domingo, 11 de dezembro de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Erça de Queiroz: XIII Londres, 5 de Março [de 1878]:



Finalmente ontem, pelas três horas da tarde, em San Stefano, a paz entre a Turquia e a Rússia foi assinada. Ontem era na história imperial da Rússia um dia ilustre: era o aniversário da emancipação dos servos, do nascimento do imperador e da sua subida ao trono: e por um refinamento de vaidade czariana foi ontem o dia escolhido para completar, por uma assinatura num papel, o fim do Império Turco. Devia ter sido decerto para Alexandre II um momento de orgulho hiperbólico ouvindo debaixo da janela do Palácio de Inverno milhares de vassalos cantarem, com a cabeça descoberta, como no respeito de uma celebração religiosa, o hino do czar – o pensar que no dia em que fazia vinte e três anos que seu pai Nicolau vencido e humilhado morria de despeito, ele tomava a desforra das derrotas passadas, recuperava as províncias perdidas, rasgava o ofensivo Tratado de Paris, destruía o Império Otomano, humilhava grandes potências e ganhava um lugar entre os grandes conquistadores do século. Nesse momento verdadeiramente pôde crer na missão da Santa Rússia. De resto em Sampetersburgo, ao que dizem os telegramas desta manhã, o entusiasmo tomou as proporções de um delirium tremens. O imperador levou três horas a ir do palácio ao teatro, no meio de uma multidão fanática uivando o hino imperial, ébria de orgulho nacional, aclamando Alexandre, o Libertador. Em San Stefano, o grão-duque Nicolau passou uma revista de cerimonial às tropas, e os arautos anunciaram, ao som das músicas triunfais, o fim da campanha. Depois te Deum, jantares, champanhe e hurras pela Santa Rússia! De resto, os Turcos, com a passividade e a resignação da raça fatalista, aceitam a derrota, que é uma determinação de Alá, e não parecem ter conservado rancor aos Russos. Os correspondentes citam como perfeita a confraternização dos soldados russos e turcos: vêem-se, junto às linhas de demarcação, conversando, jogando, cantando, dançando, fumando, numa patuscada de bons amigos: um correspondente telegrafa que anteontem, na estrada de Pera, encontrara dois fortes destacamentos de tropas russas e turcas, que, tendo-se encontrado no mesmo caminho, faziam a passeata em fileiras misturadas, os oficiais em grupo, formando adiante, as bandas unidas tocando com denodo A Filha de Madame Angot. Os Turcos não parecem protestar: de Istambul vêm todos os dias a San Stefano milhares de curiosos ver os Russos, apertar-lhes a mão, dar-lhes os parabéns de boa chegada: de resto, os negociantes de Constantinopla estão encantados com a presença daqueles milhares de consumidores, que duplicarão os preços dos géneros. A única criatura viva que em San Stefano protestou foi um jumento. Este ilustre descendente do amigo de Sancho e do amigo de Maomet mostrou desde o começo das negociatas da paz uma inquietação que bem depressa se definiu num ódio asinino contra os Russos. E o burro de um cangalheiro – e apenas pressente um uniforme russo afila a orelha, firma-se nas patas dianteiras e escouceia com um patriotismo que deve fazer corar o sultão e os paxás. E, dizem os correspondentes, a grande curiosidade de San Stefano, e faz o divertimento dos oficiais de sua alteza o grão-duque Vitorino. Debalde se tem procurado convencê-lo da nova vantagem e do novo progresso que a Turquia, ou o bocadito da Turquia que resta, vai gozar sob o protectorado russo; o jumento, com a teima que faz a honra e a força da sua raça, responde com coices aos argumentos. Este jumento ficará na história. É, depois de Osman Paxá, a única alma viril do império. É o último patriota turco! Eis pois enfim finda a Turquia: as condições da paz não são conhecidas senão nas suas linhas gerais, mas tanto quanto se sabe, e não se sabe tudo, a Turquia perde a România, a Sérvia, o Montenegro como tributários, perde a Bósnia, perde toda a Bulgária, perde quase toda a Romélia e fica-lhe apenas na Europa uma tira de terra em volta de Constantinopla: o espaço para se plantarem as hortas da cidade, uma migalha de território para os legumes. Na Ásia perde o melhor da Arménia. Como potência europeia findou: é uma potência asiática. Ei-los enfim, depois de tantos séculos, expulsos do continente; mas custou: entre a guerra que os arrojou do Algarve e da Andaluzia até à campanha que os sacode da Romélia e da Bulgária mediaram séculos. A luta começada pelos reis católicos da Península é completada pelo czar e será terminada pelo czar; Constantinopla é deixada simplesmente aos Turcos, como um favor transitório, que bem depressa perderão também; o sultão levará a sua corte, o seu serralho, os seus eunucos e os seus tamborins para Drussa ou para Esmirna, na Ásia Menor, e nunca mais ouviremos falar dele; reentrarão, com toda a inércia do fatalismo, na passividade e no animalismo da vida puramente asiática; esquecerão tudo o que aprenderam na Europa, e na desgraça, prendendo-se mais ao mais puro maometanismo e isolando-se no Alcorão, não serão bem depressa mais do que um povo pitoresco e semibárbaro que se irá visitar, com risco e com fadiga, ao interior da Ásia Menor! Assim acabam os impérios. Evidentemente, o sultão, os paxás, cederam tudo para conservar Constantinopla: Constantinopla é a vida doce e mole nos haréns de Istambul e nos jaliks do Bósforo: contanto que lhes restem as doçuras do kief, a sesta nos quiosques das Aguas Doces da Europa e as belas circassianas bem educadas no deboche, que lhes importa o mais? A filosofia deste país é a seguinte: um país sacrificado ao egoísmo da sua classe dirigente. O Times chega a afiançar que por um contrato secreto com a Rússia os paxás continuarão a receber os seus rendimentos e os seus tributos especiais, que não serão afectados pelo pagamento da indemnização de guerra. Quem vai pagar é o pobre camponês otomano, tão sóbrio, tão bravo, tão honesto. Sempre a velha, a velha história: aristocracias ligando-se para a exploração das suas plebes! E que faz, no entanto, a Inglaterra? Arma-se até aos dentes: arma-se com um luxo quase bárbaro: solta dos seus estaleiros fileiras de couraçados; acumula montanhas de torpedos; quer tornar os seus obuses mais numerosos que as areias das praias! Leio todos os dias, por curiosidade, a lista dos preparativos nos arsenais, nas usinas do Governo, nas fábricas de canhões; confunde a imaginação! Os seis milhões de libras votados há um mês estão, diz-se, quase gastos – e tudo isto para quê? Para ir à conferência. Está fazendo a sua toilette da conferência. Com efeito, como ninguém sabe as condições da paz, todo o interesse está na conferência. Em que prejudicam essas condições a Inglaterra ou a Áustria? Mistério. Há-de saber-se amanhã, ou além. E é então que a dificuldade começa, se se vir que elas são incompatíveis com os interesses, com a dignidade, com a mesma segurança da Inglaterra. Duas das condições que decerto seriam um motivo de conflito, a entrega da frota turca aos Russos e a hipoteca do tributo do Egipto ao pagamento da indemnização da guerra, diz-se que foram suprimidas. Foram? Alguns jornais duvidam. Assim a impaciência de saber verdadeiramente as verdadeiras condições desta paz é ansiosa, cheia de pânico. Da sua publicação sairá uma nova guerra? Elas devem ser, com efeito, bem extraordinárias, visto que a Rússia as tem conservado tão secretas e que se está preparando como para uma outra campanha: mobilização de corpos de exército, encomenda de torpedos, fabricação de canhões, tudo isto prova que o czar conta com a oposição da Inglaterra e talvez da Áustria, quando sabidas as condições da paz, e que esta preparado para se bater em sua defesa. Mas que pode fazer a Inglaterra? A Inglaterra tem de aceitar os factos realizados. Não tem alianças: a França está decidida a não se mexer, nem para dar uma opinião; até declarou que vai à conferência contra vontade, por dever de etiqueta; a Áustria está imobilizada pela Alemanha; a Itália igualmente. O que resta à Inglaterra? Os pequenos estados constitucionais, com que ela poderia formar uma cruzada liberal contra a Rússia. Armemos os pequenos estados constitucionais, diz-se aqui, armemos a Bélgica, a Holanda, Portugal, e teremos um efectivo de duzentos mil homens. Mas esta aliança com os pequenos não parece do gosto da política de Lord Beaconsfield; os jornais tories nem mesmo lhe dão a importância de lhe enunciar a possibilidade; ela não daria à Inglaterra, estrategicamente, um concurso eficaz, e só traria a esses estados catástrofes. Nenhum deles tem interesses na questão do Oriente; nenhum deles tem a loucura de gastar o seu sangue (dado que a Inglaterra forneça o dinheiro) para batalhar as batalhas da Inglaterra; nenhum deles aceitaria comprometer o seu progresso, a sua tranquilidade, o seu comércio, o seu trabalho, sem mesmo poder esperar compensações; a Inglaterra não tem sido uma mãe tão carinhosa que mereça que se faça por ela sacrifícios quando ela está em dificuldades: a sua gratidão é suspeita; não há, como ela, para abandonar um amigo num dia de crise; vide a história lamentável da Dinamarca. Os pequenos estados, portanto, declinariam, sem dúvida, a honra desta aliança ilustre. E a Inglaterra só tem a continuar isolada. E é assim que a Alemanha paga à Rússia a sua dívida de 1870 e 1871. O que tem sido esta guerra do Oriente? O pagamento de uma dívida de gratidão. A Rússia em 1870 deixou a Alemanha arrancar à França duas províncias e cinco milliards e constituir a unidade germânica na família dos Hohenzollerns. A Alemanha, por seu turno, deixa a Rússia estender-se do lado da Ásia e da Turquia, encarregando-se de conservar a Europa quieta e imóvel. Tudo isto se passa entre Guilherme Hohenzollern e Alexandre Romanoff, e entre os dois velhos amigos, os dois velhos compadres de Frankfürt, Bismarck e Gortschatcoff. Delicadezas trocadas entre personagens! E Bismarck, por outro lado, consegue um grande fim: a Rússia quanto mais se alarga mais se enfraquece, quanto mais se arma mais se arruína. A Alemanha anima-a neste caminho, como os agiotas animam os filhos-famílias à vida aventureira e rica. A Rússia, concentrando-se, desenvolvendo os seus poderosos recursos, formando-se para a liberdade, será um terrível vizinho para a Alemanha; mas a Rússia, lançando-se nas aventuras da cruzada cristã na Ásia e da cruzada pan-eslavista no Sul da Europa, marcha à sua ruína, pelos desperdícios da força. De modo que Bismarck, ao mesmo tempo que paga a dívida de gratidão ao seu aliado, impele-o implicitamente à decadência. Política sábia, bem própria do antigo coronel dos couraceiros que uma retórica consagrada transformou no solitário de Varzin. Annuncio vobis gaundium magnum: habemos pontificem. Desde esta declaração lançada de uma janela do Vaticano sobre o povo romano, na Praça de 5. Pedro, todas as preocupações do mundo católico e incatólico estão fixadas em Joaquin Pecci, Leão XIII, papa infalível pela reunião dos votos de quarenta e cinco cardeais falíveis. O que prova que quarenta e cinco falibilidades fazem uma infalibilidade. Leão XIII parece ser um homem rígido, com experiência do mundo e do governo, prático, bom administrador, de tendências ligeiramente liberais, de vida austera, letrado, poeta mesmo. A sua figura é um pouco ascética, não tem nada daquela doce e risonha velhice de Pio IX, tão cheia de afabilidade, de suavidade, de graça e de finura: Leão XIII tem uma velhice seca, imponente, um pouco triste. O povo romano deu vivas ao saber a sua nomeação, o que não impediu que ontem apedrejasse as janelas do Palácio Toleschi, que se iluminara para celebrar a coroação de Leão XIII. Isto provém do exacto sentimento italiano: estimam bem que o papa seja um italiano que resida em Roma, depois de ter sido nomeado em Roma, e que seja liberal – mas não querem que o papado saia do Vaticano e se misture à vida civil. A nomeação do italiano Pecci agradou-lhes – mas que os palácios de Roma façam iluminações, agora que ele está nomeado, não! O Governo é absolutamente da mesma ideia: e toda a demonstração papal fora das sombras do Vaticano encontrará a sua reprovação; e assim não permitiu que a coroação de Leão XIII fosse pública. Isto dará em breve a sua consequência. Leão XIII encerrar-se-á no Vaticano, como Pio IX, e pôr-se-á em hostili-dade ao Governo italiano e ao mundo liberal, como Pio IX, o que é no fundo a lógica, a força e a glória do papa e do papado. Não há nenhuma novidade literária ou teatral. A política absorve toda a actividade cerebral: os filósofos fazem artigos de política nas revistas; os romancistas, mais batalhadores e mais exaltados, fazem-na nos jornais; os poetas fazem canções bélicas; e os pintores alegorias patrióticas: e todas estas produções são medíocres. A imprensa tem-se, sobre a questão do Oriente, entregado a um fluxo labial desordenado. Rolam torrentes de prosa e de retórica. Entre os que se chamam partido da paz – e os que se chamam partido da guerra – há uma luta de eloquência, que tem todos os pesados furores, todo o animal encarniçamento do boxe. Os jornais da guerra – tomam sobretudo à sua conta o infeliz Lord Derby. Este político é digno de piedade: todas as contrariedades por que tem passado a Inglaterra são-lhe atribuídas com um luxo de epítetos injuriosos e um hiperbolismo de verrina – que causa melancolia. A Vanity Fair, um jornal elegante, de boa sociedade, estimado, respeitável, abandona-se sobre Lord Derby a excessos que a política costuma reprimir. Às vezes começa os seus artigos com moderação, bom raciocínio, linguagem correcta: de repente, encontra na sua argumentação o nome de Lord Derby. Endoidece. Atira-se a ele, morde-o, espezinha-o, arranca-lhe pedaços de membros, bate-o como um bife, chafurda-o na lama, baba-se de cólera. Há dias representava Lord Derby, de joelhos diante do embaixador russo Schuvalloff, rogando-lhe que por piedade não humilhasse mais a Inglaterra: Lord Derby beijava-lhe as mãos, abraçava-lhe as pernas... Aqui traduzo: – Fora daqui! – brada Schuvalloff. – Não, conde, deixe-me estar a seus pés. Não humilhe mais a Inglaterra. Nós fazemos tudo. Retiramos a frota. Destruímos a frota. Quer que destruamos a frota? É só vossa excelência dizê-lo! É um momento, com dinamite. – Fora daqui, pulha! – Sim, sou um pulha! Obrigado. Que honra que vossa excelência se digne notar que eu sou um pulha! Sou-o realmente, já que vossa excelência o diz. Deixe-me beijar mais a sua mão; que quer que eu faça para lhe provar a minha adoração? Quer que cante de galo? Neste momento o público, fora, vem fazer um charivari debaixo das janelas do embaixador. Uma pedrada quebra um vidro. E logo entra, arremessado pela janela, um gato morto. Schuvalloff dá um pontapé em Lord Derby, exclamando: – Vê, imbecil. Aí está já esse grosseiro povo da Inglaterra a insultar-me, a atirar-me bichos mortos. – O gato morto? – grita Lord Derby. – O gato morto era para mim! Todos os gatos mortos são para mim! Eles sabem que eu mordo-me por gatos mortos. (Abraça-se ao gato morto, beija o gato morto.) Senhor conde, uma palavra! Diga que a Rússia, a santa Rússia, a nobre Rússia, a Rússia nossa ama –não há-de bater na Inglaterra, nem fazer-nos mal, nem assustar-nos. Diga-o, senhor conde! Veja: rojo a minha cabeleira no chão, verto as minhas lágrimas – apertando contra mim o meu gato morto! – Fora daqui, covarde, ou trabalha o chicote – diz Schuvalloff. – Eu saio, eu saio, excelentíssimo senhor. Vossa excelência mande; eu saio, eu saio aos recuões. Mas primeiro permita, dê licença, é um instante... (Atira-se-lhe aos pés e põe-se com humildade a lamber-lhe o verniz das botas.) Que me dizem a este meio de fazer polémica – com um ministro da Inglaterra? O Echo, jornal de paz, procede de outro modo. Traduzo um dos seus últimos períodos: «Os estudantes de medicina de Londres, que têm sido tão conspícuos em todas as manifestações belicosas dos últimos dias, escrevem uma carta ao Echo prevenindo-nos de que virão a esta redacção dar-nos uma correcção que, segundo eles, merece a maneira como temos castigado esta importuna e imbecil intervenção dos senhores estudantes nos meetings bélicos. Pois bem, prevenimos apenas os senhores estudantes disto: que há, empregadas na redacção e imprensa do Echo, cento e cinquenta pessoas, que a provisão de bengalas é sólida e que a vontade é boa. Que suas senhorias venham quanto antes.» O Echo é um dos melhores e mais acreditados jornais de Londres. Naturalmente, os grandes jornais, os jornais-personagens, o Times, o Daily Telegraph, o Daily News, o Standard, o Morning Post, conservam uma compostura mais digna, e nunca perdem a linha majestosa. Mas tudo o que a ironia, o sarcasmo, a alusão pérfida, podem produzir de mais acerado é trocado entre eles numa prosa correcta e grave. São gentlemen que se trocam num salão injúrias bem redigidas, com uma atitude cortês, o fel no coração e o sorriso nos lábios. Nunca vi tanto ódio – sob tanta polidez.

Nenhum comentário:

Postar um comentário