Noticiam os
jornais que a polícia prendeu dois vadios e, de acordo com as leis e o código;
processou-os por vadiagem
Até ai a coisa
não tem grande importância. Em toda a sociedade, há de haver por força vadios.
Uns, por doença nativa;
outros, por vício.
Tem havido até vadios bem
notáveis.
Dante foi um
pouco vagabundo; Camões, idem; Bocage também; e muitos outros que figuram nos
dicionários biográficos e têm estátua na praça pública.
Não vem, tudo isto ao caso;
mas uma idéia puxa outra...
O que há de
curioso no caso de polícia de que vos falei, é que os tais vadios logo se
prontificaram a prestar fiança de quinhentos-réis, cada um, para se defenderem
soltos. Como é isto? Vagabundos possuidores de tão importante quantia? Há muito
homem morigerado e trabalhador, por aí, que nunca viu tal dinheiro.
Deve haver engano, por
força.
De resto, se não o há, sou
de parecer que a tal lei está mal feita.
O legislador
nunca devia admiti que vadios, homens que nada fazem, portanto, não ganham,
pudessem dispor de dinheiro, e dinheiro grosso, para se afiançarem.
Ou eles o têm e
obtiveram-no por meios e, portanto, não são vadios; ou, tendo-o e não
trabalhando, são coisas muito diferentes de simples vadios.
Quem cabras não tem e
cabritos vende...
Não sou, pois, bacharel, jurista, nem rábula e fico
aqui.
Marginália,
s.d.
Conhecem?
Eu não sei que
mania se meteu na nossa cabeça moderna de que. todas as dificuldades da
sociedade se podem obviar mediante a promulgação de um regulamento executado
mais ou menos pela coação autoritária de representantes do governo.
Nesse caso de criados, o
fato é por demais eloqüente e pernicioso.
Por que
regulamentar-se o exercício da profissão de criado? Por que obrigá-los a uma
inscrição dolorosa nos registros oficiais, para tornar ainda mais dolorosa a
sua situação dolorosa?
Por quê?
Porque pode
acontecer que sejam metidos nas casas dos ricos ladrões ou ladras; porque pode
acontecer que o criado, um dado dia, não queira mais fazer o serviço e se vá
embora.
Não há outras
justificativas senão estas, e são bem tolas.
Os criados
sempre fizeram parte da família: é concepção e sentimento que passaram de Roma
para a nobreza feudal e as suas relações com os patrões só podem ser reguladas
entre eles.
A Revolução,
aniquilando a organização da família feudal, trouxe à tona essa questão da
famulagem; mas, mesmo assim, ela não rompeu o quadro familiar de modo a impedir
que os seus chefes regulem a admissão de estranhos no lar.
A obrigação do
dono ou dona de casa que procura um criado, que o põe debaixo do seu teto, é
saber quem ele é; o resto não passa de opressão do governo sobre os humildes,
para servir à comodidade burguesa.
Querem fazer
das nossas vidas, dos indivíduos, das almas, uma gaveta de fichas. Cada um tem
que ter a sua e, para obtê-la, pagar emolumentos, vencer a ronha burocrática,
lidar com funcionários arrogantes e invisíveis, como em geral, são os da
polícia.
Imagino- me
amanhã na mais dura miséria, sem parentes, sem amigos. Sonho fazer-me esquivo e
bato à primeira porta. Seria aceito, mas é preciso a ficha.
Vou buscar a ficha e a
ficha custa vinte ou trinta mil-réis. Como arranjá-los?
Eis aí as
belezas da regulamentação, desse exagero de legislar, que é o característico da
nossa época.
Toda a gente sabe a que
doloroso resultado tem chegado semelhante mania.
Inscrito um
tipo nisto ou naquilo, ele está condenado a não sair dali, a ficar na casta ou
na classe, sem remissão nem agravo.
Deixemos esse
negócio entre patrões e criados, e não estejamos aqui a sobrecarregar a vida
dos desgraçados com exigências e regulamentos que os condenarão toda a sua vida
à sua lamentável desgraça.
Os senhores
conhecem a regulamentação da prostituição em Paris? Os senhores conhecem o caso
de Mme. Comte? Oh! meu Deus!
Vida
urbana, 15-1-1915
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