Correram assim três
meses. A corte de Mendonça não adiantava um passo; mas a viúva nunca deixou de
ser amável com ele. Era isto o que principalmente retinha o médico aos pés da
insensível viúva; não o abandonava a esperança de vencê-la.
Algum leitor
conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse tão assíduo na casa de uma
senhora exposta às calúnias do mundo. Pensou nisso o médico e consolou a
consciência com a presença de um indivíduo, até aqui não nomeado por motivo de sua nulidade,
e que era nada menos que o filho da Sra. D. Antônia e a
menina dos seus olhos. Chamava-se Jorge esse rapaz, que gastava duzentos
mil-réis por mês, sem os ganhar, graças à longanimidade da mãe. Freqüentava as
casas dos cabeleireiros, onde gastava
mais tempo que uma Romana
da decadência às mãos das suas
servas latinas. Não perdia representação de importância no Alcazar; montava
bons cavalos, e enriquecia com despesas extraordinárias as algibeiras de
algumas damas célebres e de vários parasitas obscuros. Calçava luvas da letra E
e botas nº 36, duas qualidades que lançava à cara de todos os seus amigos que
não desciam do nº 40 e da letra H. A presença deste gentil pimpolho, achava
Mendonça que salvava a situação. Mendonça queria dar esta satisfação ao mundo,
isto é, à opinião dos ociosos da cidade. Mas bastaria isso para tapar a boca
aos ociosos?
Margarida parecia
indiferente às interpretações do mundo como à assiduidade do rapaz. Seria ela
tão indiferente a tudo mais neste mundo? Não; amava a mãe, tinha um capricho
por Miss Dollar, gostava da boa música, e lia romances. Vestia-se bem, sem ser
rigorista em matéria de moda; não valsava; quando muito dançava alguma
quadrilha nos saraus a que era convidada. Não falava muito, mas exprimia-se
bem. Tinha o gesto gracioso e animado, mas sem pretensão nem faceirice. Quando Mendonça
aparecia lá, Margarida
recebia-o com visível
contentamento. O médico iludia-se
sempre, apesar de já acostumado a essas manifestações. Com efeito, Margarida
gostava imenso da
presença do rapaz,
mas não parecia dar-lhe uma importância que lisonjeasse o coração dele. Gostava
de o ver como se gosta de ver um dia bonito, sem morrer de amores pelo sol.
Não era possível
sofrer por muito tempo a posição em que se achava o médico. Uma noite, por um
esforço de que antes disso se não julgaria capaz, Mendonça dirigiu a Margarida
esta pergunta indiscreta:
- Foi feliz com seu marido?
Margarida franziu
a testa com espanto e cravou os olhos nos do médico, que pareciam continuar
mudamente a pergunta.
- Fui, disse ela no
fim de alguns instantes.
Mendonça não disse
palavra; não contava com aquela resposta. Confiava demais na intimidade que
reinava entre ambos; e queria descobrir por algum modo a causa da
insensibilidade da viúva.
Falhou o cálculo;
Margarida tornou-se séria durante algum tempo; a chegada de D. Antônia salvou
uma situação esquerda para Mendonça. Pouco depois Margarida voltava às boas, e
a conversa tornou-se animada e íntima como sempre. A chegada de Jorge levou a
animação da conversa a proporções maiores; D. Antônia, com olhos e ouvidos de
mãe, achava que o filho era o rapaz mais engraçado deste mundo; mas a verdade é
que não havia em toda a cristandade espírito mais frívolo. A mãe ria-se de tudo
quanto o filho dizia; o filho enchia, só ele, a conversa, referindo anedotas e
reproduzindo ditos e sestros do Alcazar. Mendonça via todas essas feições do
rapaz, e aturava-o com resignação evangélica.
A entrada de Jorge,
animando a conversa, acelerou as horas; às dez retirou-se o médico, acompanhado
pelo filho de D. Antônia, que ia cear. Mendonça recusou o convite que Jorge lhe
fez, e despediu-se dele na rua do Conde, esquina da do Lavradio.
Nessa mesma noite
resolveu Mendonça dar um golpe decisivo; resolveu escrever uma carta a
Margarida. Era temerário para quem conhecesse o caráter da viúva; mas, com os
precedentes já mencionados, era loucura. Entretanto, não hesitou o médico em
empregar a carta, confiando que no papel diria as coisas de muito melhor
maneira que de boca. A carta foi escrita com febril impaciência; no dia
seguinte, logo depois de almoçar, Mendonça meteu a carta dentro de um volume de
George Sand, mandou-o pelo moleque a Margarida.
A viúva rompeu a
capa de papel que embrulhava o volume, e pôs o livro sobre a mesa da sala; meia
hora depois voltou e pegou no livro para ler. Apenas o abriu, caiu-lhe a carta
aos pés. Abriu-a e leu o seguinte:
"Qualquer que
seja a causa da sua esquivança, respeito-a, não me insurjo contra ela. Mas, se
não me é dado insurgir-me, não me será lícito queixar-me? Há de ter
compreendido o meu amor, do mesmo modo que tenho compreendido a sua
indiferença; mas, por maior que seja essa indiferença, está longe de ombrear
com o amor profundo e imperioso que se apossou
de meu coração quando eu mais longe me cuidava destas paixões
dos primeiros anos. Não lhe contarei as insônias e as lágrimas, as esperanças e
os desencantos, páginas tristes deste livro que o destino põe nas mãos do homem
para que duas almas o leiam. É-lhe indiferente
isso.
"Não ouso
interrogá-la sobre a esquivança que tem mostrado em relação a mim; mas por que
motivo se estende essa esquivança a tantos mais? Na idade das paixões férvidas,
ornada pelo céu com uma beleza rara, por que motivo quer esconder-se ao mundo e
defraudar a natureza e o coração de seus incontestáveis direitos? Perdoe-me a
audácia da pergunta; acho-me diante de um enigma que o meu coração desejaria
decifrar. Penso às vezes que alguma grande dor a atormenta, e quisera ser o
médico do seu coração; ambicionava, confesso, restaurar-lhe alguma ilusão
perdida. Parece que não há ofensa nesta ambição.
"Se, porém, essa esquivança denota simplesmente um sentimento de orgulho legítimo, perdoe-me se ousei escrever-lhe quando seus olhos expressamente mo proibiram. Rasgue a carta que não pode valer-lhe uma recordação, nem representar uma arma." A carta era toda de reflexão; a frase fria e medida não exprimia o fogo do sentimento. Não terá, porém, escapado ao leitor a sinceridade e a simplicidade com que Mendonça pedia uma explicação que Margarida provavelmente não podia dar. Quando Mendonça disse a Andrade haver escrito a Margarida, o amigo do médico entrou a rir despregadamente.
- Fiz mal? perguntou Mendonça.
- Estragaste tudo. Os outros pretendentes começaram também por carta; foi justamente a certidão de óbito do amor.
-
Paciência, se acontecer o mesmo, disse Mendonça
levantando os ombros com aparente indiferença;
mas eu desejava que não estivesses sempre
a falar nos pretendentes; eu não sou pretendente no sentido desses.
- Não querias casar
com ela?
- Sem dúvida, se fosse
possível, respondeu Mendonça.
-
Pois era justamente o que os outros queriam;
casar-te-ias e entrarias na mansa posse dos bens que
lhe couberam em partilha e que sobem a muito mais de cem contos. Meu rico, se
falo em pretendentes não é por te ofender, porque um dos quatro pretendentes
despedidos fui eu.
- Tu?
- É verdade; mas
descansa, não fui o primeiro, nem ao menos o
último.
- Escreveste?
-
Como os outros; como eles, não obtive resposta; isto
é, obtive uma: devolveu-me a carta. Portanto,
já que lhe escreveste, espera o resto; verás se o que te digo é ou não exato.
Estás perdido, Mendonça;
fizeste muito mal.
Andrade tinha
esta feição característica de não omitir nenhuma das cores sombrias de uma
situação, com o pretexto de que aos amigos se deve a verdade. Desenhado o quadro,
despediu-se de Mendonça, e foi adiante.
Mendonça foi para
casa, onde passou a noite em claro.
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