Se me falam em
virtude, em moralidade ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se
relacione com o bem e o mal, eu vejo Mamãe em
minha
idéia. Mamãe -
não. O pescoço de Mamãe, a sua garganta branca e tremente, quando gozava
a sua risadinha como quem
bebe café no pires.
Essas risadas ela dava principalmente à noite,
quando - só nós três
em casa - vinha
jantar como se fosse a um
baile, com seus vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada
que os objetos a seu redor
criavam uma pequena
atmosfera própria, eram mais
leves e delicados. Ela não se pintava
nunca, mas não sei como fazia
para ficar com
aquela lisura de
louça lavada. Nela, até a transpiração era como vidraça molhada:
escorregadia,
mas não suja. Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde eu explorava furiosamente, e em gozo
físico, pequenos subterrâneos nos poros escuros
e profundos, ou vulcõezinhos
que estalavam entre
as unhas, para
meu prazer. A risada de Mamãe era
um "muito
obrigada" a meu Pai, que a adulava como se dela dependesse. Porém, ele
mascarava essa adulação
brincando e a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita dissera a
Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha:
- Procure
impressionar o próximo.
A senhora tem um poder
extraordinário sobre os
outros, mas não sabe. Deve aconselhar... Porque... se impõe,
logo à primeira
vista. Aconselhe. Seus conselhos não falharão
nunca. Eles vêm da sua própria mediunidade...
Mamãe repetiu
aquilo umas quatro ou cinco vezes, entre amigas,
e a coisa pegou, em Laterra.
Se alguém
ia fazer um negócio, lá aparecia em casa para
tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era loura e
pequenina, parecia que ficava
maior, toda dura, de cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste. Consultavam Mamãe a respeito de política,
dos casamentos. Como tudo que
dizia era
sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma
vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um beberrão incorrigível.
Lembro-me de que Mamãe disse coisas belíssimas, a respeito da realidade do
Demônio, do lado da Besta, e do lado do Anjo.
E não apenas ela
explicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo
se levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera, porém sua voz não subia do
tom natural. O moço e a senhora choravam juntos.
Papai ficou
encantado com o prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre patrão e
empregado, entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em nossa casa.
Mamãe ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno negócio,
sentia afluir a confiança que se
espraiava até seus domínios.
Foi nessa
ocasião que Laterra ficou sem padre, porque
o vigário morrera
e o bispo não mandara substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos
em Santo Antônio. Mas, para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha
Mãe. De repente, todos ficaram mais
religiosos. Ela ia para a reza
da noite de véu de renda, tão
cheirosa e lisinha
de pele, tão
pura de rosto, que todos diziam que parecia e
era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria aquelas
risadinhas, uma santa não se
divertia, assim. O divertimento é uma espécie
de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe
só ria e se
divertia quando estávamos sos.
Nessa época, até
um caipira perguntou na feira de Laterra:
- Diz
que aqui tem uma padra. Onde é que ela mora? Contaram a Mamãe. Ela não riu:
- Eu
não gosto disso. - E ajuntou: Nunca fui uma fanática, uma
louca. Sou,
justamente, a pessoa equilibrada, que quer ajudar
ao próximo. Se continuarem com essas histórias, eu nunca mais puxo o terço.
Mas, nessa
noite, eu vi sua garganta tremer, deliciada:
-Já estão me
chamando de "padra"... Imagine!
Ela havia achado
sua vocação. E continuou a aconselhar, a falar
bonito,
a consolar os
que perdiam pessoas queridas. Uma vez, no
aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras tão belas a respeito da
velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve fazer antes que caia a
noite, que o compadre pediu:
- Por
que a senhora não faz, aos domingos, uma prosa
desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade precisa de bons conselhos...
Todos acharam
ótima a idéia. Fundou-se uma sociedade: "Círculo dos Pais de
Laterra", que tinha suas reuniões na sala da Prefeitura. Vinha gente de longe,
para ouvir Mamãe
falar. Diziam todos que ela fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras confortava quem estivesse
sofrendo. Várias pessoas
foram por
ela convertidas. Penso
que meu Pai
acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar
que minha Mãe fosse um ser predestinado, vindo ao
mundo só para fazer o bem. Via tão claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao
mesmo tempo me perguntava:
-
Que significam estes escrúpulos? Ela não
une casais que se separam,
ela não consola as viúvas, ela não corrige
até os aparentemente incorrigíveis?
Um dia, Mamãe disse ao meu Pai, na hora do almoço:
- Hoje
me trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado. Você vai
empregá-lo. Seja
tudo pelo amor de Deus. Ele me veio pedir
auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre chorou
tanto, implorou.., contando
a sua miséria. Ë um desgraçado!
Um sonho de
glória a embalou:
- Sabe
que os médicos de Santo Antônio não deram nenhum jeito?
Quero que você
me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é sacrifício para você,
porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que dinheiro eu não aceito
mesmo, porque só faço caridade!
O novo empregado
parecia uma moça bonita. Era corado, tinha
uns
olhos pretos,
pestanudos, andava sem fazer barulho. Sabia versos de cor, e às
vezes os
recitava baixinho, limpando o balcão. Quando
o souberam empregado de meu
Pai - foram avisá-lo:
- Isso
não é gente para trabalhar em casa de respeito!
- Ela
quis - respondeu meu Pai. - Ela sempre sabe o que faz!
O novo empregado
começou o serviço com convicção, mas tinha crises
de angústia. Em certas noites
não vinha jantar
conosco, como ficara
combinado. E aparecia mais tarde, os olhos vermelhos.
Muitas vezes,
Mamãe se trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de
repreensão. Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo de bondade:
- Tire
a mão da cintura. Você já parece uma moça, e assim, então... Mas sabia dizer a
palavra que ele desejaria, decerto, ouvir:
-
Não há ninguém melhor do que você, nesta
terra! Por que é que tem medo dos
outros? Erga a cabeça... Vamos!
Animado, meu Pai garantia:
- Em
minha casa ninguém tem coragem de desfeitear você. Quero
ver só isso!
Não tinha mesmo.
Até os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios
e fugiam, mal meu Pai surgisse à porta. E o moço passou muito tempo sem falhar
nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe. Pintou-lhe um leque e fez um vaso em
forma de cisne,
com papéis velhos molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou
meu amigo. Sabia de modas, como ninguém.
Dava opinião sobre os meus vestidos. à hora da reza, ele, que era tão humilhado,
de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se chegavam visitas, quando
estava conosco, ele
não se retirava
depressa como fazia
antes. E ficava num canto, olhando tranqüilo, com simpatia. Pouco a
pouco eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele
ficara menos afeminado. Seus gestos já eram
confiantes, suas atitudes menos ridículas.
Mamãe, que
policiava muito seu modo de conversar, já se
esquecia de que ele era um estranho. E ria muito
à vontade, suas
gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não era preciso mais.
E ele deu de segui-la fielmente,
nas horas em que não estava
no balcão. Ajudava-a
em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra,
soube depois, certas
moças que por namoradeiras tinham raiva da Mamãe, já diziam, escondidas
atrás da janela, vendo-a passar:
-
Você não acha que ela consertou... demais?
Laterra tinha
orgulho de Mamãe, a pessoa mais importante da cidade. Muitos sentiam quase
sofrimento, por aquela afeição que pendia para o lado cômico. Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto
duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao lado levando sua
sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco mal-estar dominava
a cidade. Até
que num domingo, quando Mamãe falou sobre a
felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram quase imperceptivelmente para o rapaz,
mas ainda assim eu notei a malícia.
E qualquer
absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa.
Mamãe foi a última a notar a paixão que despertara:
-
Vejam, eu só procurei levantar seu
moral... A própria mãe o considerava um perdido - chegou a querer que morresse!
Eu falo - porque todos sabem - mas ele hoje é um moço de bem!
Papai foi
ficando triste. Um dia, desabafou:
-
Acho melhor que ele vá embora. Parece
que o que você queria, que ele
mostrasse que poderia ser decente e trabalhador, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e mandá-lo para casa. Você é extraordinária!
- Mas -
disse Mamãe admirada. - Você não vê que é preciso mais
tempo... para
que se esqueçam dele? Mandar esse rapaz de
volta, agora, até é um pecado! Um
pecado que eu não quero em minha consciência.
Houve uma noite
em que o moço contou ao jantar a história de
um
caipira, e Mamãe ria como nunca, levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez
mais perturbadora- seu pescoço - naquele gorjeio trêmulo.
Vi-o ao
empregado, ficar vermelho e de olhos brilhantes, para aquele esplendor branco.
Papai não riu. Eu me sentia feliz e assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que Mamãe lhe fez, ele disse qualquer coisa
que eu jamais saberei. Ouvimos pela primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto,
furiosa, desencantada. Uma semana depois
ele estava restabelecido, voltava ao trabalho. Ela disse a meu Pai:
- Você
tem razão. Ë melhor que ele volte para casa. À hora do jantar, Mamãe ordenou à criada:
- Só
nós três jantamos em casa! Ponha três pratos...
No dia seguinte,
à hora da reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu
costumeiro lugar junto de Mamãe:
-
Saia!... - disse ela baixo, antes de
começar a reza. Ele ouviu - e saiu,
sem nem ao menos suplicar com os olhos.
Todas as cabeças
o seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar
discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite.
- Padre
Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome... Desta vez as vozes
que a acompanhavam eram mais firmes do
que nos últimos dias.
Ele não voltou
para a sua cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía
de Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore.
Homem de coragem, pensou que fosse
algum
assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados. Eu também o vi.
Mamãe não. À luz
da lanterna, achei-o mais ridículo do que trágico, frágil e
pendente como um
judas de cara de pano roxo. Logo uma multidão
enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci de que Laterra toda
respirava aliviada. Era
a prova! Sua
senhora não transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se
pela cidade.
Em casa não
falamos no assunto, por muito tempo. Porém Mamãe,
perfeita e perfumada como sempre, durante meses deixou de dar suas
risadinhas,
embora continuasse agora, sem grande convicção - eu o sabia
- a dar os seus
conselhos. Todavia punha, mesmo no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço.
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