É de uso que, nas sobremesas,
se façam brindes em honra ao aniversariante, ao par que se casa, ao infante que
recebeu as águas lustrais do batismo, conforme se tratar de um natalício, de um
casamento ou batizado. Mas, como a sobremesa é a parte do jantar que predispõe
os comensais a discussões filosóficas e morais, quase sempre, nos festins
familiares, em vez de se trocarem idéias sobre a imortalidade da alma ou o
adultério, como observam os Goncourts, ao primeiro brinde se segue outro em honra
à mulher, à mulher brasileira.
Todos estão
vendo um homenzinho de pince-nez,
testa sungada, metido numas roupas de circunstâncias; levantar-se lá do fim da
mesa; e, com uma mão ao cálice, meio suspenso, e a outra na borda do móvel,
pesado de pratos sujos, compoteiras de doce, guardanapos, talheres e o resto -
dizer: “Peço a palavra"; e começar logo: Minhas senhoras, meus
senhores". As conversas cessam; Dona Lili deixa de contar a Dona Vivi a
história do seu último namoro; todos se aprumam nas cadeiras; o homem tosse e
entra em matéria: “A mulher, esse ente sublime..." E vai por aí,
escachoando imagens do Orador familiar,
e fazendo citações de outros que nunca leu, exaltando as qualidades da mulher
brasileira, quer como mãe, quer como esposa, quer como filha, quer como irmã.
A enumeração não foi
completa; é que o meio não lhe permitia completá-la.
É uma cena que se repete em
todos os festivos ágapes familiares, às vezes mesmo nos de alto bordo.
Haverá mesmo
razão para tantos gabos? Os oradores terão razão? Vale a pena examinar.
é propriedade exclusiva delas
e todas as mulheres, desde as esquimós até às australianas, são merecedoras
dele. Fora daí, o orador estará com a verdade?
Lendo há dias as Memórias, de Mine. d'Épinay, tive
ocasião de mais de uma vez constatar a floração de mulheres superiores naquele
extraordinário século XVIII francês.
Não é preciso ir além dele
para verificar a grande influência que a mulher francesa tem tido na marcha das
idéias de sua pátria.
Basta-nos,
para isso, aquele maravilhoso século, onde não só há aquelas que se citam a
cada passo, como essa Mine. d'Épinay, amiga de Grimm, de Diderot, protetora de
Rousseau, a quem alojou na famosa “Ermitage", para sempre célebre na
história das letras; e Mine. du Deffant, que, se não me falha a memória,
custeou a impressão do Espírito das leis.
Não são unicamente essas. Há mesmo um pululamento de mulheres superiores que
influem, animam, encaminham homens superiores do seu tempo. A todo o momento,
nas memórias, correspondências e confissões, são apontadas; elas se misturam
nas intrigas literárias, seguem os debates filosóficos.
É uma Mine. de Houdetot; é
uma Marechala de Luxemburgo; e até, no fundo da Sabóia, na doce casa de campo
de Charmettes, há uma Mine. de Warens que recebe, educa e ama um pobre rapaz
maltrapilho, de quem ela faz mais tarde Jean-Jacques Rousseau.
E
foi por ler Mine. d'Épinay e recordar outras leituras, que me veio pensar nos
calorosos elogios dos oradores de sobremesas à mulher brasileira. Onde é que se
viram no Brasil, essa influência, esse apoio, essa animação das mulheres aos
seus homens superiores?
É raro; e todos que o foram,
não tiveram com suas esposas, com suas irmãs, com suas mães, essa comunhão nas
idéias e nos anseios, que tanto animam, que tantas vantagens trazem ao trabalho
intelectual.
Por
uma questão qualquer, Diderot escreve uma carta a Rousseau que o faz sofrer; e
logo este se dirige a Mme. d'Épinay, dizendo: “Se eu vos pudesse ver um momento
e chorar, como seria aliviado!" Onde é que se viu aqui esse amparo, esse
domínio, esse ascendente de uma mulher; e, entretanto, ela não era nem sua
esposa, nem sua mãe, nem sua irmã, nem mesmo sua amante!
Como que adoça, como que
tira as asperezas e as brutalidades, próprias ao nosso sexo, essa influência
feminina nas letras e nas artes.
Entre
nós, ela não se verifica e parece que aquilo que os nossos trabalhos
intelectuais têm de descompassado, de falta de progressão e harmonia, de pobreza
de uma alta compreensão da vida, de revolta clara e latente, de falta de
serenidade vem daí.
Não
há num Raul Pompéia influência da mulher; e cito só esse exemplo que vale por
legião. Se houvesse, quem sabe se as suas qualidades intrínsecas de pensador e
de artista não nos poderia ter dado uma obra mais humana, mais ampla, menos
atormentada, fluindo mais suavemente por entre as belezas da vida?
Como
se sente bem a intimidade espiritual, perfeitamente espiritual, que há entre
Balzac e a sua terna irmã, Laura Sanille, quando aquele lhe escreve, numa hora
de dúvida angustiosa dos seus tenebrosos anos de aprendizagem: "Laura,
Laura, meus dois únicos desejos, 'ser célebre e ser amado', serão algum dia
satisfeitos?" Há disso aqui?
Se
nas obras dos nossos poetas e pensadores, passa uma alusão dessa ordem,
sentimos que a coisa não é perfeitamente exata, e antes o poeta quer criar uma
ilusão necessária do que exprimir uma convicção bem estabelecida. Seria melhor
talvez dizer que a comunhão espiritual, que a penetração de idéias não se dá; o
poeta força as entradas que resistem tenazmente.
É com desespero que verifico
isso, mas que se há de fazer? É preciso ser honesto, pelo menos de
pensamento...
É verdade que os homens de
inteligência vivem separados do país; mas se há uma pequena minoria que os
segue e acompanha, devia haver uma de mulheres que fizesse o mesmo.
Até
como mães, a nossa não é assim tão digna dos elogios dos oradores inflamados. A
sagacidade e agilidade de espírito fazem-lhes falta completamente para penetrar
na alma dos filhos; as ternuras e os beijos são estranhos às almas de cada um.
Sonho do filho não é percebido pela mãe; e ambos, separados, marcham no mundo
ideal. Todas elas são como aquela de que fala Michelet: "Não se sabe o que
tem esse menino. Minha Senhora, eu sei: ele nunca foi beijado".
Basta
observar a maneira de se tratarem. Em geral, há jeitos cerimoniosos, escolhas
de frases, ocultações de pensamentos; o filho não se anima nunca a dizer
francamente o que sofre
ou o que deseja e a mãe não o provoca a dizer.
Sem
sair daqui, na rua, no bonde, na barca, poderemos ver a maneira verdadeiramente
familiar, íntima, sem morgue nem
medo, com que as mães inglesas, francesas e portuguesas tratam os filhos e
estes a elas. Não há sombra de timidez e de terror; não há o
"senhora" respeitável; é "tu", é “você”.
As vantagens
disso são evidentes. A criança habitua-se àquela confidente; faz-se homem e,
nas crises morais e de consciência, tem onde vazar com confiança as suas dores,
diminuí-las, portanto, afastá-las muito, porque dor confessada é já meia dor e
tortura menos. A alegria de viver vem e o sorumbatismo, o mazombo, a
melancolia, o pessimismo e a fuga do real vão-se.
Repito:
não há tenção de fazer uma mercurial desta crônica; estou a exprimir observações
que julgo exatas e constato com raro desgosto. Antes, o meu maior desejo seria
dizer das minhas patrícias, aquilo que Bourget disse da missão de Mme. Taine,
junto a seu grande marido, isto é, que elas têm cercado e cercam o trabalho
intelectual de seus maridos, filhos ou irmãos de uma atmosfera na qual eles se
movem tão livremente como se estivessem sós, e onde não estão de fato sós.
Foi,
portanto combinado a leitura de uma mulher ilustre com a recordação de um caso
corriqueiro da nossa vida familiar que consegui escrever estas linhas. A
associação é inesperada; mas não há do que nos surpreender com as associações
de idéias.
Vida urbana, 27-4-1911
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