domingo, 31 de julho de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Lima Barreto: Quase doutor:

A nossa instrução pública cada vez que é reformada, reserva para o observador surpresas admiráveis. Não há oito dias, fui apresentado a um moço, aí dos seus vinte e poucos anos, bem posto em roupas, anéis, gravatas, bengalas, etc. O meu amigo Seráfico Falcote, estudante, disse-me o amigo comum que nos pôs em relações mútuas. 

O Senhor Falcote logo nos convidou a tomar qualquer coisa e fomos os três a uma confeitaria. Ao sentar-se, assim falou o anfitrião: 
- Caxero traz aí quarqué cosa de bebê e comê. 
Pensei de mim para mim: esse moço foi criado na roça, por isso adquiriu esse modo feio de falar. Vieram as bebidas e ele disse ao nosso amigo: 
- Não sabe Cunugunde: o véio tá i. O nosso amigo comum respondeu: 
- Deves então andar bem de dinheiros. 
- Quá ele tá i nós não arranja nada. Quando escrevo é aquela certeza. De boca, não se cava... O véio óia, óia e dá o fora. 
Continuamos a beber e a comer alguns camarões e empadas. A conversa veio a cair sobre a guerra européia. O estudante era alemão dos quatro costados. 
- Alamão, disse ele, vai vencer por uma força. Tão aqui, tão em Londres. 
-Qual! 
- Pois óie: eles toma Paris, atravessa o Sena e é um dia inguelês. 
Fiquei surpreendido com tão furioso tipo de estudante. Ele olhou a garrafa de vermouth e observou: 
- Francês tem muita parte..-. Escreve de um jeito e fala de outro. 
- Como? 
- Óie aqui: não está vermouth, como é que se diz "vermute"? Pra que tanta parte? Continuei estuporado e o meu amigo, ou antes, o nosso amigo parecia não ter qualquer surpresa com tão famigerado estudante. 
- Sabe, disse este, quase fui com o dotô Lauro. 
- Por que não foi? perguntei. 
- Não posso andá por terra. 
- Tem medo? 
- Não. Mas óie que ele vai por Mato Grosso e não gosto de andá pelo mato. 
Esse estudante era a coisa mais preciosa que tinha encontrado na minha vida. Como era ilustrado! Como falava bem! Que magnífico deputado não iria dar? Um figurão para o partido da Rapadura. 
O nosso amigo indagou dele em certo momento: 
- Quando te formas? 
- No ano que vem. 
Caí das nuvens. Este homem já tinha passado tantos exames e falava daquela forma e tinha tão firmes conhecimentos! 
O nosso amigo indagou ainda: 
- Tens tido boas notas? 
- Tudo. Espero tirá a medáia. 
Careta, 8-5-1915

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