sexta-feira, 23 de abril de 2021

Projeto Contos do Sábado na Usina: João do Rio:Dentro da noite:


causou sensação?
mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não?
Ela, coitadita! parecia louca por ti, e os pais estavam radiantes de alegria.
De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.
- Contra mim?
- Podia ser contra a pureza de Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, às onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio, com o ar desvairado...
- Eu tenho ar desvairado?
- Absolutamente desvairado.
- Vê-se?
- Ë claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido,
suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão
esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei
encontrar o Rodolfo Queirós, o mais elegante artista desta terra, num trem
de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares
nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?
O trem rasgava a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre
os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do
vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os
silvedos empapados de água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu
de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima - o
que falava mais - dizia para o outro:
- Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?
O outro sorriu desanimado.
- Não; estou nervoso, estou com a maldita crise.
E como o gordo esperasse:
- Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde
e tens razão tu, cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável
desvairado, sou um infame desgraçado.
- Mas o que é isto, Rodolfo?
- Que é isto! É o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem
não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é
positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não
quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente,
apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te de Jeanne Dambreuil
quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos
convidava para as fumeri es de ópio? Sabiam ambos que acabavam com a vida
e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com
um homem que se sente doido.
- Tomas morfina, agora? Foi o desgosto, decerto...
O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia
ninguém mais - a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então
aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.
- Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular,
de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de
bondade a quem amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile do
Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que
braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio
infantil, meio mulher - a beleza dos braços das Oréades pintadas por
Botticelli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um
estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim:
a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas
principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo
um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los,
apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras,
feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei - uma nevrose! Essa noite
passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses,
um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer. O desejo, porém,
ficou, cresceu, brotou, arraigou-se na minha pobre alma. No primeiro
instante a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a
grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de
cosê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que
trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via sua
forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção
quando pudesse enfiar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o
prazer diante daquele susto de carne a sentir.
- Que horror!
- Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie da viscondessa de
Lages, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços -
oh! que braços, Justino, que braços! - estavam quase nus. Quando Clotilde
erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto
da varanda, entre as roseiras, ela disse-me: "- Rodolfo, que olhar o seu.
Está zangado?" Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo
os dentes. "- Oh! não!" fiz, "estou apenas com vontade de espetar
este alfinete no seu braço". Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita
olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: - Se não quer que eu
mostre os braços, por que não me disse há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso
que o faz zangado?" "- É, é isso, Clotilde." E rindo - como esse riso devia
parecer idiota! -continuei: "-É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida
de sangue. Deixe espetar o alfinete." "- Está louco, Rodolfo?" "- Que
tem?" "- Vai fazer-me doer." "- Não dói." "- E o sangue?" "- Beberei
esta gota de sangue como a ambrosia do esquecimento". E dei por mim,
quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frase, com um gosto
de sangue na boca e as frontes a bater, a bater... Clotilde por fim estava
atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir. Ah! meu
caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo,
de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo
tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro: "Bem, Rodolfo, faça...
mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!" E os seus dois braços tremiam.
Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se
fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, sentia a pele
macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um
gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah!
de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: "- Mau!"
Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera
por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha
noiva, davam-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando
os varões da cama, mordendo o travesseiro, eu tinha a certeza de que dentro
de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo que forçava o
pensamento a dizer: "Nunca mais farei essa infâmia!", todos os meus nervos
latejavam: "Voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer!" Era
o delírio, era a moléstia, era o meu horror...
Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos
com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e
acendeu uma cigarreta.
- Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida que é uma
degeneração sexual, mas o altruísmo de São Francisco de Assis também é
degeneração e o amor de Santa Teresa não foi outra coisa. Sabes que Rousseau
tinha pouco mais ou menos esse mal? És mais um tipo a enriquecer a série
enorme dos discípulos do marquês de Sade. Um homem de espírito já definiu
o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-ripper
civilizado, contentas-te com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.
O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.
- Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura do
outro lado da vida normal. É lúgubre.
- Então continuaste?
- Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha,
estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós
conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda.
Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto
de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai
conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: "- Parece, Rodolfo,
que vieste a correr para não perder a festa
Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha
alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de
angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu
senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... quando ao cabo de
alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa
carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já
tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me,
encolhi-me, e finquei.
Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma
doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os
olhos de Clotilde se fixavam enormes e eu vi que ela compreendia vagamente
tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre,
porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que havia de fazer?... Então
depois, Justino, sabes? foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a
marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: "- Fez sangue,
ontem?" E ela pálida e triste, num suspiro de rola: "- Fez..." Pobre Clotilde!
A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem,
se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos
ao pensar no casamento porque sabia se a tivesse toda havia de picar-lhe a
carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que tristeza!
De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e
pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado,
e indagou:
- Mas então como te saíste?
- Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos
negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando
eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento.
Era a mãe que a ia buscar. "- Minha filha, o Rodolfo chegou, avia-te". E ela
de dentro: "- Já vou, mãe". Que dor eu tinha quando a via aparecer sem
uma palavra! Sentava-se à janela, concertava as flores da jarra, hesitava,
até que sem forças vinha tombar ao meu lado, no sofá, como esses pobres
pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe
os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda
de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho pai desfazendo
o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.
- E fugiste?
- Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou
outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras idéias. Assisto-me
endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento total. Para
esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das
mulheres infames, freqüentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em
pouco o terror. As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo,
de horror.
A pedir, a rogar um instante de calma eu corria às vezes ruas inteiras da
Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante,
sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do
ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e
pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas
desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos
caminhos de ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo
posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa.
Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais
das magras, as que parecem doentes.
A voz do desvairado tornara-se metálica, outra. De novo porém a
envolveu um tremor assustado.
- Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga
magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo está perdido, o teu
pobre amigo vai ficar louco...
De repente, num entrechocar de todos os vagões, o comboio parou.
Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados
apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse
momento, uma menina loura com um guarda-chuva a pingar, apareceu,
espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.
- Adeus.
- Saltas aqui?
-Salto.
- Mas que vais fazer?
- Não posso, deixa-me! Adeus!
Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um
arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter
um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando
rangeu sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira,
correu para o vagão onde desaparecera a menina loura. Logo o comboio
partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo
subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz
de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro
vagão, no que estava a menina loura. Mas o comboio rasgara a treva com
outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças
molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas,
as sebes empapadas dágua sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da
locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando

a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraças e de delírio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário