-me forte, mas a morte é fácil, e não
quero confiar a qualquer
pessoa
as minhas últimas vontades.
Foi
por esse tempo que sucedeu um caso que vou contar.
Quintanilha
tinha uma prima-segunda, Camila, moça de vinte e dois anos, modesta, educada e
bonita. Não era rica; o pai, João Bastos, era
guarda-livros
de uma casa de café. Haviam brigado por ocasião da herança; mas, Quintanilha
foi ao enterro da mulher de João Bastos, e este ato de piedade novamente os
ligou. João Bastos esqueceu facilmente alguns nomes crus que dissera do primo,
chamou-lhe outros nomes doces, e pediu-lhe que fosse jantar com ele.
Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o elogio da finada mulher; numa
ocasião em que Camila os deixou sós, João Bastos louvou as raras prendas da
filha, que afirmava haver recebido integralmente a herança moral da mãe.
-
Não direi isto nunca à pequena, nem você lhe diga nada. É modesta,
e,
se começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim, por exemplo, nunca lhe direi que
é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a idade dela; pode ficar vaidosa. Mas
a verdade é que é mais, não lhe parece? Tem ainda o talento de tocar piano, que
a mãe não possuía.
Quando
Camila voltou à sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade de
lhe
descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quis ouvi-la ao piano; ela
respondeu, cheia de melancolia:
-Ainda
não, há apenas um mês que mamãe faleceu, deixe passar mais tempo. Demais, eu
toco mal.
- Mal?
- Muito mal.
Quintanilha
tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou à moça que
a
prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo, era certo que
apenas passara um mês; todavia era também certo que a música era uma distração
natural e elevada. Além disso, bastava tocar um pedaço triste. João Bastos
aprovou este modo de ver e lembrou uma composição elegíaca.
Camila
abanou a cabeça.
- Não, não, sempre é tocar piano; os
vizinhos são capazes de inventar que eu toquei uma polca.
Quintanilha
achou graça e riu. Depois concordou e esperou que os três meses fossem
passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sendo as três últimas visitas mais
próximas e longas. Enfim, pôde ouvi-la tocar piano, e gostou. O pai confessou
que, ao princípio, não gostava muito daquelas músicas alemãs; com o tempo e o
costume achou-lhes sabor. Chamava à filha "a minha alemãzinha",
apelido que foi adotado por Quintanilha, apenas modificado para o plural:
"a nossa alemãzinha". Pronomes possessivos dão intimidade; dentro em
pouco, ela existia entre os três, - ou quatro, se contarmos Gonçalves, que ali
foi apresentado pelo amigo; - mas fiquemos nos três.
Que
ele é coisa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou gostando da
moça. Como não, se Camila tinha uns longos olhos mortais? Não é que os pousasse
muita vez nele, e, se o fazia, era com tal ou qual constrangimento, a
princípio, como as crianças que obedecem sem vontade
às
ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles eram tais que, ainda sem intenção,
feriam de morte. Também sorria com freqüência e falava com graça. Ao piano, e
por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em suma, Camila não faria obra de
impulso próprio, sem ser por isso menos feiticeira. Quintanilha descobriu um
dia de manhã que sonhara com ela a noite toda,
e
à noite que pensara nela todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava e era
amado. Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimi-lo nas folhas públicas.
Quando menos, quis dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu ao escritório deste. A
afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor. Quase a abrir a boca,
engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo nesse dia nem no outro.
Antes
dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a revelação por uma
semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de muitas hesitações,
disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.
- Você aprova, Gonçalves?
Gonçalves
empalideceu, - ou, pelo menos, ficou sério; nele a seriedade confundia-se com a
palidez. Mas, não; verdadeiramente ficou pálido.
- Aprova? repetiu Quintanilha.
Após
alguns segundos, Gonçalves ia abrir a boca para responder, mas fechou-a de
novo, e fitou os olhos "em ontem , como ele mesmo dizia de si, quando os
estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou em saber o que era, o que pensava,
se aquele amor era asneira. Estava tão acostumado a ouvir-lhe este vocábulo que
já lhe não doía nem afrontava, ainda em matéria tão melindrosa e pessoal.
Gonçalves tornou a si daquela meditação, sacudiu os ombros, com ar desenganado,
e murmurou esta palavra tão surdamente
que
o outro mal a pôde ouvir:
- Não me pergunte nada; faça o que
quiser.
- Gonçalves, que é isso? perguntou
Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado.
Gonçalves
soltou um grande suspiro, que, se tinha asas, ainda agora estará voando. Tal
foi, sem esta forma paradoxal, a impressão de Quintanilha. O relógio da sala de
jantar bateu oito horas, Gonçalves alegou que ia visitar um desembargador, e o
outro despediu-se.
Na
rua, Quintanilha parou atordoado. Não acabava de entender
aqueles
gestos, aquele suspiro, aquela palidez, todo o efeito misterioso da
notícia
dos seus amores. Entrara e falara, disposto a ouvir do outro um ou mais
daqueles epítetos costumados e amigos, idiota, crédulo, paspalhão, e não ouviu
nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma coisa que pegava com
o respeito. Não se lembrava de nada, ao jantar, que pudesse tê-lo ofendido; foi
só depois de lhe confiar o sentimento novo que trazia a respeito da prima que o
amigo ficou acabrunhado.
-
Mas, não pode ser, pensava ele; o que é que Camila tem que não possa ser boa
esposa?
Nisto
gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Advertiu então que
Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora, nada. Quis entrar
outra
vez, abraçá-lo, interrogá-lo... Não teve forças; enfiou pela rua fora,
desesperado. Chegou à casa de João Bastos, e não viu Camila; tinha-se
recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe tudo, e aqui é preciso
explicar que ele ainda não se havia declarado à prima. Os olhares da moça não
fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o lance não
podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passara com o
amigo, tinha o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai. Era
uma consolação no meio daquela agonia, o acaso negou-lha, e Quintanilha saiu da
casa, pior do que entrara. Recolheu-se à sua.
Não
dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso, senão para
agitação maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte
velha
e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu surgir debaixo um vulto e
fincar os pés defronte dele. Era Gonçalves. "Infame, disse este com os
olhos acesos, por que me vens tirar a noiva de meu coração, a mulher que eu amo
e é minha? Toma, toma logo o meu coração, é mais completo."
E
com um gesto rápido abriu o peito, arrancou o coração e meteu-lho na boca.
Quintanilha tentou pegar da víscera amiga e repô-la no peito de Gonçalves; foi
impossível. Os queixos acabaram por fechá-la. Quis cuspi-la, e foi pior; os
dentes cravaram-se no coração. Quis falar, mas vá alguém falar com a boca cheia
daquela maneira. Afinal o amigo ergueu os braços e estendeu-lhe as mãos com o
gesto de maldição que ele vira nos melodramas, em dias de rapaz; logo depois,
brotaram-lhe dos olhos duas imensas lágrimas, que encheram o vale de água,
atirou-se abaixo e desapareceu. Quintanilha acordou sufocado.
A
ilusão do pesadelo era tal que ele ainda levou as mãos à boca, para arrancar de
lá o coração do amigo. Achou a língua somente, esfregou os olhos e sentou-se.
Onde estava? Que era? E a ponte? E o Gonçalves? Voltou a si de todo,
compreendeu e novamente se deitou, para outra insônia, menor
que
a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas.
De
dia, rememorando toda a véspera, realidade e sonho, chegou à
conclusão
de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima dele, era talvez amado
por ela... Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas cruéis. Afinal
pegou em si e foi ao escritório de Gonçalves, para saber tudo de uma vez; e, se
fosse verdade, sim, se fosse verdade...
Gonçalves
redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fitá-lo
um
instante, erguer-se, abrir o armário de ferro, onde guardava os papéis graves,
tirar de lá o testamento de Quintanilha, e entregá-lo ao testador.
- Que é isto?
- Você vai mudar de estado, respondeu
Gonçalves, sentando-se à mesa.
Quintanilha
sentiu-lhe lágrimas na voz; assim lhe pareceu, ao menos. Pediu-lhe que
guardasse o testamento; era o seu depositário natural. Instou muito; só lhe
respondia o som áspero da pena correndo no papel. Não corria bem a pena, a
letra era tremida, as emendas mais numerosas que de costume, provavelmente as
datas erradas. A consulta dos livros era feita com tal melancolia que
entristecia o outro. As vezes, parava tudo, pena e consulta, para só ficar o
olhar fito "em ontem
- Entendo, disse Quintanilha
subitamente; ela será tua.
- Ela quem? quis perguntar Gonçalves,
mas já o amigo voava, escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas
razões de embargo. Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se
adivinha nem se crê; mas a alma humana é capaz de esforços grandes, no bem como
no mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo à prima, com a
condição
de desposar o amigo. Camila não aceitou o testamento, mas ficou tão contente,
quando o primo lhe falou das lágrimas de Gonçalves, que aceitou Gonçalves e as
lágrimas. Então Quintanilha não achou melhor remédio que fazer terceiro
testamento legando tudo ao amigo.
O
final da história foi dito em latim. Quintanilha serviu de testemunha ao noivo,
e de padrinho aos dois primeiros filhos. Um dia em que, levando doces para os
afilhados, atravessava a praça Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa
(1893) que o matou quase instantaneamente. Está enterrado no cemitério de S.
João Batista; a sepultura é simples, a pedra tem um epitáfio que termina com
esta pia frase: "Orai por ele!" É também o fecho da minha história.
Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo grego.
Pílades
é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele!
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