sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: A MARCELINA:



Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época) era o doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigatórias da rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, - mas como janota - força é confessá-lo - não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro. Rapaz? Rapaz, sim: o doutor Pires de Aguiar pertencia a essa privilegiada classe de solteirões que se conservam rapazes durante trinta anos. Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente: — Orço pelos quarenta, - e durante muito tempo não deu outra resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinqüenta, bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco. Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem de beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público. Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Cythera dos bastidores. Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar-se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso - muito mais generoso que inteligente, - nunca ficava mal com o astro caído. Algumas vezes o rompimento era provocado por elas - pelas de mais espírito, - que facilmente se enfaravam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidosa e suas roupas. 
II 
No tempo em que se passou ação deste ligeiro conto, a nova conquista do doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas da réclame, e cuja estréia, num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente. Uma hora antes de começar o espetáculo de estréia, entrou o advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba capa de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores. Ela ficou encantadíssima, e agradeceu com beijos quentes e sonoros a dedicada solicitude do amante. Que belo tapete felpudo! que bonitos quadros! que papel bem escolhido! que delicioso divã! que magnífico espelho de três faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro! e que profusão de perfumarias! e que preciosos serviço de toilette... Nada faltava também sobre a mesinha da maquillage, intensamente iluminada por dois bicos de gás. O doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários ao camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo. Dali a nada ouviu-se um — Dá licença?, - e o diretor de cena entrou no camarim acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada. — Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira. A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações. — É doente? perguntou Clorinda à costureira. — Não, senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Sai há dois dias da Santa Casa. Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refestelando-se no divã: — Ma chère, il faut se contenter de cette habilleuse; nous ne sommes pas en Europe. Ele impingiu esta frase em francês, para que não a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: — Oui. Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se, dizendo: — Vamos a isto! E dirigindo-se à costureira: — Sente-se. Por que está de pé? A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita. — Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho. — Deveras? — Ao que me parece, você tem sido um gajo! 
O doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade a dentro com uma gran-cruz. — Com que então, a sua especialidade são as atrizes? — Sou doido pelo teatro. — E há quanto tempo dura essa doidice? — Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta. — Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco. — São os seus olhos. — Qual foi a sua primeira paixão no teatro? — Ah! isso... O advogado levantou o braço e estalou os dedos. — ... isso é pré histórico, perde-se na noite dos tempos. — Como se chamava esta colega? — Chamava-se Marcelina. — Que fim levou? — Sei lá! provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê o cadáver. — Gostou dela? — Foi talvez a paixão mais séria da minha vida. — Nunca mais a procurou? — Para que? — Tinha talento? — Talento? Não. Tinha habilidade. E depois de uma pausa: — Tinha habilidade e era muito boa rapariga. — Brasileira? — Sim, Representava ingênuas em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia - eu já a tinha deixado - um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu. Requiescat in pace! Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o doutor Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos de Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando o interminável rosário das suas mancebias. Clorinda, a costureira e o cabeleireiro ouviam sem dizer palavra. Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se: — Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me. — Até logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplêndido! Vou aplaudi-la. Bonne chance! Deu-lhe um beijo - na testa para não desmanchar a pintura, - e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou. 
III 
Minutos depois, Clorinda estava completamente nua. — A senhora é muito bem feita de corpo, disse-lhe, num tom adulatório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça a camisa de seda. — Acha? perguntou desdenhosamente a atriz. — Ah! eu também já fui bem feita de corpo, mas... não tive juízo: fiei-me de mais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses... gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria. — Ora esta! exclamou Clorinda. Quem é você, mulher, para me falar assim? — Eu sou .... a Marcelina.

 

 

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