Rio, fevereiro
de 2000
De 1900 aos anos
30.
Entre o passado
triste e rural que persiste e o futuro vertiginoso que
não chegou, o
presente das primeiras décadas do século 20 explora
linguagens
diversas. Estamos rompendo os ferros da escravidão, alimentamos
sonhos de
carnaval e tarlatana, velocidade e multidão. São
décadas em que
ainda não existe uma linguagem brasileira padrão. Por
isso, os
contistas experimentam os mais variados estilos - desde os
estrangeirismos
à La mode de João do Rio aos regionalismos gaúcho e
paulista de
Simões Lopes Neto e Alcântara Machado, passando pelo
insuperável, o
eterno e moderno Machado de Assis. Por sorte, o maior
escritor
brasileiro do século 19 ainda estava vivo nos primeiros anos do
século 20
(morreu em 1908). Tempo suficiente para escrever a obra-prima com
que abrimos este
volume.
Pai contra mãe:
Machado de Assis:
A escravidão
levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras
instituições
sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a
certo oficio. Um
deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia
também a máscara
de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da
embriaguez aos
escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois
para ver, um
para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado.
Com o vício de
beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era
dos vinténs do
senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam
dois pecados
extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca
tal
máscara, mas a
ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco,
e alguma vez o
cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta
das lojas. Mas
não cuidemos de máscaras.
O ferro ao
pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma
coleira grossa,
com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao
altoda cabeça e
fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos
castigo que
sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava
um reincidente,
e com pouco era pegado.
Há meio século,
os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e
nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem
pancada, e nem
todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas
repreendida;
havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono
não era mau;
além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação,
porque dinheiro
também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve,
ainda que raros,
em que o escravo de contrabando, apenas comprado no
Valongo, deitava
a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam
para casa, não
raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcassem
aluguel, e iam
ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um
escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho
levasse. Punha
anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome,
a roupa, o
defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia
degratificação.
Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: "gratificar-se-a
generosamente",
-ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio
trazia em cima
ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo,
vara ao ombro, e
na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei
contra quem o
acoutasse.
Ora, pegar
escravos fugidios era um oficio do tempo. Não seria nobre,
mas por ser
instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade,
trazia esta
outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se
metia em tal
oficio por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma
achega, a
inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de
servir também,
ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se
sentia bastante
rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, -
em família, Candinho, - é a pessoa a quem se liga
a história de
uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o. ofício de pegar
escravos
fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava
emprego nem
ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo.
Começou por
querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum
a tempo para
compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi
o que ele disse
a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira
boa. Com algum
esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação,
porém, de
atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de
cinco ou seis
semanas estava na rua por sua vontade, fiel de cartório, contínuo
de uma
repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos
foram deixados
pouco depois de obtidos.
Quando veio a
paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas,
ainda que
poucas, porque morava com um primo, entalhador de oficio.
Depois de várias
tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do
primo, de que
aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras,
mas, querendo
aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem
complicadas,
apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria
ter em que
trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava trinta
anos, Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma
tia, Mônica, e
cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco,
mas os namorados
apenas queriam matar o tempo; não tinham outro
empenho.
Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que
a noite a fazia
recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles
lhe deixava
saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome
de muitos.
Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar
de caniço, a ver
se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que
parasse, era só
para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir
aoutras.
O amor traz
sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu
que era este o
possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro
deu-se em um
baile; tal foi - para lembrar o primeiro oficio do namorado,
- tal foi a
página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e
pior brochado. O
casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa
das relações dos
noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja,
tentaram
arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo,
nem o amor que
lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado
em demasia a
patuscadas.
- Pois ainda
bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
- Não, defunto
não; mas é que...
Não diziam o que
era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre
onde eles se
foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles
queriam um, um
só, embora viesse agravar a necessidade.
- Vocês, se
tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
- Nossa Senhora
nos dará de comer, acudiu Clara.
Tia Mônica devia
ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele
lhe foi pedir a
mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o
casamento seria
uma festa, como foi.
A alegria era
comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os
mesmos nomes
eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam
que comer, mas
davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora
mais, ele saía a
empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo.
Nem por isso
abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele
desejo
específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém,
deu sinal de si
a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria
trazer ao casal
a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido
e Clara riram
dos seus sustos.
- Deus nos há de
ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu
de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a
aurora do dia
grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim
era preciso, uma
vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com
retalhos o
enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela,
media-lhe
fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos
longos. Tia
Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
- Vocês verão a
triste vida, suspirava ela.
- Mas as outras
crianças não nascem também? perguntou Clara.
- Nascem, e
acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que
pouco...
- Certa como?
- Certa, um
emprego, um oficio, uma ocupação, mas em que é que
o pai dessa
infeliz criatura que aí vem, gasta o tempo?
Cândido Neves,
logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia,
não áspero, mas
muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já
algum dia
deixara de comer.
- A senhora
ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo
quando não quer
jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...
- Bem sei, mas
somos três.
- Seremos
quatro.
- Não é a mesma
coisa.
- Que quer então
que eu faça, além do que faço?
- Alguma coisa
mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem
do armarinho, o
tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo...
Não fique
zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que
escolheu, é
vaga. Você passa semanas sem vintém.
- Sim, mas lá
vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus
não me abandona,
e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum
resiste, muitos
entregam-se logo.
Tinha glória
nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a
pouco ria, e
fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma
patuscadano batizado.
Cândido Neves
perdera já o oficio de entalhador, como abrira mão de
outros muitos,
melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um
encanto novo.
Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho
vivo, paciência,
coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios,
copiava-os,
metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória.
Fixados os
sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo
em achá-lo,
segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade
também. Mais de uma vez,
a uma esquina, conversando de coisas remotas, via
passar um
escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era,
o nome, o dono, a
casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás
do vicioso. Não
o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha
a gratificação
nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes
do outro
trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros
entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham
já, como dantes,
meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e
hábeis. Como o
negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si
e numa corda,
foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No
próprio bairro
havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de
Cândido Neves
começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou
quase prontos
dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se
fiado e mal;
comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis.
Clara não tinha
sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta
era a
necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha,
naturalmente.
Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia
vintém. Jantava
e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda
que raro,
enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de
seu senhor; tal era
a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre;
desfez-se em
desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram
os parentes do
homem.
- É o que lhe
faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois
de ouvir narrar
o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho;
procure outra
vida, outro emprego.
Cândido quisera
efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho,
mas por simples
gosto de trocar de oficio; seria um modo de mudar de pele ou
de pessoa. O
pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia
andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes
de nascer.
Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos
ainda que o
nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente
os seus efeitos.
Não podiam ser mais amargos.
- Não, tia
Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que
me custa
escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última
semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal
o conselho de
levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade,
não podia haver
palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam
a criança, para
beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular...
Enjeitar quê?
enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou
dando um murro
na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada,
esteve quase a
se desfazer inteiramente. Clara interveio:
- Titia não fala
por mal, Candinho.
- Por mal?
replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for,
digo que é o
melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o
feijão vão
faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família
há de aumentar?
E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a
vida mais
segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado
que este ou
maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a
Roda é alguma
praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre
à toa, enquanto
que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...
Tia Mônica
terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas
e foi meter-se na
alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a
primeira vez que
o fazia com tal franqueza e calor, - crueldade, se preferes.
Clara estendeu a
mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido
Neves fez uma
careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos
dois foi
interrompida por alguém que batia à porta da rua.
- Quem é?
perguntou o marido.
- Sou eu.
Era o dono da
casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa
ameaçar o
inquilino. Este quis que ele entrasse.
- Não é preciso...
- Faça favor.
O credor entrou
e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver
se daria algo à
penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos,
não podia
esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na
rua. Não havia
trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria
que era
proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre
Cândido Neves
preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa
e súplica ao
mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
- Cinco dias ou
rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta
e saindo.
Candinho saiu
por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao
desespero,
contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas
a contava.
Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas
em vão os
buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou
para casa. Ao
fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de
empenhos, foi a
pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a
ordem de
mudança.
A situação era
aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa
que lhes
emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia
Mônica teve arte
de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora
velha e rica,
que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo
da cocheira,
para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer
nada aos dois,
para que Cândido Neves, no desespero da crise, começasse
por enjeitar o
filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de
obter dinheiro;
emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as
repetir, é
certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a
deixar a casa,
fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir
melhor do que
cuidassem.
Assim sucedeu.
Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois
dias depois
nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também.
Tia Mônica
insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe
isso comigo; eu
vou à rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que
esperasse, que
ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os
pais desejavam
justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como
chovesse à
noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu
todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela
maior parte eram
promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma,
porém, subia a
cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de
gesto e de
vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna,
e abrira mão do
negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse
recolhido.
Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram
Cândido Neves a
fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e
indagar pela rua
e largo da Carioca, rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia
andar, segundo o
anúncio. Não achou; apenas um farmacêutico da rua da Ajuda
se lembrava de
ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa
que tinha os
sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da
escrava, e agradeceu
cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de
gratificação
incerta ou barata.
Voltou para a
triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de
si mesma a dieta
para a recente mãe, e tinha já o menino para ser
levado à Roda. O
pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor
do espetáculo.
Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha
fome, disse, e
era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum
prestava. Não
podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a
mulher, que se
mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino;
seria a maior
miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem
recurso. Cândido
Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher
que desse ao
filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o
pequeno
adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da rua dos Barbonos.
Que pensasse
mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não
menos certo é
que o agasalhava muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto
para preservá-lo
do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Cândido
Neves começou a
afrouxar o passo.
- Hei de
entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.
Mas não sendo a
rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então
que lhe ocorreu
entrar por um dos becos que ligavam aquela à rua da Ajuda.
Chegou ao fim do
beco e, indo a dobrar à direita, na direção do largo da
Ajuda, viu do
lado oposto, um vulto de mulher: era a mulata fugida. Não
dou aqui a
comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a
intensidade
real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher,
a desceu eie
também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a
informação, que
referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a
fineza de
guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
-Mas...
Cândido Neves
não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua,
até o ponto em
que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No
extremo da rua,
quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves
aproximou-se
dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
- Arminda!
bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se
sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado
o pedaço de
corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela
compreendeu e
quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos
robustas,
atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar,
parece que chegou a
soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo
que ninguém
viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo
amor de Deus.
- Estou grávida,
meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum
filho, peço-lhe
por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo
pelo tempo que
quiser. Me solte, meu senhor moço!
- Siga! repetiu
Cândido Neves.
- Me solte!
- Não quero
demoras; siga!
Houve aqui luta,
porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho.
Quem passava ou
estava à porta de uma loja, compreendia o que era e
naturalmente não
acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau,
e provavelmente
a castigaria com açoites, - coisa que, no estado em que ela
estava, seria
pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.
- Você é que tem
culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?
perguntou
Cândido Neves.
Não estava em
maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia,
à espera dele.
Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi
arrastando a
escrava pela rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde
residia o
senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede,
recuou com
grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser
a casa próxima,
gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou,
enfim,
arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em
vão. O senhor
estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
- Aqui está a
fujona, disse Cândido Neves.
- É ela mesma.
- Meu senhor!
- Anda, entra...
Arminda caiu no
corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a
carteira e tirou
os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as
duas notas de
cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à
escrava que
entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após
algum tempo de
luta a escrava abortou.
O fruto de algum
tempo entrou sem vida neste mundo, entre os
gemidos da mãe e
os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo
esse espetáculo.
Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia
correr à rua da
Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências
do desastre.
Quando lá
chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe
entregara. Quis
esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a
tempo; o menino
estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai
recebeu o filho
com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há
pouco, fúria
diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal,
e saiu às
carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de
empréstimo, com
o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica,
ouvida a
explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem
mil-réis. Disse,
é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa
do aborto, além
da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas
verdadeiras,
abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
- Nem todas as
crianças vingam, bateu-lhe o coração.
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