domingo, 15 de maio de 2022

Crônicas de Segunda: Lima Barreto: Não se zanguem:



A cartomancia entrou decididamente na vida nacional  Os anúncios dos jornais todos os dias proclamam aos quatro ventos as virtudes miríficas das pitonisas. 
Não tenho absolutamente nenhuma ojeriza pelas adivinhas; acho até que são bastante úteis, pois mantêm e sustentam no nosso espírito essa coisa que é mais necessária à nossa vida que o próprio pão: a ilusão. 
Noto, porém, que no arraial dessa gente que lida com o destino, reina a discórdia, tal e qual no campo de Agramante. 
A política, que sempre foi a inspiradora de azedas polêmicas, deixou um instante de sê-lo e passou a vara à cartomancia. 
Duas senhoras, ambas ultravidentes, extralúcidas e não sei que mais, aborreceram-se e anda uma delas a dizer da outra cobras e lagartos. 
Como se pode compreender que duas sacerdotisas do invisível não se entendam e dêem ao público esse espetáculo de brigas tão pouco próprio a quem recebeu dos altos poderes celestiais virtudes excepcionais? 
A posse de tais virtudes devia dar-lhes uma mansuetude, uma tolerância, um abandono dos interesses terrestres, de forma a impedir que o azedume fosse logo abafado nas suas almas extraordinárias e não rebentasse em disputas quase sangrentas. 
Uma cisão, uma cisma nessa velha religião de adivinhar o futuro, é fato por demais grave e pode ter conseqüências desastrosas. 
Suponham que F. tenta saber da cartomante X se coisa essencial à sua vida vai dar-se e 
a cartomante, que e dissidente da ortodoxia, por pirraça diz que não. 
O pobre homem aborrece-se, vai para casa de mau humor e é capaz de suicidar-se. 
O melhor, para o interesse dessa nossa pobre humanidade, sempre necessitada de ilusões, venham de onde vier, é que as nossas cartomantes vivam em paz e se entendam para nos ditar bons horóscopos. 

Vida urbana, 26-12-1914

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