(O menino
sentado à minha frente é meu irmão, assim me disseram; e bem pode ser verdade,
ele regula pelos dezessete anos, justamente o
tempo que estive
solto no mundo, sem contato nem notícia. Quanta coisa muda em dezessete anos,
até os nossos sentimentos, e quanta coisa acontece
- um menino
nasce, cresce e fica quase homem e de repente nos olha na cara e temos que abrir lugar
para ele em nosso mundo,
e com urgência porque ele
não pode mais ficar de fora.
A princípio quero tratá-lo como intruso, mostrar-lhe a minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar
dúvida, como
se lhe perguntasse com todas as letras: que
direito tem você
de estar aqui na intimidade de minha família, entrando nos nossos
segredos mais íntimos, dormindo na cama onde eu dormi, lendo meus velhos
livros, talvez sorrindo das minhas anotações à margem, tratando meu pai com
intimidade, talvez discutindo a minha conduta, talvez até criticando-a? Mas depois vou notando que ele não é totalmente estranho, as orelhas
muito afastadas da cabeça
não são diferentes das minhas, o seu sorriso
tem um traço de sarcasmo que eu conheço muito bem de olhar-me ao
espelho, o seu jeito de sentar-se de lado e cruzar as pernas tem impressionante
semelhança com o meu pai. De repente fere-me a idéia de que o intruso talvez
seja eu, que ele tenha
mais direito de hostilizar-me do que eu a ele,
que vive nesta
casa há dezessete anos,
sem a ter pedido ele aceitou e fez dela o seu lar, estabeleceu
intimidade com o espaço e com os objetos, amansou o ambiente a seu modo, criou as suas preferências e as suas antipatias, e agora eu caio aí de repente desarticulando tudo com minhas
vibrações de onda diferente. O intruso sou eu, não ele.
Ao pensar nisso
vem-me o desejo urgente de entendê-lo e de
ficar
amigo, de derrubar todas
as barreiras, de abrir-lhe o meu mundo
e de entrar no dele. Faço-lhe perguntas e noto a sua avidez em
respondê-las, mas logo vejo a inutilidade de prosseguir nesse caminho, as
perguntas parecem-me formais e as respostas forçadas e complacentes. Há um
silêncio incômodo,eu olho
os pés dele,
noto os sapatos
bastante usados, os solados revirando-se nas beiradas, as rachaduras
do couro como mapa de rios em
miniatura, a poeira acumulada nas fendas. Se não fosse o receio de parecer
fútil eu perguntaria se ele tem outro sapato mais conservado, se gostaria que
lhe oferecesse um novo, e uma roupa nova para combinar. Mas seria esse o
caminho para chegar a ele? Não seria um caminho simples demais, e por conseguinte inadequado?
Tenho tanta
coisa a dizer, mas não sei como começar, até a minha voz parece ter perdido a
naturalidade, sinto que não a governo, eu mesmo me aborreço ao ouvi-la. Ele me olha,
e vejo que está me examinando, procurando decidir se devo ser tratado como irmão ou como
estranho, e imagino que as suas dificuldades não devem ser menores do que as
minhas. Ele me pergunta se eu moro numa casa grande, com muitos quartos, e
antes de responder procuro descobrir o motivo da pergunta. Por que falar em casa? E qual a importância de
muitos quartos? Causarei inveja nele se responder que sim? Não, não tenho casa,
há muito tempo que tenho morado em
hotel. Ele me olha parece que fascinado, diz que deve ser bom viver em hotel, e conta que
toda vez que faz reparos à comida mamãe diz que ele deve ir para um hotel, onde pode reclamar e exigir. De repente o fascínio se transforma em alarme,
e ele observa que se eu vivo em hotel não posso ter um cão em minha companhia,
o jornal disse uma vez que um homem foi processado por ter
um cão em um
quarto de hotel. Não me sinto atingido pela proibição, se é que existe,
nunca pensei em ter um cão, não resistiria me separar dele quando
tivesse que arrumar as malas, como estou sempre fazendo;
mas devo dizer-lhe isso e provocar nele uma pena
que eu mesmo não sinto? Confirmo a
proibição e exagero a vigilância nos hotéis. Ele
suspira e diz
que então não viveria num hotel nem de graça.
Ficamos
novamente calados e eu procuro imaginar como
será ele
quando está com
seus amigos, quais os seus assuntos favoritos, o timbre de sua risada quando
ele está feliz
e despreocupado, a fluência de sua voz
quando ele pode falar sem ter que vigiar as palavras. O telefone toca lá
dentro e eu
fico desejando
que o chamado seja para um de nós, assim teremos
um bom pretexto para interromper a conversa sem ter que inventar uma desculpa; mas passa-se muito tempo e perco a
esperança, o telefone já deve até ter sido desligado. Ele também parece interessado
no telefone, mas disfarça muito bem a impaciência. Agora ele está olhando pela janela, com certeza desejando que passe algum amigo ou
conhecido que o salve do martírio, mas o sol
está muito quente e ninguém quer sair à rua a essa hora do dia. Embaixo
na esquina um homem afia facas, escuto o gemido fino da lâmina no rebolo e sinto mais calor ainda. Quando eu era
menino tive uma faca que troquei por um projetor de cinema feito por mim
mesmo - uma caixa de sapato
dividida ao
meio, um buraquinho quadrado, uma lente de óculos - e
passava horas à
beira do rego afiando a faca, servia para
descascar cana e laranja. Vale a pena dizer-lhe isso ou será muita infantilidade, considerando que ele está com dezessete anos e eu tinha uns dez
naquele tempo?
É melhor não
dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já
estraga a espontaneidade.
Uma mulher entra
na sala, reconheço nela uma de nossas vizinhas,
entra com o ar de quem vem pedir alguma coisa urgente. Levanto-me de um pulo
para me oferecer; ela diz que não sabia que estávamos conversando, promete não nos interromper, pede
desculpa e desaparece. Não sei se
consegui disfarçar um suspiro,
detesto aquela consideração fora de hora, e sou capaz de jurar que meu irmão também pensa
assim. Olhamo-nos novamente já
em franco
desespero, compreendemos que somos prisioneiros um do outro, mas compreendemos
também que nada podemos fazer para nos
libertar. Ele
diz qualquer coisa a respeito do tempo, eu acho a observação tão
desnecessária
- e
idiota - que nem me dou ao trabalho de responder.
Francamente já
não sei o que fazer, a minha experiência não me socorre, não sei como fugir
daquela sala, dos retratos da parede, do velho espelho embaciado que reflete
uma estampa do Sagrado Coração, do assoalho de tábuas empenadas formando ondas.
Esforço-me com tanta veemência que a
consciência do esforço me amarra cada vez mais àquelas quatro paredes. Só uma
catástrofe nos salvaria, e eu desejo intensamente um terremoto ou um incêndio,
mas infelizmente essas coisas não acontecem por encomenda. Sinto o suor escorrendo frio por dentro
da camisa e tenho vontade de sair dali correndo, mas como poderei fazê-lo sem
perder para sempre alguma coisa muito importante, e como explicar depois a
minha conduta quando eu puder examiná-la de longe
e ver o quanto fui inepto? Não,
basta de fugas,
preciso ficar aqui sentado e purgar o meu erro.
A porta abre-se
abruptamente e a vizinha entra de novo apertando as
mãos no peito,
olha alternadamente para um e outro de nós e diz, numa voz que mal escuto:
- Sua
mãe está pedindo um padre.
Levantamos os
dois de um pulo, dando graças a Deus - que ele nos perdoe - pela oportunidade
de escaparmos daquela câmara de suplício.
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