domingo, 4 de setembro de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Erça de Queiroz: Londres, 14 de Maio [de 1877] II:




Lembram-se, decerto, de eu lhes dizer na minha última carta que o soldado russo era o mais vagaroso dos soldados de ataque; aí têm a prova: há um mês que começou a guerra, e nem no Danúbio, nem na Ásia Menor, tem havido um facto decisivo: as estradas da România, é verdade, têm estado quase impraticáveis pelas chuvas incessantes e pelos temporais tão oportunos que parecem estar às ordens do sultão e pertencer ao estado-maior turco; é verdade que na Ásia Menor as dificuldades de transporte e de trânsito para um forte exército invasor são consideráveis: todavia repete-se um facto histórico e militar: toda a invasão russa é sempre uma campanha protraída e monótona. No Danúbio tem havido apenas alguns duelos de artilharia entre os fortes das duas margens, com resultados (consoladores para os humanitários) de algum cavalo morto ou de algum tecto de colmo queimado. O facto mais enérgico foi a passagem de Hobart Paxá, a bordo de um navio turco, através do fogo das baterias russas. À chegada dos Russos à România e aos portos do Danúbio, Hobbart Paxá estava, em serviço de inspecção, a bordo de um navio de guerra – no Alto Danúbio –, e ficou portanto bloqueado pela instalação fortificada das vanguardas russas. Com uma decisão destemida, toda a força de caldeira, todos os fogos acesos, esperando a cada momento tocar algum torpedo e ir pelos ares, raspou-se à razão de quinze milhas por hora, sob um fogo desesperado dos Russos, incólume e com bandeira alta. Hobbart Paxá é certamente uma das figuras mais salientes e mais originais desta guerra. E inglês e par de Inglaterra: é filho do conde de Buckinghamshire e herdou o titulo há anos, quando tomou assento na Câmara dos Lordes. Entrou na marinha e pouco tempo depois fezse frade. Serviu a Turquia na insurreição de Creta, e na guerra dos Estados Unidos quebrou muitas vezes, a bordo do seu navio corsário, o bloqueio do Sul. Agora é paxá e almirante turco. E um homem inteligente, heróico, com sérias qualidades de organizador. Tem quarenta e cinco anos, a barba toda espessa, o olhar agudo, o sobrolho carregado e um certo ar de bonomia altiva. E um aventureiro de bem – ou antes, uma heroicidade disponível, que procura emprego. Na Ásia Menor a marcha dos Russos tem encontrado dificuldades: tudo o que têm adiantado são duas milhas alemãs; é incontestável que em encontros parciais, mas violentos, os Turcos têm tido vantagens; as forças voluntárias turcas organizam-se com um impulso fanático e duplicam a resistência. Hoje dizia-se que algumas tribos do Cáucaso se tinham insurreccionado – o que podia cortar as comunicações do exército russo e isolá-lo na Ásia: esta noticia harmoniza-se com o despacho que diz ter o czar ordenado a mobilização do quarto, sétimo e décimo primeiro corpos de exército. Todos os correspondentes são uniformes em elogiar a organização dos Russos: boa cavalaria, equipamentos perfeitos, uma admirável administração, uma disciplina exacta, pagam tudo em ouro na România – e só o que é fornecido pela municipalidade é pago em letras, a três meses. Os Românicos recebem-nos fraternalmente: duvida-se todavia que lhes possam ser de utilidade na guerra. Certamente o príncipe Carlos é prussiano, da Casa de Hohenzollern, bravo, e deseja ardentemente uma reputação militar: mas um românico é apenas um soldado de aparato: admirável nos jardins ou nos cates, com os seus uniformes pesados de bordaduras – não tem as qualidades de resistência, de fé e de tenacidade que fazem o bom soldado. No entanto, são vinte ou trinta mil homens – e quando não sirvam senão para guarnecer os territórios que os Russos forem ocupando são já de uma grande vantagem; são outros tantos milhares de russos desembaraçados das funções ociosas de guarnição e prontos para a campanha activa. O resultado definitivo da guerra não me parece duvidoso: esta é a sétima ou oitava guerra turco-russa – e se os Turcos não têm aprendido nada, os Russos têm aprendido tudo. O Turco é decerto o mesmo soldado bravo, sofredor, activo de outrora; mas a guerra hoje não é uma questão de bravura ou de arranque individual; é uma ciência com processos científicos – e neste ponto a inferioridade turca é absoluta. Desde as pontes importantes que se esquecem de cortar até aos monitores que deixam afundar sem razão – são verdadeiramente os antigos turcos, enchendo o seu cachimbo no momento do perigo e confiando em Alá. Aqui, naturalmente, a grande preocupação é a atitude futura da Inglaterra; e não é fácil

perceber, através das discussões difusas dos jornais e dos debates confusos do parlamento – qual é a verdadeira vontade do país: eu penso que, como o ministério, o país quer intervir. O ministério naturalmente declara, na câmara e nos jornais, a sua neutralidade: mas e realmente uma neutralidade a que declara que conservará a espada na bainha – se os Russos se abstiverem de ideias de conquista? E uma neutralidade condicional. É, rigorosamente, um começo de intervenção. E depois, por esta condição – a abstenção de conquista –, vem pôr de antemão uma condição que a lógica dos factos tomaria mais tarde ou mais cedo inaceitável. A Rússia pode agora, decerto, declarar que não pretende territórios: mas depois de os ter ocupado terá força, renunciamento bastante para os restituir? Todo o estado vitorioso exige forçosamente, em definitiva, uma compensação aos sacrifícios da guerra: dinheiro ou terreno: ora a Turquia não tem dinheiro, logo há-de pagar com províncias. E isto é tão certo – que o exército russo na Ásia Menor vai acompanhado de uma corte numerosa de funcionários civis, prontos a organizar o país à russa, a maneira que ele for conquistado. De modo que, apenas os Russos se estendam na Ásia Menor ou marchem sobre Constantinopla – a Inglaterra tem de dizer o seu «alto lá». Em qualquer destes casos, é a Índia que seria ameaçada, ou directamente ou no caminho que lá leva: daí a necessidade imediata de aumentar, num pé-de-guerra paralelo ao da Rússia, o exército da Índia, o que seria um encargo intolerável para a Índia e uma negação dos princípios económicos do Estado. A fazer tal, a Inglaterra prefere fazer a guerra. Junte-se a isto que a Rússia, desde a sua marcha progressiva na Ásia, e o inimigo natural da Inglaterra: que a Inglaterra quer mostrar a sua força e a sua influência; que está despeitada pela maneira falaz e tortuosa por que a Rússia conduziu as negociações anteriores à guerra – e sentir-se-á a popularidade da ideia da intervenção. Além disso a imprensa ministerial, em artigos frenéticos, pede claramente a guerra: e o Punch tinha razão outro dia – representando as penas aguçadas do Daily Telegraph, do Morning Post, do Pall Mall, espicaçando o enorme Leão Britânico para o fazer erguer-se e rugir. Este sentimento julgo-o geral: há porém uma corrente de paixão que já por duas vezes tem atravessado o país e que o conserva por um, dois dias, num estado de excitação, desejando a destruição da Turquia, como um pais bárbaro, massacrado, fora da civilização. Nesses dias fala-se em dar apoio à Rússia: repetem-se as lágrimas choradas sobre os massacres da Bulgária: pede-se que a frota vá bombardear Constantinopla. Esta exaltação de sentimento é levantada artificialmente por Gladstone e pela porção dos liberais que o seguem. A sua eloquência apaixonada, a sua convicção contagiosa, a altura do seu carácter, arrastam um momento: Gladstone quer que se abandone a Turquia, que se faça uma aliança com a Rússia, que se divida o Império Otomano. E por algum tempo todo o mundo pensa assim. Mas a exaltação abate-se, a sensibilidade recrescida acalma – a razão prática readquire os seus direitos, e o pais, arrefecido, continua a pensar que o sentimento perturba tudo e não edifica nada, que a sã política do ministério é a antiga tradição da Inglaterra – e que se alguma coisa há a fazer é dar um golpe na Rússia.



A opinião está muito preocupada também de um certo azedume de relações entre a Alemanha e a França. A Alemanha parece querer renovar as antigas reclamações a respeito dos armamentos consideráveis da França. Não é já hoje um segredo para ninguém que a meia demissão do príncipe de Bismarck foi sobretudo causada pela resistência que ele encontrava no imperador em tomar uma atitude francamente hostil à França. Bismarck e Moltke são a alma do partido da guerra – e, se não fosse a forte influência do partido da paz, quem sabe por que novas catástrofes teria passado o Ocidente da Europa. Este partido da paz é representando na corte pelo príncipe imperial e inspirado pela princesa, a Inglesa, como lhe chamam em Berlim: inteligente, instruída, enérgica, correspondendo-se com os homens mais ilustres da Inglaterra, ela tem uma grande influência, naturalmente, em seu marido e, além disso, no imperador. É diz-se, uma das colunas da paz. Um incidente curioso, que me foi particularmente contado, revela de resto a fragilidade desta situação: por ocasião dos anos do imperador da Alemanha tem sido costume do marechal Mac Mahon mandar um ajudante de ordens, com felicitações. Este ano o ajudante tardava. Grande alegria do partido da guerra. Era uma insolência francesa! Era uma desfeita! Era o primeiro acto hostil da desforra! O

príncipe imperial, assustado, vendo o seu pai descontente, mandou um telegrama para Paris, pedindo que o ajudante partisse logo e explicando que comentários perigosos se estavam formando. O ajudante, o marquês de Abzac, estava já em caminho: chegou na véspera dos anos do imperador! Desconsolação do partido da guerra! Triunfo do partido da paz – que levou o imperador a dar uma grã-cruz ao marquês de Abzac. No entanto, a França prepara tranquilamente a sua Exposição. Uma das curiosidades será a colecção de preciosidades que o príncipe de Gales trouxe da Índia. Ele mesmo foi examinar em Paris o lugar que lhe estava marcado. Diz-se que nessa noite, estando no palco do Théâtre Français e falando-se das peças novas que iriam por ocasião da Exposição, uma linda actriz lhe perguntou bruscamente: – E crê vossa alteza que a Exposição terá lugar? O príncipe, um pouco embaraçado, reflectiu e respondeu: – Com toda a certeza. O Transval, como sabem, foi anexado. Era previsto. Não se sabem ainda as razões detalhadas que levaram Sir Theophilus Storey a este passo extremo – mas parece que a dissolução da república era iminente: os bóeres tinham provocado uma guerra e recusavam-se a pagar os impostos para a sustentar: a república, sem meios, sem soldados, estava na véspera de uma invasão: todo o mundo bárbaro que a cerca, estava em armas: era de temer à primeira insurreição que houvesse no Sul de África um levantamento selvagem, em massa. Foi talvez para evitar este grave perigo – que Sir Theophilus Storey interveio. O território do Transval é grande como todo o reino de Itália e não tem mais de um milhão de habitantes. Parece que a anexação foi tranquila, além, naturalmente, dos protestos platónicos. Na acta de anexação o Transval é declarado estado livre, com toda a autonomia do governo local: as línguas holandesa e inglesa são consideradas igualmente oficiais: certos impostos são abolidos – e parece que o sentimento pacífico é tão grande que não foi necessária ainda a presença de tropas inglesas. É mais um grosso bocado do globo que entra para a vastidão da Inglaterra! Por esta ocasião alguns jornais têm falado de Lourenço Marques. Pintam-no como um país fértil, rico, de grande futuro, em plena anarquia: funcionários, instituições, edifícios, serviços públicos, actividade local – tudo é descrito como num estado desolador de dissolução e de inércia. O Pall Mall, jornal do governo, tem insistido nestes detalhes. De resto não é raro encontrarmos nos jornais ingleses estas pinturas falsamente carregadas de civilização portuguesa na África: e têm elas tomado um tal carácter de exageração injusta que ingleses estabelecidos na África têm julgado do seu dever estabelecer a justa verdade, e ultimamente nos jornais do Cabo encontravam-se apreciações extremamente favoráveis sobre o funcionalismo português em África – apresentando-o como ilustrado, de vistas liberais e de uma grande benevolência.



As novidades literárias são escassas. Relêem-se os livros velhos – sobretudo os que dizem respeito ao Oriente, à Turquia e à Rússia: em todas as lojas de livros se vêem edições recentes do Alcorão traduzido; e, como a Turquia é preocupação do momento, as revistas literárias dedicam artigos sólidos, laboriosamente compilados pelo método inglês, à literatura e poesia turcas. Tem-se lido muito, todavia, o novo livro do deputado Jeckins, autor de Xinx’s Baby; este novo romance ou panfleto romantizado chama-se Devil’s Chain («Cadeia do Diabo») e tem-se vendido em pouco tempo vinte mil exemplares! É uma pintura violenta, colérica, da embriaguez em Inglaterra: este grande vício nacional, e as suas fatalidades, está contado em episódios lúgubres, num estilo concentrado e nervoso, a largos traços, de um modo impressionador: vêem-se todas as classes, todos os caracteres, todas as idades, virgens, mães, sacerdotes, operários, juizes, lordes, ministros de Estado, a Inglaterra inteira, arrastada pelo brande, pelo gim, pela aguardente, à perdição, ao vício, à miséria, à desonra, ao crime, à morte! E um pais todo que rola para o abismo, cambaleando de bêbedo. É a grande Cadeia do Diabo! Satanás

prende-os uns aos outros por um vício comum – o álcool – e, a grandes vergastadas, vai-os atirando para o inferno. E, no meio desta catástrofe, um só homem prospera, engorda, sorri e triunfa – o destilador, o preparador do álcool, o dono das mil tabernas. Mas lá lhe vem o seu castigo: o único filho, o único herdeiro, de copo de aguardente em copo de gim, vem a morrer, miserável, num quarto de acaso, vagamente cumpliciado num crime! O livro perde pela sua exageração bíblica. Tratado com mais realidade, causaria mais convicção.



A season vai monótona. Janta-se pouco, recebe-se pouco, dança-se pouco. O tempo tem estado áspero. A grande attraction é naturalmente a exposição anual de pinturas. Não se pode ver em detalhe, porque nestes primeiros tempos a multidão toma às vezes as proporções confusas de uma bernarda. Empurra-se, escorrega-se, pisa-se, vai-se, é-se levado – e vêem-se de longe, nas paredes, as cores reluzir vagamente e os dourados dos caixilhos cintilar: mais nada. A primeira impressão, porém, é que a exposição é medíocre: milhares de quadros, imenso talento despendido, uma extraordinária habilidade de execução – mas nenhuma obra que faça pensar. Os assuntos não têm ideia: são motivos, pretextos para correr: basta dizer que os dois grandes pintores de Inglaterra, Leighton e Millais – um expõe uma «menina vendo-se a um espelho», o outro «um veterano»! E o que estes dois grandes artistas têm a dizer este ano! Quando a gente, no colégio, aprende aguarela, copia assuntos com mais ideia e mais intenção.
Os concertos wagnerianos têm tido um sucesso. São compostos das principais partes das óperas de Wagner, sobretudo da sua última trilogia heróica, Os Nibelungos: muitos dos cantores que executaram a ópera em Bayreuth vieram a Londres – entre eles Madame Madonna, a prima-dona do maestro, a favorita, a sua grande interpretadora. Nestes concertos, naturalmente, fala-se muito de Wagner, das suas excentricidades, do seu orgulho, do seu génio, dos seus hábitos. Um artista que esteve em casa dele em Bayreuth, conta-me alguns traços curiosos. O maestro trabalha num salão enorme, com janelas imensas que abrem sobre um jardim, em cima de uma mesa de mármore. Está às vezes quinze a vinte dias sem escrever uma nota: de repente a imaginação vem: o maestro sente-a, e veste imediatamente o seu fato de trabalho. E um costume de veludo, à maneira dos camponeses alemães da Renascença. Abre todas as janelas e escreve doze a quinze horas a fio, atirando os papéis de música para o chão, até haver em toda a sala uma camada espessa. Não emenda, nem corrige. Quando não trabalha passeia só pelos campos adoráveis de Bayreuth, com dois enormes cães terra-nova, que o não deixam. Quando em Bayreuth ele entra num café, todo o mundo o segue, se descobre e deixa de fumar!
Não há por ai ninguém que queira ir explorar a Roidaima? A Roidaima é a grande maravilha geográfica destes tempos. Viajantes exploradores, na Guiana Inglesa, encontraram ultimamente uma montanha de granito, na forma de um dado colossal: os lados são perfeitamente a pique, perpendiculares: o plano superior está a uma altura de alguns mil pés: com fortes óculos de alcance vê-se que há, em cima, uma floresta, e deduz-se, por pássaros de várias formas que se vêem voar, que além de toda uma flora é toda uma vida animal: haverá homens? Nunca ninguém lá subiu, nunca ninguém de lá desceu; que mistério há ali? Desde o começo do mundo aquele país aéreo está intacto, inexplorado, virgem. É decerto habitado: provam-no as arvores, os pássaros, a água doce que cai em cascatas pelo lado do monte: a largura em cima é de duas léguas. Que espécie de homens habitam ali? Que raça? Que língua falam? Desde Adão, segundo a Bíblia, ou desde o primeiro macaco, segundo Darwin – habita ali uma tribo, uma nação.
Que civilização tem? Que estranhos animais se encontrarão ainda lá? Que estranhas árvores? Os jornais ingleses pedem, à uma, que se organize uma exploração, com balões, para subir lá e ver! Confesso que é tentador: quantas maravilhas a ciência poderá ali encontrar! É bem possível que lá vivam muitas das raças animais que no resto do globo desapareceram. E que sensação a do explorador que, ao descer da barquinha do balão, ao aportar àquele mundo aéreo – visse um ser felpudo, um imenso macaco humano, fazendo pastar tranquilamente um rebanho de mastodontes?

Nenhum comentário:

Postar um comentário