Todos aqueles
homens e mulheres ali na platéia sombria parecem apagados habitantes dum
submundo, criaturas sem voz nem movimento,
prisioneiros de algum perverso
sortilégio. Centenas de olhos estão
fitos na zona luminosa do
palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste
instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros.
Beethoven.
Há momentos em
que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista
está pálido à luz de cálcio. Parece
um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melodias, de sugestões
-
a origem dum mundo misterioso e rico.
Fora do círculo luminoso pesa
um silêncio
grave e parado.
Beethoven
lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens.
A música
parece escrever no ar estas
palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões
da felicidade ao mais profundo abismo
da desolação e da dor. Não
serei, pois, para
ti e para os demais,
senão um músico? Será então preciso que
busque em mim
mesmo o necessário ponto de apoio,
porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os
outros sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração. Pois que
assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade
no exterior; tudo terás que buscar dentro
de ti mesmo. Tão-somente no mundo
ideal é que poderás achar a alegria.
Adágio. O
pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve
parece participar daquela mágoa profunda.
Num dado momento
as mãos do artista se imobilizam. Depois caem
como duas asas
cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado.
Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo,
dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol... A melodia, no entanto, é uma
superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas
profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se
esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as
águas represadas rompem todas as barreiras,
levam por diante
a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se
transfigura. As suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos
cavalos selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma
daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial, contam uma
história diferente.
Quando o artista
arranca o último acorde, as luzes se acendem.
Por
alguns rápidos
segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater.
Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da
vida. Desapareceu o mundo mágico
e circular formado
pela luz do refletor. O pianista está agora
voltado para a platéia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma
de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos.
Dentro de alguns
momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico.
Suggestion Diabolique.
D. Margarida
tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando
os calos.
Não faz mal.
Estou no camarote. Ninguém vê.
Mexe os dedos do
pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor
o que
ele está
tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho... Um teatro deste tamanho.
Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas, os homens de preto,
as mulheres com
vestidos decotados - todos
parados, mal respirando, dominados pelo seu filho,
pelo Betinho!
D. Margarida
olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a
seu lado,
pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca
entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking! O pescoço
descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra um palhaço de circo.
D. Margarida
esquece o marido e torna a olhar para o filho.
Admira-lhe
as mãos, aquelas
mãos brancas, esguias e ágeis. E como a
música que o seu Gilberto toca é difícil demais
para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos
camarotes, na cabeça duma senhora lá
embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos
compridas do rapaz diminuem,
encolhem, e de
novo Betinho é um bebê de quatro meses que
acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos... Deitado no berço,
com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de
espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos...
De novo D.
Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que
ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele
ano que o
Inocêncio
começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado estava desempregado... Tinha perdido o
lugar na fábrica. Andava caminhando à
toa o dia inteiro.
Más companhias. "Ó
Inocêncio, vamos tomar um traguinho?"
Lá se iam,
entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele
voltava
para casa
fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a
boca, a gente
sentia logo o cheiro de caninha. "Com efeito,
Inocêncio! Você andou
bebendo outra vez!" Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se
ele tivesse dez anos e não trinta.
Metia-o na cama. Dava-lhe
café bem forte sem açúcar, voltava para a Singer,
e ficava pedalando horas e horas.
Os galos já estavam cantando
quando ela ia deitar, com os rins doloridos,
os olhos ardendo. Um dia...
De súbito os
sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao
presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos
cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde... Gilberto faz curvaturas para
o público, sorri,
alisa os cabelos. ("Que lindos cabelos tem o
meu filho, queria que a senhora visse, comadre,
crespinhos, vai ser um rapagão bonito.")
A escuridão
torna a submergir a platéia. A luz fantástica envolve pianista piano. Algumas notas saltam, como projéteis sonoros.
Navarra.
Embalada pela
música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado.
Como foram
longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto
crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando
os olhos; a dor
nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno.
Mas não tinha constância, não tomava interesse.
O diabo do homem
era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na calaçaria, conversando pelos
cafés, contando histórias, mentindo...
- Inocêncio,
quando é que tu crias juízo?
O pior era que
ela não sabia fazer cenas. Achava até graça
naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais
deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para
sustentar a casa, pensando sempre no futuro
de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a
Deus nunca lhe faltava trabalho.
Um dia Inocéncio
fez uma proposta:
- Escuta
aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras...
- Minha
Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões?
-
Olha, mulher. (Como ele estava
engraçado, com sua cara de fuinha, procurando
falar a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita. Ela desatou a rir. Mas a verdade
é que Inocêncio passou a ser o seu
cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou... No terceiro, bebeu
o dinheiro da única conta que conseguira
cobrar.
Mas D. Margarida
esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto
está tocando
agora... E como
ele se entusiasma! O cabelo lhe
cai sobre a testa,
os ombros dançam, as mãos dançam... Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso,
que recebe os aplausos de toda esta gente,
doutores, oficiais,
capitalistas, políticos... o diabo! - é o mesmo menino da rua da Olaria que
andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de
De novo a luz.
As palmas. Gilberto levanta os olhos para o
camarote
da mãe
e lhe faz um sinal
breve com a mão, ao passo que
seu sorriso se alarga,
ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se
sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os
dedos do pé, puro contentamento.
Tem ímpetos de
erguer-se no camarote e gritar para o povo: "Vejam, é o meu filho! O
Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de
mamar! Fui eu que trabalhei na Singer
para sustentar a casa, pagar
o colégio para
ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!"
A luz se apaga.
E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin.
No fundo do
camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para
a mãe.
Só para a mãe.
Ele viu... Mas não tem direito de se queixar... O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público
aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinqüenta por
cento das palmas devem vir para ela. Cinqüenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela, era
possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia
de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista.
Na sombra do
camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória.
Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se
matava no trabalho. Ah! Mas como
ele queria bem
ao rapaz, como ele respeitava a mulher! As vezes, quando voltava para casa, via
o filho dormindo. Tinha um ar tão
confiado, tão tranqüilo, tão puro,
que lhe vinha
vontade de chorar.
Jurava que nunca
mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele
começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta.
Ficava com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de estourar. E depois havia
também os maus companheiros.
O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam...
No fim de contas
ele não era nenhum santo.
Inocêncio
contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do
rapaz é bonita,
franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe
reservará o futuro? Daqui para diante é
só subir. A porta da
fama é tão difícil,
mas uma vez que a gente consegue
abri-la... adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados
Unidos... É capaz até de ficar por
lá... esquecer
os pais. Não.
Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim...
E é bem-feito. O pai nunca teve
vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo.
Lágrimas brotam
nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste!
O Betinho devia escolher um repertório mais
alegre.
No atarantamento
da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo
para a frente e murmura:
- Margarida...
A mulher volta
para ele uma cara séria, de testa enrugada.
- Chit!
Inocêncio recua
para a sua
sombra. Volta aos
seus pensamentos amargos. E torna a chorar
de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho,
Gilberto lhe
disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugentá-las, , mas elas
lhe soam na memória, queimando como fogo, fazendo
suas faces
e suas orelhas arderem.
Ele tinha
chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade:
- Tenho
vergonha de ser filho dum bêbedo!
Aquilo lhe doeu.
Foi como uma facada, dessas que não só
cortam as
No saguão
do teatro, terminado o concerto, Gilberto
recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas moças o
contemplam deslumbradas. Um
senhor gordo e
alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda:
- Estou
impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor!
Gilberto enlaça a cintura da mãe:
-
Reparto com minha mãe os aplausos que eu
recebi esta noite... Tudo que sou,
devo a ela.
- Não
diga isso, Betinho!
D. Margarida
cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos
admiradores chegam.
Inocêncio, de
longe, olha as pessoas que cercam o filho e
a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta
do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu,
completamente nu ali no saguão.
Afasta-se na
direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes
da praça, a grande estátua, as árvores paradas... Sente uma
enorme tristeza.
A tristeza desalentada de não poder voltar
ao passado... Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando
todos os erros, todas as misérias...
O porteiro do
teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise.
- Linda
noite! - diz Inocêncio, procurando puxar conversa.
O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando. - Linda
mesmo. Pausa curta.
- Não vê
que sou o pai do moço do concerto...
- Pai?
Do pianista?
O porteiro pára,
contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz:
- O
menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.
Inocêncio sorri.
Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando
aos poucos.
-
Pois imagine como são as coisas - diz
ele. - Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres... Pois é. Fomos. Roemos um osso duro.
A vida tem
coisas engraçadas. Um dia... o Betinho tinha
seis meses... umas mãozinhas
assim deste tamanho... nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu
do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a
noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas
carninhas. O senhor sabe, quando a
gente está nesse dorme-não-dorme,
fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir
no sofá. Mas não. Fiquei
ali no duro, de olho mal
e mal aberto, preocupado com o menino.
Passei a noite
inteira em claro, com a metade do corpo para fora da
cama. Amanheci todo dolorido,
cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas... Se eu tivesse esmagado
as mãos do Betinho hoje ele não estava
aí tocando essas músicas
difíceis... Não podia ser o
artista que é.
Cala-se. Sente
agora que pode reclamar para si uma partícula da glória
do seu Gilberto.
Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa
a assobiar baixinho. O porteiro
contempla-o em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura,
Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinqüenta mil-réis e mete-a
na mão do mulato.
- Para
tomar um traguinho - cochicha.
E fica, todo
excitado, a olhar para as estrelas.
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