domingo, 24 de outubro de 2021

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis:15 DE MARÇO DE 1863:


Falei na minha crônica passada de uma reunião literária para instituir leituras públicas. Essa reunião não se efetuou como era de desejar, mas, pelo que me consta, trata-se de dar começo a propaganda da idéia. Já a aplaudi rápida e sinceramente. O que tenho de fazer agora é transcrever aqui a carta pela qual o Sr. A. de Pascual, iniciador da idéia, convidou para a reunião o poeta A. E. Zaluar. Nessa carta vão, apontados a utilidade e os exemplos das leituras públicas. O leitor, se é literato, fica convocado por ela: 
“Meu caro Zaluar, 
Foram os primeiros leitores públicos os homens de letras da livre e pensadora Grécia: Platão, Pitágoras e Aristóteles, Epicuro e Homero doutrinaram o povo, nas alamedas, nos jardins acadêmicos e peripatéticos, e mesmo mendigando nas ruas. 
Esse modo popular de instruir o povo, deleitando-o e acostumando-o ao belo, passou por muitas modificações até atermar-se nas universidades da idade média. 
O brado protestante dos reformadores alemães tornou popular o ensino dos gregos: Lutero, Heiss, Calvino, Melanchton, Zwinglio, etc., foram leitores públicos, mas o exclusivismo da Igreja Católica cortou as asas da leitura feita às massas, e limitou-a as acanhadas proporções da universidade, do Port-Royal e do templo, contrariando assim as tradições da sabedoria helênica e da liberdade cristã. Não deixou ouvir mais as vozes dos Paolos nas praças e encruzilhadas, nem outorgou o direito do livre pensamento, sufocando nas fogueiras públicas da Inquisição as centelhas do espírito humano ilustrado. 
A revolução francesa, e o sistema constitucional dela oriundo, as modificações liberais por que passaram os séculos 18 e 19, ressuscitaram esse elemento de propaganda instrutiva para os povos, adotando a raça alemã e anglo-saxônica, pensadora e livre, o que haviam abafado os dominadores dos séculos baixos e supersticiosos. 
Sem pretender remontar-me aos primeiros tempos da Inglaterra livre – Cromwell; da Itália dos Machiaveli da França de 1793; da Espanha comuneira do século 16 (1520) e da Alemanha protestante, direi que na atualidade primam como leitores públicos homens de estado consumados, literatos de primeira ordem, clérigos de acentuada inteligência, e fidalgos de antigos brasões. 
Lord Derby, M.Gladstone, Lord John Russell e Lord Palmerston dão leituras públicas nos nossos dias, nos centros populosos da Grã-Bretanha. 
Charles Dickens, o romancista inglês por antonomásia, dá-as agora mesmo em 
Paris; o sábio Dr. Simons, alemão, fez em 1850 uma pingue fortuna nos Estado Unidos; Kossuth, o governador da Hungria em 1848, o abade Gabazzi, o célebre padre Ventura e muitos outros não menos conhecidos talentos deram e dão leituras em Paris, Londres, nos Estados Unidos, na Itália e mesmo na panteísta Alemanha, onde esta classe de instrução popular tem alcançado o auge da popularidade. 
V. sabe que nos Estados Unidos, na Inglaterra e nas grandes cidades alemãs são preferidas estas leituras de viagens, novelas, biografias, história e ciências aos teatros, ateneus e templos, devendo-se notar que o povo paga para ouvir os leitores com maior gosto do que para assistir grátis aos templos e academias. 
As vantagens derivadas destas leituras são imensas e eminentemente populares, e ao seu talento deixo o desenvolvimento de tão interessante tópico. 
A indústria intelectual não pode por enquanto, — balda de fervorosos apóstolos, — arcar com o charlatanismo dos especuladores da matéria, traduzido em divertimentos públicos; mas, tende fé na inteligência, e lutai com denodo para tornar familiar entre as massas a instrução, de que tanto carecem para apreciar no seu justo valor a própria dignidade de seres intelectuais e livres.” 
Dizer mais e melhor relativamente à idéia, me parece trabalho entrego essas linhas à reflexão do leitor. 
Tenho presente dois livros; ambos novos, ambos portugueses. Um é o Esboço histórico de José Estevão, por Jacintho Augusto Freitas de Oliveira. Escrúpulos de consciência me fazem confessar a verdade, e vem a ser que eu, deste volume, não li mais do que uma dúzia de páginas. Se isto não basta para julgar da fidelidade com que o autor apreciou os acontecimentos políticos que cercam a vida de José Estevão, é suficiente para adquirir-se a certeza de que o finado orador português encontrou no seu biógrafo o mais sincero e entusiasta admirador dos seus talentos e das suas grandes qualidades políticas. 
Notarei que o Sr. Freitas de Oliveira não se iludiu sobre o dever que lhe incumbia a resolução de escrever sobre José Estevão; e é de ver-se a honestidade com que no prólogo declara que não lhe vão exigir imparcialidade, porque escreve com as lágrimas nos olhos pela perda do amigo. 
O volume, contendo quatrocentas páginas, encerra alguns fragmentos dos admiráveis improvisos de José Estevão. Relendo essas páginas, desentranhadas do todo das orações, trazidas para o livro, na ordem dos sucessos, mais uma vez se vê quanto perdeu a tribuna política de Portugal na morte do fundador da revolução de setembro... 
A afeição que o Sr. Freitas de Oliveira protesta no prefácio da obra é confirmada nas poucas páginas que tal é o respeito e a admiração filiais com que o autor fala do extinto orador. As suas escusas literárias é que se não confirmam: o livro me parece bem escrito; e para concluir, acrescentarei que certas considerações gerais que acabo de passar pelos olhos notam-se tanto pelo fundo de verdade, como por certa aspereza de tom perfeitamente cabida no que fala em nome da probidade e da coerência política. 
O outro tem por título Luz coada por ferros. É uma série de romances da Sra. D. Anna Augusta Plácido. Traz na frente o retrato da autora. 
Má idéia essa, que previne logo o espírito em favor da obra, por não poder a gente conciliar a idéia de piores produções com tão inteligentes olhos. Felizmente que a leitura confirma os juízos antecipados. A Sra. D. A. A. Plácido é o que dela disse o Sr. Julio César Machado no prefácio da obra, para o qual remeto os leitores. 
A sensibilidade é o primeiro dom das mulheres escritoras; a autora de Luz coada por ferros possui esse dom em larga escala; há períodos seus que choram e fazem comover pelo sentimento de que se acham repassados; outras vezes a escritora compraz-se em nos fazer enlevar e cismar. 
É, talvez, por isso que não tem nota, se os há dos senões do livro. Do nome e da obra tomei nota como obrigação firmada para futuros escritos. 
Uma mulher de espírito é brilhante preto; não é coisa para deixar-se cair no fundo da gaveta. 
Estou no capítulo das escritoras. Depois da portuguesa aí vem a brasileira, contemporâneas no aparecimento, para confirmar, na ordem literária, a coincidência que se verifica muitas vezes na ordem política entre os dois países. 
Com o título de Gabriela, representou-se ultimamente no Ginásio um drama da Sra. D. Maria Ribeiro. Circunstâncias especialíssimas não me permitiram assistir a essa estréia, o que não importou nada a certos respeitos, visto que eu já conhecia a peça em questão. 
Fez-me a Sra. D. Maria Ribeiro a honra de comunicar a sua peça antes da exibição. Transmiti-lhe as minhas impressões em uma carta, impressões e não juízo, que tal não me cabia na ocasião fazer. Essas impressões foram das melhores, e, se não me fosse faltando espaço, as reproduziria aqui sucintamente. 
A esta hora terão as grandes folhas dado o seu juízo acerca da peça; creio que serão unânimes e acordes comigo, salvo meros reparos de pormenores. 
Dando sinceros parabéns a Sra. D. Maria Ribeiro e à literatura nacional, conto e espero, como espera a segunda, novas e cada vez melhores irmãs de Gabriella.

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